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Gustavo Henrique Lopes Machado

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Alétheia

Trabalho produtivo e improdutivo: o capital produtivo - Parte 4

Gustavo Henrique Lopes Machado - Publicado: Sexta, 11 Dezembro 2015 00:45
"A tarefa da ciência consiste precisamente em explicar como opera a lei do valor. Consequentemente, se pretendemos explicar de uma só vez todos os fenômenos que parecem contradizer esta lei, seria necessário fazer ciência antes da ciência" (Karl Marx).

Apresentamos aqui o quarto e derradeiro artigo da série proposta sobre trabalho produtivo e improdutivo em Marx. Qual a importância deste tema? Seriam meros apontamentos teóricos sem qualquer implicação maior nos embates reais que se desenrolam diariamente? Conceitos abstratos afastados das “tarefas políticas concretas”? Ora, é evidente que na luta cotidiana entre as classes sociais interferem inumeráveis aspectos de ordens diversas: políticos, ideológicos, históricos, conjunturais e assim por diante. A análise empreendida por Marx em O Capital não pretende, sob nenhum aspecto, eliminar este conjunto sempre variável e presente de influências. Não se trata disso.

Como se sabe, Marx repetiu e repetiu até a exaustão a necessidade de se compreender primeiro as determinações contidas naquele domínio que a tradição consagrou sob o nome de “infra-estrutura”, isto é, aquelas determinações relacionadas à forma de relacionamento entre os homens tendo em vista se apropriar da natureza. A vulgata stalinista, é sabido, colocou esta pedra basilar do pensamento marxista em termos de causalidade ou determinismo. Nessa acepção, todos demais aspectos da sociedade seriam deduzidos ou causados pelo fator econômico.

Em verdade, o termo economia não era tomado por Marx no sentido autonomizado e restrito atualmente em voga. Economia significa, para Marx, a forma social através da qual se efetiva as relações entre as pessoas no processo de produção. Não se trata, portanto, de reduzir as relações sociais à categorias econômicas, pelo contrário, trata-se de mostrar que as categorias econômicas são relações sociais. Mas se paramos por aqui não explicamos absolutamente nada. As relações econômico-sociais ou as relações de produção expressam um tipo especifico e fundamental de relações sociais. As especificidades destas determinações ditas econômicas ou infra-estruturais é que traduzem nexos, determinações ou características necessárias em uma dada forma de organização social. Diversamente da política, do Estado, da cultura que, em uma mesma forma de sociedade, podem se exprimir em formas diversas; as relações de produção expressam aqueles nexos fundamentais que fazem de uma dada forma de sociedade aquilo que é, aquilo que ela tem necessariamente que reproduzir para continuar a existir. Por isso, elas não determinam unilateralmente as demais esferas da vida social, mas constituem o ponto de partida para sua adequada compreensão.

Isto é assim porque para se apropriar da natureza os homens se articulam sempre em uma forma social de produção específica, independente da vontade dos indivíduos, por se tratar de uma articulação social com a qual estes já encontram como dada e, para sobreviver, devem inexoravelmente se adequar e fazê-la reproduzir. Nesse sentido, as atividades das instituições que garantem organização da guerra, da política ou do direito, encarnadas na figura do Estado, não são passíveis de um tratamento isolado, já que integram um todo orgânico e articulado cujas partes não possuem uma natureza independente e, por esse motivo, constituem um todo econômico.

Explicar, portanto, a natureza das classes sociais, um período ou etapa histórica a partir de elementos puramente subjetivos, políticos ou ideológicos constitui, e sempre constituiu, na matriz das concepções burguesas e marxistas vulgares. Como na citação de Marx que usamos como epígrafe, os que assim procedem, procuram “fazer ciência antes da ciência”. Seguimos, nesse caso, as lúcidas palavras do economista russo Eugeny Preobrajensky:

Procurando justificar suas objeções, meus oponentes apoiam-se sobre uma frase que Lênin gostava de repetir, segundo a qual a política é a economia concentrada. Entretanto eles não mostram como, para compreender esta concentração, é possível evitar a análise prévia do que se concentra na política. De resto, se lhes agradam começar a análise onde habitualmente os marxistas a terminam, que tentem. Nós escutamos. De minha parte, permaneço no campo do marxismo e considero que é necessário começar a análise a partir da infra-estrutura, a partir das regulações da vida econômica e explicar, em seguida, a necessidade de determinada política. [... isto é,] para [somente] em seguida, tentar compreender por que a resultante da vida real segue precisamente tal linha e não outra. (PREOBRAJENSKY, 1979, p.70)

Compreender, desse modo, o papel social dos distintos setores do proletariado na produção da riqueza capitalista, não assegura de antemão como tais setores irão se comportar neste ou naquele cenário. No entanto, indica seu papel social tal como necessariamente se articulam no interior do modo de produção capitalista e, consequentemente, sua maior ou menor importância estratégica para um partido revolucionário que tem em mira exatamente revolucionar este modo de produção. Quem quiser analisar tal questão partindo de considerações subjetivas, meramente ideológicas ou políticas, separadas e autonomizadas de um todo econômico, dizemos com Preobrajensky, “vá que estamos te vendo”. De nossa parte, pretendemos continuar com o método de Marx e, antes de procurar explicar todos os fenômenos que se passam diante de nossos olhos justapondo artificialmente elementos superestruturais, necessário se faz alçar o papel social de cada um dos estratos que compõem o proletariado no interior do processo global de produção de capital.

Nessa direção, se é de grande relevância encontrarmos as determinações em comum entre o conjunto do proletariado, mostrando a possibilidade de uni-los em uma luta conjunta contra o capital; igualmente relevante é explicitar suas diferenças, indicando os setores chave nesse processo, assim como a especificidade de seu papel social. Comecemos então pelo capital produtivo.

O Capital Produtivo como Capital Industrial

No livro primeiro de O Capital, Marx estuda o capital em sua pureza, abstraindo dos diversos tipos particulares de capital, da concorrência e da redistribuição da mais-valia entre eles. Somente assim é possível fazer ciência. Isto é, atingir as determinações fundamentais do modo de produção capitalista com suas tendências e contradições internas, para além das múltiplas oscilações particulares que nos fariam mergulhar em um oceano indomável de contingencias, decisões individuais e arbitrariedades. Nesse nível da análise temos apenas o proletariado industrial, produtor de mercadorias, contraposto ao capitalista industrial. Os indivíduos que compõem o proletariado se diferenciam apenas no interior do processo de trabalho de uma dada unidade produtiva, conforme a qualificação do trabalho e seus atributos técnicos.

Mesmo neste nível absolutamente abstrato de análise, Marx já identifica um setor chave tendo em vista a contraposição ao capital. Segundo Marx, a “distinção essencial é entre trabalhadores que efetivamente estão ocupados com as máquinas-ferramentas” (MARX, 1996b, 53) e, ao “lado dessas classes principais, surge um pessoal numericamente insignificante que se ocupa com o controle do conjunto da maquinaria e com sua constante reparação, como engenheiros, mecânicos”. E acrescenta: é “uma classe mais elevada de trabalhadores, em parte com formação científica, em parte artesanal, externa ao círculo de operários de fábrica e só agregada a eles” (MARX, 1996b, p.54). Enquanto uma camada do proletariado melhor remunerada, numericamente pouco significativa no interior de cada unidade produtiva e, sobretudo, externa ao círculo de operários, este setor do proletariado não expressa a mesma força social que os primeiros. Sua consciência está propensa a oscilar entre os interesses do capitalista e da massa do proletariado.

Seja como for, ao abstrair dos demais trabalhadores assalariados e considerar, em todo livro primeiro, tão somente o proletário industrial, Marx assinala o setor chave da economia capitalista: o capital industrial ou capital produtivo, cuja riqueza produzida será redistribuída para todos demais setores com mediação do mercado. Várias são as formas desta redistribuição, como, por exemplo, o lucro industrial, o lucro comercial, o juro e a renda da terra, sem falar na mera transferência de renda como é o caso dos impostos estatais. A análise, portanto, dos demais setores do proletariado e sua correlação serão analisados nos Livros Segundo e Terceiro de O Capital. Vejamos, então, mais de perto estes setores que integram o capital improdutivo e produtivo, com os trabalhadores que lhes correspondem.

Capital Improdutivo versus Capital Produtivo

Compõem o capital improdutivo todos aqueles ramos não produtores de capital-mercadoria, ainda que realizem funções absolutamente necessárias do ponto de vista do processo de reprodução global do capital. Este é o caso, por exemplo, do capital comercial e financeiro que, conforme indicado por nós no artigo anterior, apenas se apropriam de parte da mais-valia produzida pelo capital industrial, sem participar de sua produção. Nas palavras de Marx: no “capital comercial e no financeiro há autonomia da fase de circulação do capital industrial, dissociada da produtiva, pois as formas e funções determinadas que este capital assume transitoriamente nessa fase passam a ser formas e funções autônomas e exclusivas de parte separada do capital” (MARX,1981, p.373). Ou seja, todos os momentos integrantes do capital comercial e financeiro estão efetivamente separados e autonomizados frente à produção, pertencendo única e exclusivamente a esfera da circulação. Para que fique claro, vejamos o que faz produtivo o capital industrial.

Segundo Marx, nos “estágios de circulação, o valor-capital assume duas formas, a de capital-dinheiro e a de capital-mercadoria; no estágio de produção, a forma de capital produtivo. O capital que no decurso de todo o seu ciclo ora assume ora abandona essas formas, executando através de cada uma delas a função correspondente, é o capital-industrial” (MARX, 1980, p.53). Nesse sentido, não é o fato de participar da esfera da circulação que faz improdutivo um dado ramo do capital, mas o fato de estar excluído da esfera da produção. O capital-industrial, por sua vez, é o único que participa de todos os momentos do processo de reprodução de capital, se apresentando ora na capital-mercadoria, ora na forma de capital-dinheiro, e ora como capital de produção.

No entanto, em seguida, Marx faz a seguinte ressalva: “industrial aqui no sentido de abranger todo ramo de produção explorado segundo o modo capitalista” (MARX, 1980, p.54). Estaria Marx, com esta ressalva, incluindo o setor dos assim chamados serviços no interior do capital industrial? Evidentemente não. Marx explica em seguida o significado deste comentário. Por capital-industrial não se considera unicamente o momento isolado da produção, enquanto uma “espécie autônoma de capital”, mas o capital-dinheiro, capital-mercadoria e capital-produtivo como “formas específicas de funcionamento do capital industrial, que as assume sucessivamente”. Vejamos a questão mais de perto.

Como demonstramos nos artigos anteriores, os ditos serviços se caracterizam por não produzirem mercadorias e, por este motivo, não podem cumprir todos os momentos exigidos para o capital ser produtivo, são eles:

1- Capital investido na compra das mercadorias força de trabalho (FT) e meios de produção(MT).

2- de uma nova mercadoria(M’) a ser levada ao mercado e trocada por dinheiro(D’).

Este processo é sintetizado na fórmula: D – M (MP; FT) ...Produção... M’ – D’. Eis a fórmula geral do capital produtivo. Não existe nela nada de misterioso, apesar da complexidade aparente. Trata-se de um desdobramento da forma geral do capital: D – M – D’. No entanto, esta forma mais abstrata do capital em geral assinala que pertencem à esfera do capital todos os trabalhos que se trocam diretamente por dinheiro como capital, onde se inclui os serviços explorados por um capitalista. Já na fórmula do capital produtivo, tais serviços permanecem como capital, no entanto, não mais como capital produtivo. Além de produzir um excedente para o capitalista (D – [...] – D’), o capital produtivo exige que ao fim do processo se produza uma mercadoria ou, mais precisamente, capital-mercadoria (Produção ... M’). Não basta a mera compra e venda da força de trabalho e meios de produção (MP; FT).

Isto é assim porque o dinheiro, embora apareça na sociedade capitalista como sendo a riqueza por excelência, a riqueza absoluta e autonomizada, nada mais expressa que o valor das mercadorias em circulação. Não sem razão, o capítulo destinado ao dinheiro no Livro Primeiro de O Capital se denomina: “Dinheiro OU circulação de mercadorias”. Nesse capítulo Marx diz que embora “o movimento do dinheiro seja portanto apenas a expressão da circulação de mercadorias, a circulação de mercadorias aparece, ao contrário, apenas como resultado do movimento do dinheiro” (MARX, 1996, p.238). Todos àqueles que defendem as formas de trabalho que se vendem diretamente como serviços como sendo capital produtivo são, sem exceção, vítimas do fetiche do dinheiro.

Tanto é assim que em outra passagem, já no Livro Terceiro, Marx explicita os ramos que denomina constitutivos do capital industrial:

Do exposto ressalta absurdo considerar o capital mercantil, seja na forma de capital comercial ou na de capital financeiro, espécie particular de capital industrial, como, por exemplo, a mineração, a agricultura, a pecuária, a manufatura, a indústria de transporte, etc., que, em virtude da divisão social do trabalho, constituem ramificações determinadas do capital industrial (MARX,1981, p.372).

Apenas atividades produtoras de capital-mercadoria são elencadas como sendo capital industrial e, por conseguinte, capital produtivo: a mineração, a agricultura, a pecuária, a manufatura e, mesmo, a indústria de transporte que, na acepção de Marx, altera espacialmente o produto conforme veremos mais adiante.

Mesmo neste caso, Marx está distante de nivelar todos estes distintos ramos do capital produtivo pelo simples fato de produzirem capital-mercadoria. Pelo menos quatro diferenciações substanciais são explicitadas por Marx no interior do próprio capital produtivo, explicitando os distintos papeis e peso social destes ramos no interior da dinâmica da reprodução global do capital. Indicamos aqui sumariamente estas diferenciações. Apenas indicamos, afinal, sua articulação com os demais capitais particulares e o papel desses diferentes ramos na formação da taxa média de lucro, está além do escopo deste artigo:

1 – Departamento I – Capital produtor de meios de produção: Aí se insere todo o ramo do capital que no produto final é representado sob a forma do capital constante. Desde o maquinário e as instalações da indústria até a produção de energia, matérias primas etc. Ou seja, todas mercadorias consumidas no próprio processo de trabalho. Recebe, segundo Marx, uma mais-valia extra do departamento II, cujos motivos não é possível explicitar neste espaço.

2 – Departamento II – Capital produtor de meios de consumo individual: Aqui se insere o setor produtor de mercadorias aptas a serem consumidas pelos trabalhadores e capitalistas. A relação entre estes dois departamentos serão tratadas no Livro Segundo de O Capital, mas precisadas na seção II do Livro Terceiro.

3 – Indústria extrativa: Compõe o departamento I, mas com especificidades que devem ser devidamente consideradas. Aqui se insere setores como a mineração, a pecuária e a agricultura. O grau de fertilidade da terra, a pureza natural do minério, dentre outros elementos que não estão diretamente associados ao trabalho, mas à propriedade, produzem um ganho extra denominado renda da terra, além da divisão da mais-valia produzida com o rentista fundiário. Ainda neste caso, existem diferenças fundamentais entre a classe trabalhadora minerária e agrícola como, por exemplo, a maior concentração de trabalhadores minerários em uma mesma unidade produtiva contraposta à dispersão característica do trabalho agrícola. Estes setores serão tratados por Marx na seção VI do Livro Terceiro.

4 – Indústria dos transportes: Os casos indicados acima integram, evidentemente, o capital produtivo, já que são evidentemente produtores de capital-mercadoria, ainda que, como no departamento I, destinadas a serem consumidas por outro ramo industrial como meio de produção. No entanto, existe um caso menos evidente: os transportes. Este caso é particularmente interessante para esclarecer a presente questão entre capital produtivo e improdutivo, particularmente o papel dos serviços. A este respeito diz Marx de maneira contundente: “Há, entretanto, ramos industriais autônomos em que o resultado do processo de produção não é nenhum produto, nenhuma mercadoria. Entre eles, o único setor importante, do ponto de vista econômico, é o de transportes e comunicações que abrange tanto o transporte de mercadorias e pessoas” (MARX, 1980, p.55). Como se vê, temos um ramo não produtor de mercadorias que integra o capital produtivo, nesse caso, como nos serviços, o “efeito útil só pode ser usufruído durante o processo de produção; não existe como objeto de uso diverso desse processo, objeto que funcionasse depois de ser produzido, como artigo de comércio, que circulasse como mercadoria” (MARX,1980 , p.56). E da mesma forma que nos serviços, “o valor de troca desse efeito útil é determinado, como o de qualquer outra mercadoria, pelo valor dos elementos de produção (FT e MP) consumidos para obtê-lo mais a mais-valia gerada pelo trabalho excedente dos trabalhadores empregados na indústria de transporte” (MARX, 1980, p.56). Assim considerado, o setor de transportes aparece como um mero serviço, em que o que se vende é o consumo direto da mercadoria força de trabalho, sem qualquer produção propriamente dita. Por que motivo, então, Marx coloca os transportes como capital produtivo?

Nas Teorias de Mais-Valia, Marx nos explica de modo claro: “ainda existe, na produção material, uma quarta esfera que passa também pelos diferentes estágios de empresa artesanal, manufatureira e indústria mecânica; e a indústria de locomoção, transporte ela pessoas ou mercadorias”. Mas em seguida acrescenta Marx: “produz-se aí alteração material no objeto de trabalho – alteração espacial, de lugar. Quanto ao transporte de pessoas, temos aí apenas serviço que lhes é prestado pelo empresário” (MARX, 1974, p. 405). Como se vê, no caso do transporte de pessoas a indústria de locomoção não se diferencia dos demais serviços, mas como transporte de mercadorias a coisa muda completamente de figura. Afinal, “se consideramos o processo no tocante às mercadorias, sucede então no processo de trabalho alteração no objeto de trabalho, a mercadoria. A existência espacial dele altera-se, e assim ocorre modificação em seu valor de uso, por se modificar a existência espacial desse valor de uso. Seu valor de troca aumenta na medida do trabalho exigido por essa alteração de seu valor de uso” (MARX, 1974, p. 405). Desse modo, quando “a mercadoria chega ao lugar de destino, essa alteração ocorrida no valor de uso desapareceu e se expressa apenas no valor de troca mais elevado”. Por esse motivo, “para essa indústria, como para as outras esferas da produção material, o trabalho se corporifica na mercadoria, embora não tenha deixado traço visível em seu valor de uso” (MARX, 1974, p. 405).

Claro está que o transporte agrega valor à mercadoria ao alterá-la espacialmente de lugar, sendo, portanto, parte integrante do capital produtivo tal como exposto até aqui. Apesar de não produzir diretamente uma mercadoria, o transporte altera sua determinação útil e também o valor das mercadorias produzidas em outros ramos de produção. Compreendido este elemento fica claro, por outro lado, que os serviços não pertencem ao capital produtivo e, não sem razão, Marx diz que, no interior de todas atividades não produtoras de mercadoria, “o único setor importante, do ponto de vista econômico, é o de transportes”. Do ponto de vista econômico, vale dizer, e não quantitativo, isto é, do ponto de vista da valorização do capital global e não da maior ou menor presença destas atividades na época de Marx como comumente tal questão é abordada pelos comentadores.

Ao mesmo tempo, compõem o Capital Improdutivo:

1 – O Capital Financeiro: Aquele especializado no comércio de dinheiro, diferenciando no seu interior o capital fictício e o crédito. Este último consiste no capital portador de juros ou capital bancário. O industrial capitalista recebe a sua parte da mais-valia gerada na produção sobre a forma de lucro, o banqueiro, por sua parte, recebe uma parte da mais-valia sobre a forma de juros. Em outras palavras, ainda que essencial para o curso rotineiro da reprodução global de capital, o capital financeiro apenas se apropria de parte da mais-valia produzida pelo capital produtivo na forma de juros. Mais ainda. Segundo Marx, este setor sequer integra o processo global de reprodução de capital, afinal, “é uma transação jurídica, que nada tem a ver com o processo real de reprodução, mas apenas o encaminha”. Este tema sera tratado por Marx na seção V do Livro Terceiro.

2 – O Capital Comercial: Diz respeito unicamente à fase de circulação, sem alterar ou criar valor. Este domínio é analisado no Livro Segundo de O Capital e retomado na seção V do Livro Terceiro.

3 – O Capital que explora diretamente o trabalho como serviços: Como vimos, Marx, coerente com sua afirmação no capítulo inédito de que os serviços empregados sob a forma capital “não devem ser tidos em conta quando se analisa o conjunto da produção capitalista” (MARX, 1975, p.103), sequer o analisa no Livro Terceiro de O Capital, reservando maior espaço a este em suas Teorias de Mais-Valia. Ocorre que, como se sabe, tal livro constitui um grande apêndice de O Capital, não propriamente o Livro Quarto. Nas Teorias de Mais-Valia, Marx remonta a história da teoria econômica desconstruindo-a com base na exposição dos três livros anteriores.

Não poderia ser de outro modo, afinal, este ramo, como insistimos, não é produtor de capital-mercadoria, mas apenas consumidor da mercadoria força de trabalho e de outras mais que o serviço considerado requer. Pode, portanto, produzir capital para o capitalista individual, mas, ao mesmo tempo, apenas consome o capital social na forma de renda, tal como desenvolvemos nos dois artigos anteriores. Como é possível um ramo do capital produzir e, ao mesmo tempo, apenas consumir o capital existente? Este aparente absurdo desaparece quando deixamos de considerar a questão a partir uma perspectiva unilateral e abstrata. Ainda que tratando de especificidades do capital fixo, uma importante citação no fim do livro terceiro explicita tudo que desenvolvemos no curso de toda nossa argumentação a respeito dos serviços:

as definições fixas de renda e capital permutam-se e trocam de lugar entre si, parecendo ser, do ponto de vista do capitalista isolado, definições relativas que se desvanecem quando consideramos o processo global de produção. [...] É possível assim contornar a dificuldade se imaginamos que o que é renda para uns é capital para outros, e que essas definições nada tem por isso que ver com a particularização efetiva dos componentes do valor da mercadoria (MARX, 1981b, p.969).

Conclusão

Encerramos aqui os quatro artigos que compõem a presente série sobre trabalho produtivo e improdutivo em Marx. Não realizamos a análise do entrelaçamento entre os diversos estratos do proletariado que compõem o capital produtivo e o capital improdutivo, com sua respectiva incidência na taxa média de lucro. Para tal, remetemos o leitor aos dois últimos livros de O Capital e, por esse motivo, indicamos nesse artigo os capítulos centrais da obra principal de Marx em que cada tema é abordado. Esperamos, ao menos, ter convencido o leitor de que é em O Capital que se encontra a análise central de Marx sobre as classes sociais, assim como o caráter improdutivo dos serviços tendo em vista a sociedade em seu conjunto.

Mas não somente. Claro está que a análise encerrada em O Capital sob nenhuma hipótese esclarece de antemão a correlação de forças entre as classes em um dado período histórico ou em um dado pais. No entanto, tais análises particulares e conjunturais, se se não quiser fazer ciência antes da ciência, deve pressupor a anterior compreensão dos elementos apenas tangenciados por estes artigos: a articulação total do modo de produção capitalista tomado, de início, em sua forma pura, com o papel social das classes e setores de classe que o compõem.

Assim procedendo, fica explícito, por exemplo, para além das turbulências conjunturais, o papel central ocupado por todos aqueles setores do proletariado que integram o capital produtivo ou industrial. Ainda que por hipótese, em um dado cenário, este setor mostre-se, por razões diversas, com o nível mais rebaixado de consciência, com pouca tradição de luta ou em menor número; sua posição central, se se quiser fazer desmoronar o capital, continua a mesma. O proletariado industria ganha, portanto, papel estratégico para o movimento socialista. Não apenas por constituir o cerne e a base da valorização global do capital, mas também por ser o único setor que pode contrapor eficazmente as tendências burocratizantes resultantes da expropriação da propriedade privada, já que associado diretamente à produção e controle da riqueza, ao mesmo tempo que diretamente afetado pelos mecanismos de sua redistribuição.

Nesse caminho, já no final de sua vida, Nahuel Moreno, distante de reduzir a luta pelo socialismo à tomada do poder, diz que se “a classe operária não nos seguir, não chegaremos a lugar nenhum. Iremos nos burocratizar, capitular [...]”. E mais adiante, baseado na experiência cubana, conclui que “é necessário continuar com a política revolucionária de classe, ainda que, para nós, isso signifique adiar a chegada ao poder em vinte ou trinta anos, ou o que seja” (MORENO, 2005, p.65).

Não sem razão, para um marxista, as análises políticas e ideológicas se desprendem sempre da análise prévia de sua respectiva base social. Isto não significa que elas são unilateralmente causadas por esta base social, mas que somente através dela podem ser efetivamente compreendidas. Por esse motivo Marx se dedicou a escrever O Capital antes de qualquer outra coisa. No mesmo sentido, Leon Trotsky, ao se deparar com o fenômeno da burocratização do Estado soviético, apesar de inicialmente tê-la associado superficialmente ao regime interno do partido, logo se voltou para a busca de suas profundas raízes sociais e da sua conexão com os interesses e correlação entre as classes envolvidas.

Como se vê, qualquer organização que queira influir na história no sentido da revolução socialista deve, antes de mais nada, se assentar firmemente nas bases sociais que a possibilitam, antes e aquém de qualquer escolha ou impressão. Deve influir no oceano caótico dos fenômenos imediatos em consideração com sua unidade mais profunda. Deve buscar as bases sociais dos fenômenos ideológicos e políticos, antes de dar uma formulação teórica autônoma para estes domínios. Fazer ciência, portanto, não é, para Marx, enumerar acontecimentos históricos ao modo de um jornalista, tampouco criar conceitos autônomos ao modo de um acadêmico, mas encontrar sempre a base social dos fenômenos, para, somente então, extrair dela uma política revolucionária.

Referências:

MARX, KARL. O Capital: Crítica da Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1996. Livro primeiro, Tomo 1.

MARX, KARL. O Capital: Crítica da Economia Política. São Paulo: Abril Cultural, 1996b. Livro primeiro, Tomo 2.

MARX, KARL. O Capital. Livro 2: O Processo de Circulação do Capital. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1980.

MARX, KARL. O Capital. Livro 3, Volume 5. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981.

MARX, KARL. O Capital. Livro 3, Volume 6. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1981b.

MARX, KARL. Teorias da mais-valia. História crítica do pensamento econômico. Rio de Janeiro: Civilização Brasileira, 1974. v. 1.

MORENO, NAHUEL. Conversando com Moreno. São Paulo: José Luis e Rosa Sundermann, 2005. Entrevista realizada por Daniel Acosta, Marco Trogo e Raul Tuny.

PREOBRAJENSKY, Eugênio. A Nova Econômica, Rio de Janeiro, Paz e Terra, 1979.


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