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linguista xoan lagaresGaliza - Palavra Comum - [Ramiro Torres] Entrevista a Xoán Lagares.


Palavra Comum: Trabalhas com paixão na linguística. Conta-nos o que supõe para ti…

Xoán Lagares: Interessa-me a linguagem porque é através dela que construímos nosso mundo, como nos relacionamos com tudo o que está em volta, e tenho claro que desenvolvi a minha sensibilidade pelas questões sociais implicadas nos usos das línguas por causa da experiência com a minorização linguística na Galiza. Einar Haugen, um dos primeiros linguistas a pesquisar sobre padronização e política linguística, fala num artigo publicado no seu livro Ecology of language da esquizoglossia, que define, ironicamente, como uma espécie de doença que atinge aquelas pessoas que vivem entre idiomas ou variedades próximas, e que desenvolvem um interesse desmedido, claramente exagerado, por questões formais relativas à estrutura das línguas. É lógico que em situações que causam insegurança linguística a língua seja um objeto social especialmente relevante, e muitas conversas da vida cotidiana girem em torno dela e de como usá-la. Haugen dizia que nos casos mais graves o esquizoglóssico vira linguista. Acho que é o meu caso…

Palavra Comum: O que é a língua galega, e que relações tem com a chamada Lusofonia e/ou Galeguia?

Xoán Lagares: Essa é uma pergunta especialmente difícil, porque não existem definições simples para descrever o que é uma língua. As línguas, propriamente, não existem. Saussure, o pai da linguística moderna, dizia que a língua entendida como sistema abstrato, conjunto de relações estruturais, era produto de um determinado ponto de vista. De fato, ela não pode ser encontrada, íntegra, em lugar algum. E uma gramática ou um dicionário são apenas instrumentos que delimitam algumas das suas características, partindo dessa perspectiva que procura sistematicidades e regras na enorme heterogeneidade das práticas linguísticas, nas inúmeras interações sociais entre falantes. Enquanto objeto social, as línguas são produto de um conjunto de representações que os falantes têm de suas práticas e das práticas dos outros. Essas representações criam categorias com nomes que permitem identificá-las. A questão é que as representações sobre práticas iguais ou muito parecidas podem ser diversas e mesmo totalmente contraditórias. O caso do galego é um ótimo exemplo. É inegável, do ponto de vista da estrutura linguística, a continuidade galego-portuguesa. Mas as representações que interpretam essa continuidade são diversas, dependendo do valor que se queira dar às identidades ou às diferenças entre as variedades reconhecíveis, e das ideologias, dos interesses, das estratégias associadas a elas.

Para resumir, eu diria simplesmente que o galego é uma língua minorizada, historicamente relacionada a um grupo de variedades que conhecemos como língua portuguesa. A fronteira política que nos confina no Reino da Espanha supôs e ainda supõe um obstáculo para que os falantes de galego possamos tirar proveito dessa relação com um mundo linguístico diverso e amplo. Qualquer política sinceramente (pre)ocupada em dar valor à língua dos galegos e das galegas deveria explorar ao máximo essa relação, otimizando esse recurso linguístico que tem sido tão desprezado ao longo da história. Isso passaria, do meu ponto de vista, pelo reconhecimento explícito de que as variedades que recebem o nome de “português” são também a nossa língua, de maneira que todo o mundo pudesse usar na Galiza em todas as esferas sociais, e com todas as garantias legais, a escrita consolidada nesse âmbito linguístico. Passaria, enfim, pela alfabetização em português da população e pela introdução de bens culturais do mundo lusófono no país.

Palavra Comum: Que relação achas que existe entre o Brasil e a Galiza? Para onde pode caminhar esse contato de maneira mutuamente enriquecedora?

Xoán Lagares: As relações culturais entre a Galiza e o Brasil são muitas, e começam, como é óbvio, pela língua. Mas podem traçar-se muitos paralelismos entre tradições e costumes, nas artes populares, e até mesmo em algumas configurações históricas. Muitas dessas continuidades culturais são possivelmente de caráter ibérico, mas nelas nos encontramos. Não há como negar o paralelismo entre as regueifas galegas e os repentes brasileiros, com sua continuação urbana e contemporânea no funk carioca, por exemplo. Ou não há como um galego não se sentir identificado nas celebrações do São João no nordeste, com milho, fogueira, sardinhas; ou na comida mineira, com a sua adoração à carne de porco. Também nos vemos na toponímia, nos Outeiros, nos Penedos…, e na antroponímia, nos Andrades, nos Pinheiros, nos Pitas, nos Gabeiras…

A Galiza é pouco conhecida no Brasil, o que também não é estranho, considerando as enormes diferenças de entidade política e geográfica entre ambas. Penso que as instituições políticas e culturais galegas deviam ter como objetivo estratégico dar a conhecer a Galiza, a sua língua e cultura, para além do Caminho de Santiago, no Brasil. Explorar a relação histórica para fazer circular por aqui nossos bens culturais e receber também os produzidos no Brasil, que muito poderiam enriquecer o panorama da nossa cultura.

Palavra Comum: Como vês a Galiza desde a distância?

Xoán Lagares: Vejo um país governado pelas mesmas forças reacionárias de sempre, responsáveis pelo empobrecimento da população nessa crise inventada para tornar mais precário o trabalho e favorecer o capital especulador. Fui testemunha distante, estando já no Brasil, do rearmamento do nacionalismo espanhol mais centralista e negador da diversidade, do afrouxamento da “tensão normalizadora” da língua galega, com retrocessos inaceitáveis na política linguística dos últimos anos. Espero que os recentes resultados das eleições municipais sejam um primeiro passo de mudança, para constituir o governo da maioria social identificada com o país e com valores e práticas de esquerda.

Palavra Comum: Como seria a tua Galiza imaginária? O que há dela na realmente existente que conheces?

Xoán Lagares: A Galiza que imagino não é muito diferente da que imaginara o galeguismo progressista, com a sua consigna: “Galiza, célula de universalidade. Anti-imperialismo, federalismo internacional e pacifismo”. Também me identifico com a ideia de Castelao da Galiza como uma cidade-jardim, onde as pessoas pudessem compaginar bem-estar material e respeito à natureza. Os galeguistas foram capazes de idealizar uma Galiza possível a partir da realidade existente, integrada no mundo e solidária com outras realidades. Abriram caminhos e identificaram horizontes que podemos explorar. Eu tento ir por aí…

Palavra Comum: E como é o Brasil em que levas morando tanto tempo? Conta-nos a tua experiência e o que sentes…

Xoán Lagares: O Brasil é, como todo o mundo sabe, um país imenso e extraordinariamente variado. Também é um país muito desigual e socialmente injusto. Na última década, desde a vitória de Lula, a desigualdade no Brasil experimentou um descenso considerável, com a incorporação da classe trabalhadora mais empobrecida ao mercado de consumo de bens e serviços. O Brasil também saiu do mapa da fome, graças a políticas básicas de transferência direta de renda, como o Bolsa Família. Mesmo com estes logros importantes, continua sendo um país terrivelmente injusto, pois o PT não foi capaz de desenvolver políticas permanentes de transferência de renda, como uma imprescindível reforma tributária e financeira. O sistema político brasileiro cria cenários muito complexos em que há pouco espaço para políticas realmente transformadoras. E não se vislumbram possibilidades de que seja implementada uma autêntica reforma política. Neste momento há uma onda reacionária no Brasil, que coincide com um congresso de maioria ultraconservadora e um início de crise econômica. O momento é de incerteza em relação ao futuro.

Eu, pessoalmente, sinto-me muito integrado no Brasil, sou professor numa universidade federal, e estou muito engajado na minha função de formador de professores para o ensino fundamental e médio. Este é um país muito acolhedor e fascinante, e é fácil sentir-se rapidamente em casa.

Palavra Comum: Que caminhos (estéticos, de comunicação das obras com a sociedade, etc.) estimas interessantes para a criação cultural hoje?

Xoán Lagares: Vivemos um momento em que as possibilidades de compartilhar experiências, de fazer circular os bens culturais e transcender o âmbito local são muito grandes. Penso que isso cria oportunidades enormes para culturas de países pequenos e periféricos, como a nossa. Os criadores galegos sabem (sabeis) disso, e cada vez mais se ensaiam caminhos alternativos, buscando parcerias e explorando recursos novos (como a relação com o português, por exemplo, mas não só). Falta apenas que as políticas culturais institucionais na Galiza acompanhem, incentivem e estimulem esse tipo de práticas.

Palavra Comum: Que projetos tens e quais gostarias chegar a desenvolver?

Xoán Lagares: Como pesquisador, estou desenvolvendo um projeto coletivo em parceria com linguistas galegos e brasileiros sobre a história linguística comum portugalega e as relações entre as variedades atuais. Eu tenho muito interesse, especificamente, em entender como se formam as dinâmicas normativas e como se relacionam com representações sociais e ideologias sobre as línguas. Penso que a comparação de processos entre línguas ou variedades próximas, como espanhol e galego-português, em diversas realidades sociais, pode ajudar a pensar as políticas linguísticas. Não deixo de publicar sobre o galego no Brasil, em obras coletivas e revistas, mas gostaria de escrever um livro tentando explicar a nossa realidade linguística ao público brasileiro. Sonho também com, algum dia, quem sabe, conseguir parceiros para realizar um documentário sobre o grupo linguístico portugalego.

Palavra Comum: O que achas de Palavra Comum? Que gostarias de ver também aqui?

Xoán Lagares: Acho Palavra Comum uma ótima iniciativa, uma publicação cultural importante e necessária. Muito completa, totalmente independente, e aberta a todas as tendências e ideias. Parabéns a todos os que o fazeis possível.


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