De regra são esses mesmos os nomes, na medida em que o direito penal quase sempre é feito para atingir os Josés e as Marias da vida.
Embora seja uma ética capenga, uma preservação formal em meio a tantos abusos, o mundo jurídico mantém esse costume.
O mesmo, entretanto, não acontece na imprensa que, para vender sua mercadoria, fotografa a pessoa, negrita e sublinha o nome do preso, mesmo havendo lei que garanta a privacidade e a dignidade da pessoa humana, inclusive da pessoa humana do preso, diga-se de passagem.
Assim, esse novo preso objeto da mídia, José Dirceu, que de comum com os demais presos só tem o José, está cumprindo uma pena que vai além da prevista em qualquer código penal do mundo e, se depender da indústria jornalística, uma pena perpétua, esta também vedada na Constituição Federal. Mas isso é só um detalhe.
Embora muitos outros Josés também experimentem grande exposição, a maior parte deles só serve para preencher um jornal ou um blog sem assunto, ficando à cargo do sistema penal a sua pena perpétua, desestruturando suas famílias e deixando-os sem poder conseguir emprego decente para o resto da vida.
Sim, enquanto um José parece abandonado por seus companheiros de partido, de luta política, os outros são abandonados por todos, mantido o abandono do Estado que, no caso dos Josés comuns, é o que acontece desde as suas infâncias.
Os juízes que mandam prender os Josés são os mesmos, mas a fama do juiz depende do José que foi preso. O juiz criminal, como o policial, só ganha notoriedade em cima da notoriedade do preso. É uma fama usurpada, mas há coisas, como fama e dignidade, passíveis de serem usurpadas à vontade no capitalismo.
Não sei se alguém já disse isso. Parecendo tão óbvio, provavelmente sim. De qualquer forma, se não disse, deve-se dizer: triste de uma sociedade que tem um juiz criminal como ídolo.
Ninguém gosta de juiz, falam da juizite, que juiz se acha Deus, dá carteirada, é arrogante, ganha demais e, isolado em seu gabinete, não percebe a injustiça social. Mas basta um juiz ser repertório desse sentimento que grassa – mistura de ódio com impotência política – para, de um momento para o outro, se transformar em verdadeira divindade.
E tome mais Josés na prisão, porque esse é o poder do olimpo dos tribunais: prender. Um juiz famoso porque prendeu alguém, seja José, João ou Dirceu, só estimula outros deuses a usar de igual milagre e a procurar idêntica beatificação.
E prende-se o preso. A cena da pessoa algemada repete-se centenas de vezes, mas causa o mesmo prazer em quem a vê. E, em uma espécie de multiplicação dos pães, lotam-se as penitenciárias carcomidas pela ruína do descaso.
Não havia transmissões internacionais, nem nacionais ou mesmo televisão na época em que Freud escreveu, contudo, o sentimento popular de prazer em ver alguém sendo encarcerado – totalmente desproporcional em uma sociedade onde as normas sobrevivem em farrapos – está incluído no que o pai da psicanálise chamou de pulsão de morte.
O que era para ser tristeza, desânimo e luto, porque o encarceramento é sempre a comprovação de nossa incompetência como sociedade, se transforma em prazer.
E se o oposto da pulsão de morte é a pulsão de vida, triste de uma sociedade que tem um juiz criminal como ídolo. Porque nós, juízes criminais, não somos mensageiros da vida, somos árbitros da miséria, guardiões da desgraça, anunciantes da ignomínia.
Devia ser vedado também divulgar o nome dos juízes das sentenças criminais.
*Luis Carlos Valois. Juiz de direito, mestre e doutorando em Criminologia pela Universidade de São Paulo, membro da Associação de Juízes para Democracia e porta-voz da Law Enforcement Against Prohibition (Associação de Agentes da Lei Contra a Proibição).