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imagesBrasil - Palavra Comum - Entrevista de Ramiro Torres ao músico brasileiro estabelecido na Galiza, Fred Martins.


Palavra Comum: O que é para ti a música?

Fred Martins: A minha geração teve a sorte de viver numa época em que ainda havia muita música de qualidade sendo difundida de forma maciça. Mais ainda no Brasil, onde a música popular desenvolveu-se de forma muito dinâmica, incorporando sempre elementos de outros géneros (estrangeiros), e alcançando tal sofisticação que em certos casos apaga as fronteiras entre o popular e erudito (Pixinguinha, Tom Jobim, Edu Lobo, Ernesto Nazaré, Hermeto Pascoal, Egberto Gismonti, Tom Zé, Arrigo Barnabé, etc).

Então, eu tive como aceder a esse repertório musical quase que espontaneamente, através do rádio e das TVs. Houve ali uma tradição muito forte da canção de rádio, da canção popular, com músicas dos autores já citados e outros como Noel Rosa, Ary Barroso, Luis Gonzaga, Dorival Caymmi, Caetano, Edu Lobo, Chico Buarque, Paulinho da Viola…etc. Essas músicas marcaram a memória coletiva de várias gerações. Também por viver no Brasil foi impossível estar imune a muitas manifestações populares: músicas de carnaval, o som das festas de Iemanjá nas praias nos fins de ano, terreiros da umbanda… Depois na família, através dos discos de meu irmão e minha irmã mais velhos, aprendi a apreciar a música rock. E através do meu pai, a música americana e os grandes sambistas brasileiros.

Então para mim, a princípio, o universo da música é basicamente esse: a música popular num tempo e lugar onde a sua presença quotidiana era muito forte.

Palavra Comum: Como entendes o processo de criação artística?

Fred Martins: Acho que o artista em geral tem uma capacidade de expressar ideias e sentimentos de uma forma sintética. Quando era muito pequeno passava horas a fio desenhando, e esse tempo era sempre muito mais interessante do que jogar futebol ou coisas do tipo. Às vezes demorava dias ou meses com um só desenho. Ou seja, investia bastante energia nesta tarefa. Mais tarde, com o passar dos anos, percebi que -naturalmente- aquilo dizia muito da minha percepção das coisas quando eu era menino. Mas curiosamente, uma parte desta minha visão das coisas se manteve até hoje. Quando comecei a compor, percebi que a sensação era a mesma que quando era pequeno e desenhava e ficava ali por muito tempo sozinho. É um sentimento forte criar algo que tem muito de nossa visão mais pessoal de ser e ver o mundo, mas que também pode fazer sentido para qualquer pessoa. É uma comunhão.

“Quem de dentro se si não sai
Vai morrer sem amar ninguém” (Vinícius de Moraes)

Palavra Comum: Qual consideras que é a relação existente -e qual pode chegar a ser- entre a música e outras artes (artes plásticas, audiovisuais, literatura, etc.)?

Fred Martins: Trabalho fundamentalmente com canção. Canção popular, músicaletra, música para ser letrada ou letra para ser cantada. Sabe-se que a literatura nasce com a voz, com a oralidade; ou seja, com a música. Então posso dizer que o meu trabalho (e de meus parceiros letristas) se situa especificamente na fronteira da música e da literatura. Tive um longo tempo de formação onde estudei instrumento, outros géneros de música com elementos de jazz, algo de música clássica -harmonia, contraponto, composição, arranjo- participei de grupos de música instrumental, trabalhei como músico acompanhando outros grupos…Mas ao fim o meu projeto sempre esteve ligado à composição de canções. Tive a sorte de conviver, logo no começo do meu percurso, com poetas que admiro muito, e que se tornaram meus parceiros nas canções. Há quem pense que no Brasil, como é um país com um nível de leitura muito baixo, essa canção de rádio, a canção popular, cumpriu em certo momento a função da literatura. É, de fato, notório que a canção brasileira trata de muitos aspectos da vida com profundidade e poesia (com arte).

Fora isso, a relação estética ou formal entre música e outras áreas de expressão é comum e motivo de muita análise. No meu trabalho sempre tento buscar uma adequação dos outros elementos relacionados ao repertório que trabalho no momento (por ex. na imagem: através das capas dos cds, cartaz para concerto, iluminação, vídeos…)

Palavra Comum: De quem te sentes, criativamente, filho ou irmão?

Fred Martins: O meu gosto foi moldado pela estética da bossa nova, do João Gilberto, do Tom Jobim… que prima pela economia de meios. A bossa nova foi uma grande renovação na música brasileira. Mas foi uma revolução generosa porque abraçou toda uma linhagem de grandes autores de gerações anteriores. É uma música muito moderna mas com toda a alma, todo o suingue e a riqueza rítmica da música dos pretos do Brasil (ou seja, do samba, basicamente). Boa parte do repertório do João Gilberto, por exemplo, além dos autores contemporâneos, é feito de sambas pescados em décadas anteriores. Pode-se dizer que a bossa também foi generosa com o futuro, porque vários dos seus expoentes já consagrados como Tom Jobim, João Gilberto ou Vinícius de Moraes, além do legado que deixaram, fizeram colaborações e parcerias com músicos mais jovens, como a geração do Edu Lobo, Caetano Veloso, Chico Buarque e Milton do Nascimento. Vejo muito claramente um franco diálogo de quase um século que atravessa várias gerações de criadores na música brasileira. Assim, gostaria de que o meu trabalho – que não é apenas meu, pois trabalho regularmente com parceiros letristas: Roberto Bozzetti, Marcelo Diniz, Manoel Gomes, Alexandre Lemos, Francisco Bosco, Fred Girauta – fizesse parte de alguma forma dessa família milionária de músicos que mantêm acesso esse diálogo.

Palavra Comum: Que músicas/músicos -ora criador@s e grupos, ora estilos e formas musicais- reivindicarias por não serem suficientemente (re)conhecidos (ainda)?

Fred Martins: De uma maneira geral acho que a música com arte é pouco contemplada no dia de hoje. É uma época de um grande desnorteio, não só para a música, mas em termos de pensamento em geral. O mercantilismo exacerbado e a lógica da publicidade assumiram o controle das instituições sociais, e ainda mais no mundo cultural. Então podemos enumerar milhares de músicas, poemas, livros, filmes e projetos interessantes que não chegam ao conhecimento do público. Mesmo os clássicos, os que já se consagraram com o tempo, e que formaram solo firme para se dar qualquer passo adiante, agora andam fora do repertório que é difundido em larga escala. E que acontece se desconhecemos o já feito? Perdemos a capacidade de avaliar o atual. Justo agora, que acumulamos toneladas de informação por segundo ao alcance de uma tecla, é que nos faz falta dados mais sólidos para se depurar o joio do trigo.

Há um samba do Paulinho da Viola (Dança da Solidão), que diz:

“Meu pai sempre me dizia
Meu filho, tome cuidado
Quando penso no futuro
Não esqueço o meu passado”

Palavra Comum: Levas morando um tempo na Galiza. Qual achas que é a relação existente entre a música galega e a brasileira? Como valoras as tuas experiências musicais aqui?

Fred Martins: Há ritmos semelhantes a algum tipo de métricas que se encontram lá no Brasil, mais especificamente no Nordeste. Por exemplo, existe semelhança entre a batida da rumba galega e a batida do baião, ou côco. O uso de pandeiro e voz e na formação instrumental tipica de percussão, acordeão (ou sopro) e voz. Acho que há uma tendência na música galega mais atual de adicionar elementos da música internacional à base própria do país, esse procedimento é típico do que chamamos no Brasil de MPB.

Quanto à minha experiência aqui, avalio de uma maneira muito positiva porque há músicos de alto nível e abertos a projetos novos. Gravei um disco com a Ugia Pedreira, produzido pelo Pedro Pascual, pessoas atuantes na música do país. Acabo de gravar um disco em Portugal em que a escolha do repertório tem muito a ver com a minha experiência aqui, com algumas músicas que apresentei por primeira vez ao público daqui.

Palavra Comum: Que caminhos (estéticos, de comunicação das suas criações à sociedade, etc.) estimas interessantes para um músico no dia de hoje?

Fred Martins: Acho que há que aproveitar o pleno acesso à informação e ir a fundo em determinado género que mais lhe apeteça. Mas também aprender a escutar “outras vozes”, outras formas de sentir a música. Também acho importante não se fechar só na música para não virar aquele músico bobalhão que perde um pouco, ou totalmente, o pé do chão do mundo que o cerca.

Palavra Comum: Que projetos tens e quais gostarias chegar a desenvolver?

Fred Martins: Estou prestes a lançar o meu primeiro disco solo aqui que é uma revisão da minha trajetória até o momento. Tenho ideias de projetos muito diferentes, como um disco só voz e violão ou outro seguindo a linha do disco Guanabara, que é basicamente sobre a musicalidade do Rio de Janeiro, bossa/samba. Outro que abordaria o repertório mais ou menos “rock” que tenho feito. E basicamente isso, seguir compondo e com saúde.

Palavra Comum: Que achas de Palavra Comum? Que gostarias de ver também aquí?

Fred Martins: Fantástico! O Palavra Comum vem trilhando um caminho bem bonito. Há que se cultivar o espírito disseminando boas ideias e experiências, né? Afinal a vida é um sopro.


Ramiro Torres nasceu na Corunha no 1973 e estudou Graduado Social. Tem publicado poemas na revista 'Poseidónia' e 'Agália', assim como no blogues 'A fábrica' e 'A fábrica da preguiça'. Inaugurou as edições do Grupo Surrealista Galego com o seu livro "Esplendor Arcano".

 


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