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021214 bate bola-3Brasil - Le Monde Diplomatique - [Felipe Bragança] Os meninos ao redor, todos também mascarados e trajando seus mantos, cantam trechos curtos e repetitivos de algum funk afiado e ingênuo, enquanto ao longe explodem fogos de outra “turma” de mascarados pronta para sair às ruas.


Ilustração: Lollo.

1

O tecido pesa mais quando está molhado de suor. Dentro da máscara, a respiração tem o som amplificado e a rua se parece com um filme bonito, passando atrás de um filtro muito leve. Os meninos ao redor, todos também mascarados e trajando seus mantos, cantam trechos curtos e repetitivos de algum funk afiado e ingênuo, enquanto ao longe explodem fogos de outra “turma” de mascarados pronta para sair às ruas.

Aqui, somos quarenta, temos em torno de vinte e trinta anos – alguns um pouco mais velhos, outros ainda muito jovens. Os fogos no horizonte chamam nossa atenção e caminhamos saltando, gritando e fazendo barulho pelas ruas das zonas Norte e Oeste do Rio de Janeiro.

Carregamos uma sombrinha que nos abençoa ou uma bola feita de plástico presa a um pedaço de madeira que ressoa no chão como um estouro. Somos clóvis, somos clowns, somos bate-bolas.

Eu, bate-bola.

2

O que eu uso, hoje, é mais do que uma fantasia – é um traje de gala, uma armadura simbólica, uma insurreição de beleza em meio à ideia de ruas meramente feitas para nos levar do trabalho para casa, do cansaço para o sono.

Organizados estamos em grupos em torno de um ou mais “cabeças” que nos lideram e organizam, e assim saímos para a rua buscando atuar o nosso lugar único e verdadeiro, onde transformamos a diversão e o prazer em um momento de aventura, amores, magia, imaginação, resistência, música e amizade.

Somos tão antigos quanto o desejo do homem de se libertar nesta cidade. Somos tão antigos quanto o desejo das ruas da cidade de serem engolidas por quem realmente as ama.

3

No norte de Portugal, meninos entre quinze e vinte e poucos anos se reúnem desde a Idade Média, dizem os livros, na região da cidade de Bragança, usando máscaras de couro e roupas coloridas de restos de pano e lona, carregando cajados de madeira e bexigas de boi secas e amarradas e varas de pau.

É a “Festa dos Rapazes”, que toma as ruelas, as estradinhas, as matas e bosques frios do inverno europeu. Sobem pelas ruas, pelos muros, pelas sacadas das casas, pedindo em namoro meninas impossíveis, dançando para elas, assustando as crianças, criando algazarra e confusão em uma paisagem rural feita de repetição, disciplina e ordem.

A liberdade de gerar o espanto. O espanto que a liberdade deles cria nos lugares por onde pisam, indo de vila em vila, de igrejinha em igrejinha, desafiando simbolicamente o desejo de colocar a vida nos limites da obediência e da pureza.

São meio demônios? Meio monstros? Meio ruídos nas colinas?

4

Folclore ou invenção?

A ideia de pureza passa longe dessas roupas que se esbarram, cumprimentam e desafiam nas ruas de Marechal Hermes e nos outros coretos da cidade.

O glitter usado para fazer brilhar os tecidos – e que gruda em tudo, na pele, no cabelo, na barba, na boca – é só a última camada de uma cultura toda feita de camadas, de uma cultura de confusão, sobreposições e colagens. Não há pureza em ser um bate-bola, não há pureza em ser um clóvis, não há pureza em ser um clown.

O manto que carregamos é português, é celta, é africano, é de plástico, é japonês, é pop, é feminino, é masculino, é funk, é marchinha, é aventura, é amor e é farra.

O funk de cada turma, gritado por todos, é sujo e brincalhão, é original e imitação, é comum como um hino e é de cada um como uma reza. Somos o mistério e a graça, e o mistério e a graça são sempre impuros. Folclore? Cultura a ser preservada? O orgulho que sentimos por sermos reconhecidos como “patrimônio” é a mesma certeza de que nunca vamos aceitar ser colocados em um cabide para mera exposição como uma cultura pronta, como um traje a ser repetido. Bate-bolas não desfilam. Fomos e seremos sempre vultos ressabiados, indo e vindo, aparecendo e desaparecendo, simpáticos e arredios em um mesmo movimento – como o nosso rosto que sempre está e não está.

Não há obediência possível em ser um bate-bola, um clóvis. Há, sim, fidelidade e lealdade. Há, sim, sentimento de um mundo a habitar.

Qual mundo?

5

A caminho de Nilópolis, nosso ônibus é parado por um cerco policial. Descemos em fila – somos cerca de cinquenta mascarados de dois grupos diferentes que andavam juntos ali. Somos obrigados a tirar as máscaras, colocar as mãos na parede e ouvir gritos de ordem de um policial que nos aponta sua arma sem maiores explicações.

Somos revistados um a um, à procura de drogas e armas. Remexem em nossos mantos e em nossas máscaras. Mas não encontram nada.

As fantasias jogadas na calçada escura e o medo nos olhos dos meninos mais novos incomodam. Um deles leva um tapa no rosto. Um tapa no rosto por ter ficado desorientado sobre onde deveria se colocar para a revista – mãos na parede, perna aberta, sem máscara. Apesar de estarmos “limpos”, com nada que representasse uma real ameaça à segurança física de outras pessoas, somos obrigados pelos policiais a subir de volta em nosso ônibus fretado e voltar para casa. São “ordens superiores”, nas palavras do policial, que proibiram que qualquer grupo de bate-bolas se aproximasse do Carnaval de Nilópolis nesse ano de 2013. Perguntamos o porquê. O motivo. Perguntamos do direito de ir e vir. Do direito de criar algazarra no Carnaval se isso não representar perigo real a ninguém. As respostas são secas e evasivas.

A velha luta simbólica entre a ordem repressora e a alegria desequilibrante (que está o tempo todo nas entrelinhas do Rio de Janeiro) vem à tona sem meios-termos no Carnaval. “É uma questão de precaução”, dizem os policiais. E perguntamos: usar roupas de bate-bolas é considerado atitude suspeita e agressiva e, portanto, cabível de desconfiança? Eu poderia dizer o mesmo de uma farda da PM naquelas ruas escuras da Baixada? Ou estaria sendo simplista e preconceituoso?

Por fim, somos escoltados por um camburão até Marechal Hermes, como bandidos, e lá encontramos outros dez, vinte, trinta grupos de mascarados também proibidos de ir a Nilópolis aquele dia, que resolveram se reunir por ali em torno do pequeno coreto do bairro. Há policiamento ao redor, mas ali os bate-bolas e clóvis parecem ser tolerados como em uma zona de segurança cultural, exclusivista nesse teatro da paz-sob-armas.

Nenhuma briga real é registrada, nenhum conflito real é visto. Mais tarde, o estopim da operação nos chega aos ouvidos: um menino, um bate-bola como nós, havia sido morto aquela noite em uma briga entre componentes de duas turmas – dizem que em Bento Ribeiro, não muito longe de nós. Duas turmas – entre as mais de quatrocentas (400!) que podem ser encontradas nas ruas da cidade – haviam desencadeado toda aquela repressão e colocado todos os grupos no mesmo cerco policial (concreto e simbólico).

É evidente, e os números mostram, que a violência em aglomerações no Carnaval carioca não está limitada aos grupos de bate-bolas (outras mortes e brigas infelizmente aconteceram, sem nenhuma relação com eles – em bares, em blocos, em esquinas e até com uma bala perdida de um policial), mas está claro há muito tempo que somos alvo fácil para o exercício da repressão exemplar: somos desobedientes e bagunceiros por natureza e nos identificamos como tal por meio de nossos trajes e nossos signos.

Nossos rituais em comum e trajes representando caos e brincadeira nos tornam parte de uma massa simbólica que se faz um prato cheio para as soluções policiais generalistas e para a infiltração de indivíduos procurando resolver disputas de poder pessoais sob o manto da tradição. (Já vimos acontecer algo semelhante em décadas passadas com o movimento funk ou, muito antes, com o universo do samba – antes de sua oficialização e apaziguamento como “bem cultural”.)

Entre a raiva da truculência policial e a vontade de chorar, os meninos mais novos dançam com suas fantasias coloridas e os mais velhos esfriam a cabeça com cerveja e cachaça.

Entre um lado e outro, coloco apenas a minha máscara de volta e danço por cerca de quarenta minutos de camiseta e short, com rosto coberto, em meio à massa de meninos felizes.

Por um instante, a noite está salva. A alegria se faz possível no combate contra o medo da morte que sobrevoa a tudo. E eu diria, por fim, aos arautos da paz armada, que nossa alegria é um tipo de morte momentânea e potente que nos permite levantar de novo amanhã e esquecer os gritos, o tapa no rosto, as máscaras jogadas no chão.

6

“Somos belos. Os mais belos”, dizem uns. “Somos fortes, os mais fortes”, dizem outros. É preciso entender: em todo o Carnaval, caminhando em mais de dez bairros, vimos muitas discussões, provocações, xingamentos, desafios, cantos, esbarrões entre as turmas. Vi muito sangue fervendo dentro do corpo, das máscaras quentes e do tecido pesado – mas nenhum sangue fora das veias, na calçada, nada além do sangue que nos sai das bolhas que se formam nos pés e por vezes nos calos das mãos por passar quatro noites seguidas carregando nossos objetos de ornamento e brincadeira. É preciso, porém, pensar mais: a morte, a dona morte, é, sim, um tema que está em toda representação monstruosa, não humana, hiperbólica, da qual fazemos parte.

Como os palhaços da Folia de Reis, que tem origens muito semelhantes em nossos fios de história, nós, os bate-bolas e clóvis, representamos também o engano, o erro, o ruído, os Exus, os sacis, Loki, a batalha simbólica do homem com o imponderável, o inusitado e o que nos tira do repouso, do conforto, do planejado. As bombinhas estouradas nas ruas, a batida forte das bolas de plástico no chão quando passam correndo no meio da multidão, o mistério das máscaras e das sombrinhas que caminham em linha projetadas como uma tropa de deuses entre foliões perdidos na festa – tudo ali fala também dos espíritos, do invisível e do imponderável – nos lembra dessa silenciosa certeza de estarmos ali para celebrar a vida. As potências da vida.

Arrisco dizer: quando grupos diferentes de bate-bolas se desafiam e nos desafiam, sem partir para agressões físicas, o que vemos é uma das mais belas representações teatrais do embate diário de todos os homens e de todas as mulheres diante do desejo de beleza do espírito contra uma política de representação urbana que muitas vezes só quer nossos corpos como objetos eficientes, úteis e bem-acabados para o funcionamento da máquina urbana.

Eis a questão que tanto incomoda a alguns: como clowns, somos inúteis e inacabados – somos parafusos fora do lugar. Todos os bate-bolas são. Como a morte. Como a representação do egum do candomblé – a morte, sem rosto, misteriosa, bela, maravilhosa, nos convidando a nos agarrar à vida com todo o desejo e a vontade de potência criativa, misturando tudo em nosso corpo feito de pano e glitter e funk e marchinhas e couro dos animais que antes nos vestiam e trilhos de trem e cimento e asfalto e beijo na boca e cerveja e orixás e São Jorge e riso. E por isso, todos os anos, nossa fantasia é trocada, jogada fora, reinventada, renovada, recriada sempre nesse gesto de insuficiência, desejo e lealdade. A morte e a invenção estão em tudo que vale a pena na vida.

7

Mas que estranhos poderes nos fazem suportar tanto calor e peso e medo nos dias de Carnaval?

Os mais velhos falam que ao colocar uma roupa de bate-bola você recebe uma entidade, alguma coisa entre egum, Exu, Ogum ou anjo.

Apesar de todas as humilhações, alguma coisa nos recebe no colo quando colocamos a máscara, nos levando para dançar e brincar, e cumprimos nossa missão todos os anos. Essa defesa caótica dos bairros e ruas onde vivemos e onde nossos amigos vivem.

Nesta cidade onde, disfarçados de gente comum, caminhamos pelo resto do ano em roupas comuns.

Clowns, clóvis, bate-bolas se escondem em bares, restaurantes, escritórios, lava-jatos, carros, supermercados, metrôs, trens, ruas, esquinas. Cansados, sabemos que vamos passar agora onze meses disfarçados. Olhando a cidade, absorvendo sua cultura, seus dilemas, desafios. Olhando nossos amigos, nossos companheiros, enquanto geramos dentro de nós esse sentimento de novo, esse sentimento que parece fazer nosso pulso sair do peito e se abrir em flor, em forma de cores e magia, e rostos novos e mutantes, como cavaleiros de um desafio maior que começa na farra e vira maravilhamento absoluto.

Nosso juramento, feito antes de sairmos, nossa reza, é para que todos estejam bem ao voltar – nós e todas as turmas – e para que a cidade não se esqueça de si, para que a cidade se lembre do que ela é feita: de caos e mistério e desafios e invenção... e de amizades no meio disso.

Essa é nossa missão. Todos os anos. Uma pequena contribuição que esses homens, mulheres, meninos e meninas mascarados dão para o espaço público urbano carioca. Para que a cidade não se aceite terminada e eficiente, não se aceite apenas cimento e ferro bem colocados, não se aceite apenas útil, obediente e bem-sucedida.

8

Flashback: coloco a meia de lycra, depois os sapatos, depois o manto, depois as luvas, depois minha máscara. Explodem mil fogos no ar da pracinha que nos espera cercada de nossos vizinhos, amigos, companheiros de máscara. E corremos todos para a rua. E pulamos e gritamos. Fábulas em torno de guerreiros, festa, Carnaval e poderes mágicos me vêm à mente. E, pelos cinco minutos em que os fogos estouram, eu acredito absolutamente nas pessoas da minha cidade.
 

Felipe Bragança é cineasta e criador do projeto transmídia Claun, que terá a graphic novel Claun: a saga dos bate-bolaspublicada neste mês pela Barricada. É integrante de um grupo de bate-bolas na zona norte do Rio de Janeiro.

Ficha técnica

O autor deste texto lança neste mês o livro Claun: a saga dos bate-bolas.

Veja abaixo mais infomações.

Título: Claun: a saga dos bate-bolas

Autor: Felipe Bragança

Arte: Daniel Sake, Diego Sanchez e Gustavo M. Bragança

Páginas: a definir

ISBN: 978-85-7559-393-6

Preço: a definir

Ano: 2014

Editora: Barricada.


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