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200316 maniBrasil - O Diário - [Ana Saldanha] Escrito aquando da nomeação de Lula para o cargo de ministro da Casa Civil de Dilma e antes da sua suspensão por um tribunal, este texto de Ana Saldanha não só mantém plena actualidade, como nos diz o quê e porquê da crise política brasileira, e o como da ascensão e da queda do PT e do chamado «neodesenvolvimentismo» brasileiro.


«Chamemos ou não à política posta em prática pelos governos PT de neodesenvolvimentismo, o facto é que se verificou um poder absoluto dos trusts e das corporações monopolistas, dos bancos e da oligarquia financeira. O modo de produção capitalista e suas consequentes relações sociais, a par do travão à contestação que os governos do PT conseguiram alcançar, prosseguiu a largos passos. Lula havia servido o grande capital transnacionalizado, e Dilma prosseguira o empenho lulista».

O Brasil no rescaldo das manifestações de 13 de março

No domingo, dia 13 de março, não foi o Brasil que saiu à rua. Foram camadas da população e estratos sociais endinheirados, foi a burguesia, acompanhada também por setores desfavorecidos da população, é certo, trabalhadores, é certo, os quais, no entanto, não eram representativos da maioria daqueles que trocaram o footing de domingo, na Paulista ou em Copacabana, por uma passeata que nos remete para tempos obscurantistas recentes, ainda frescos na memória deste continente.

No domingo, dia 13 de março, os arredores da Av. Paulista regurgitavam camisas amarelas e verdes, chapéus verdes e amarelos, calças e calções de marca, cabelos tingidos de amarelo (são as patrícias, na cultura brasileira, ou as tias, na cultura portuguesa), ténis Nike, Adidas ou Puma. E botox, silicone, seios desmesurados, risos plastificados, e tanta, tanta ignorância concentrada nos mais de 2 km de extensão daquela avenida.

Subir pela Avenida Angélica, em direção à Avenida Paulista, atravessando Santa Cecília, é o mesmo que subir na hierarquia social paulista. Iniciando a caminhada no início da Avenida Angélica, quanto mais avançamos na íngreme escalada, quanto mais nos acercamos daquela Avenida maior, maior é também o preço do metro quadrado.

Se o PIB do Brasil fosse medido em silicone, o indicador principal de medição da produção econômica, no interior de um país, teria a sua concentração máxima, no caso brasileiro, nas avenidas de Copacabana, no Rio de Janeiro, e na Avenida Paulista, em São Paulo, neste domingo, dia 13 de março.

Corpos estereotipados, caras violentamente agredidas por plásticas, seios e bundas desmesurados, cada bochecha preenchida de botox corresponde ao salário mínimo mensal brasileiro – ganho por praticamente metade da população. Com efeito, 44.8% dos 60.8 milhões de agregados familiares com rendimento declarado vivem, apenas, com um salário mínimo (dados do Instituto Brasileiro de Geografia e Estatística (IBGE), 2014). Assim sendo, mais de 44% dos lares brasileiros vive com metade do custo de um par de bochechas ou de nádegas, que no domingo passeava pelas principais avenidas das grandes cidades brasileiras. Imagine-se, desta forma, a concentração de capital verificada nos pares de bochechas, de seios e de bundas que naquele dia se juntaram. Isto sem falar dos ténis, das calças e das camisas.

Se o sistema monetário parteiro do FMI, o sistema de Bretton Woods (fruto do acordo homónimo assinado em 1944, extinto de facto em 1971 quando Nixon recusa a convertibilidade dos dólares em ouro) voltasse a entrar em vigor, não tendo, contudo, como referente o ouro, mas o silicone, o Banco Central do Brasil teria de construir muralhas na zona oeste de São Paulo e na zona sul do Rio de Janeiro para proteger as suas sempre crescentes reservas.

PT: da ascensão à queda

O Partido dos Trabalhadores (PT) e Luiz Inácio Lula da Silva haviam sido o motor da esperança num Brasil depauperado, num Brasil com fome, num Brasil cuja taxa de desemprego, em 2002, ascendia a 12%, num Brasil cuja dívida pública duplicou no governo de Fernando Henrique Cardoso, num Brasil onde grassava a corrupção, a violência e a miséria.

Neste quadro, Lula e o PT surgiram como a esperança anunciada de um Brasil novo.

A esperança, no entanto, seria um logro. O Brasil novo esperançosamente esperado pela maioria explorada, nunca chegaria.

Certo: o programa Bolsa Família chega a 45,8 milhões de brasileiros (ou seja, um em cada quatro brasileiros é beneficiário do programa instituído pelo governo de Lula, em 2003), enquanto o coeficiente de Gini, que em 2003 era de 0.59, passou, em 2012, para 0.519 [ ] (apesar dos avanços, o índice de Gini do Brasil é um dos piores do mundo. Entre os 127 países analisados, em 2012, o Brasil encontrava-se na 120ª posição). Se em 2004, os 10% mais ricos concentravam 45.3% da renda, e os 10% mais pobres se contentavam com 0.9%, em 2012, os 10% mais ricos controlavam 41.9% da renda nacional e os 10% mais pobres possuíam 1.1% da renda nacional (dados do IBGE, 2013). A diferença é pequena, mas representa uma ligeira melhoria da distribuição da renda. Tudo isto é certo. E merece ser dito, louvado e não esquecido.

Mas também é certo que a esta política de redistribuição esteve subjacente uma perspetiva ideológica de conciliação de classes, que permitiu travar as manifestações de descontentamento das camadas mais empobrecidas da população, num momento muito particular da vida latino-americana.

Num contexto socio-histórico e econômico da América latina marcado pela vitória de Hugo Chavez, nas eleições presidenciais de 2002, pela vitória de Evo Morales, nas eleições presidenciais de 2005, pela vitória de Rafael Correa, nas eleições presidenciais de 2007, quando forças progressistas avançavam no plano eleitoral e alcançavam, no quadro da democracia burguesa, vitórias eleitorais históricas, quando um ciclo de alta dos preços internacionais das commodities e do barril de petróleo se iniciava (em dezembro de 2002 o preço do barril de petróleo bruto era de 27,89 dólares e em junho de 2008 atingia os 132,55 dólares) – ou seja, num momento em que o capitalismo permitia o crescimento dos índices econômicos dos países latino-americanos -, a burguesia brasileira decide fazer um pacto com o Partido dos Trabalhadores.

A política de uma melhor redistribuição da riqueza e de alguns avanços no plano social seria, contudo, concomitante com uma política de aprofundamento do capitalismo.

PT, Lula e capitalismo

A essa política redistribuidora, na qual o Estado se assume como o promotor da economia, alguns economistas e cientistas sociais – tendo como ponto de partida as teorias cepalinas (Comissão Econômica para a América Latina e o Caribe – CEPAL) dos anos 60 e uma perspetiva neokeynesiana – designam de neodesenvolvimentista.

À política posta em prática pelos governos de Lula e de Dilma não correspondeu, no entanto, o anunciado fim do neoliberalismo (conceito que, na realidade, corresponde ao aprofundamento do capitalismo monopolista de Estado) no Brasil. Chamemos ou não à política posta em prática pelos governos PT de neodesenvolvimentismo, o facto é que se verificou um poder absoluto dos trusts e das corporações monopolistas, dos bancos e da oligarquia financeira. O modo de produção capitalista e suas consequentes relações sociais, a par do travão à contestação que os governos do PT conseguiram alcançar, prosseguiu a largos passos. Lula havia servido o grande capital transnacionalizado, e Dilma prosseguira o empenho lulista. Como nos diz Maria Orlanda Pinassi ((Neo)desenvolvimentismo ou luta de classes?, 2013):

«Segundo consta, o Estado procuraria, então [no neodesenvolvimentismo], recompor sua função (de “alívio”) social – através da criação de empregos (quase sempre precários e temporários), políticas de recuperação do salário mínimo e redistribuição de renda (Bolsas Família, Escola, Desemprego etc.) -, enquanto a economia se renacionalizaria por meio de financiamentos do BNDES [Banco Nacional de Desenvolvimento Econômico e Social] à reindustrialização pautada na substituição de importações. Argumentos fortemente questionáveis visto que as empresas públicas privatizadas hoje são fortemente controladas por capitais externos (vide Vale), numa lógica em que a economia transnacionalizada do sistema reconduz o Brasil ao papel produtor de bens primários para exportação.

(...) O capital, em processo de crise generalizada, tem pouco a lamentar e muito a comemorar por aqui: veja-se a estratosférica lucratividade bancária e o enorme crescimento da indústria da construção civil. Mais impressionante ainda é o desempenho da mineração, do agronegócio, do setor energético e dos números que apontam para o grande aumento de áreas agricultáveis, de florestas, de rios e outras tantas de proteção ambiental, invadidas e destruídas por pasto, monocultivo de cana, de soja, de celulose, de laranja, por extração mineral, por barragens».

No entanto, hoje, à grande burguesia detentora dos meios de produção, ao grande capital nacional em associação com o grande capital estrangeiro, o governo do PT já não é necessário. A grande burguesia, depois de 14 anos de governo PT, logrou alcançar uma vitória ideológica, apenas possível após a passagem do PT pelas altas esferas das instituições burguesas: a ideia de que a política posta em prática pelo PT é uma política progressista, até mesmo socialista. O que é falso. Redondamente falso.

O PT pôs em prática uma política ao serviço dos grandes grupos econômicos brasileiros (os quais se encontram associados ao capital estrangeiro), entregou setores da economia brasileira ao capital externo (concessão de mais de 2,5 mil km de rodovias ao grupo espanhol OHL, privatização do Banco do Estado do Pará, privatização do Banco do Estado do Maranhão, privatização da hidroelétrica de Santo Antônio, privatização da hidroelétrica Jirau – consórcio Suez Energy South América (50,1%), Camargo Corrêa (9,9%), Eletrosul (20%) e Companhia Hidro Elétrica do São Francisco (20%) -, entrega de alguns campos da bacia de petróleo do pré-sal, continuação das concessões para exploração da transmissão de energia, venda de participações minoritárias em empresas que tinham sido privatizadas), enquanto impulsionou a expansão do agronegócio e fez do Brasil um dos maiores produtores e exportadores do planeta (em 2013, este setor foi responsável por 41.28% das exportações brasileiras) . Segundo dados do IBGE para 2012, o contingente de 1% dos brasileiros mais ricos ganhava quase cem vezes mais do que o contingente dos 10% mais pobres.

O PT, aplicando uma política ao serviço dos grandes grupos econômicos, não apenas traiu a sua base social e eleitoral, mas demonstrou ser um partido com o qual a classe dominante brasileira poderá sempre contar, contra os interesses da classe operária, contra os interesses dos trabalhadores. Um partido corrupto e corruptível, que demonstrou que o exercício do poder numa democracia burguesa não apenas confirma que “o partido dominante de uma democracia burguesa só garante a protecção da minoria” (V.I. Lénine, A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky), como que a própria democracia burguesa, apesar de representar um progresso histórico relativamente aos modos de produção precedentes, “continua a ser sempre (...) estreita, amputada, falsa, hipócrita, paraíso para os ricos, uma armadilha e um engano para os explorados, para os pobres” (V. I. Lénine, A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky).

O PT não foi, nem será nunca, o partido dos trabalhadores. A sua ação sempre se pautará pela defesa da minoria exploradora, pelo aprofundamento do capitalismo, pela defesa das instituições que garantem o exercício de poder por essa mesma minoria, afastando “as massas da administração, da liberdade de reunião e de imprensa, etc.” (V. I. Lénine, A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky), tentando escamotear o facto de que, na realidade, “mil barreiras fecham às massas trabalhadoras a participação no parlamento burguês (que nunca resolve as questões mais importantes na democracia burguesa: estas são resolvidas pela Bolsa e pelos bancos)” (V. I. Lénine, A Revolução Proletária e o Renegado Kautsky). Sem nunca se posicionar ideologicamente do ponto de vista das classes oprimidas, o PT, através da corrupção, da mentira, do engano, tentou sempre fazer crer às massas exploradas que a ordem capitalista, e as desigualdades que lhe são inerentes, são uma inevitabilidade histórica.

Lutar pelo Trabalho, contra o Capital

A classe operária, as diferentes camadas de trabalhadores, os estratos mais empobrecidos da população têm razões para sair à rua.

No quadro atual da luta entre Trabalho e Capital, a maioria explorada deve abrir caminho para lutas maiores e obrigar o capital a retroceder: combater o plano de privatizações impulsionado por Fernando Henrique Cardoso e prosseguido por Lula e por Dilma, exigir a prometida e traída Reforma Agrária, lutar contra a precariedade laboral, contra o trabalho escravo que subsiste em muitos setores, pela dignidade no trabalho, por condições de habitação dignas, pela reposição dos cortes nos programas sociais, contra a promiscuidade entre o Estado e os interesses econômicos de uma minoria, por uma educação e por um serviço de saúde públicos, universais e de qualidade, contra a exclusão e marginalização social de camadas da população pertencentes à maioria explorada, contra os megaprojetos do agronegócio e da agroindústria, contra a entrega da Natureza à iniciativa privada, pela salvaguarda do direito à terra dos povos ameríndios, contra o assassinato e a perseguição a líderes e militantes de movimentos sociais e políticos.

Estas não são, no entanto, as bandeiras de luta da burguesia e seus acólitos endinheirados que no domingo saíram à rua.

No atual contexto de retrocesso civilizacional e ideológico na América latina, em que a correlação de forças parece ser mais favorável ao Capital, num quadro da luta de classes em que as forças mais reacionárias, guiadas pelas grandes burguesias nacionais associadas ao capital estrangeiro, buscam impor-se sem travões nem amarras, destruindo as conquistas alcançadas pelo Trabalho nos últimos 15 anos no continente, a classe dominante brasileira, apoiada pelas suas congéneres exteriores, não precisa do PT.

A burguesia brasileira já não precisa da política de conciliação classista impulsionada pelo governo Lula. Já não precisa de travar o movimento popular emancipatório e de reivindicação do início do milénio. Já conseguiu expandir a falsa ideia de que a política do PT é uma política progressista. Sabe que a correlação de forças lhe é, neste momento, favorável, manipulando a seu favor as instituições do Estado por ela criadas, e para ela criadas.

Lula, o ex-presidente que se havia tornado o palestrante mais caro do Brasil, cobrando cachets que variavam entre os 200 mil reais e os 790 mil reais, que deu palestras para multinacionais como a LG, a Telefônica, a Microsoft, a Acapulco, a Associação dos Bancos do México, o Bank of América Merril Lynch, este Lula e o seu governo criaram, como afirma o Partido Comunista Brasileiro (PCB), na sua nota política de 6 de março de 2016, “o terreno pantanoso em que agora se afunda[m]”.

Abandonado pela classe dominante que havia servido, Lula volta-se, hoje, de novo, para a base social e eleitoral que o levara ao poder em outubro de 2002. Essa mesma base social e eleitoral que, no terreno da luta de classes, se viu traída e defraudada por aquele Presidente que, antes de ser o palestrante mais caro do Brasil, havia sido o sindicalista torneiro mecânico que afirmava, caso um dia fosse eleito Presidente da República, que iria “provar que você pode tranquilamente botar corrupto na cadeia. (...) O grande rouba sem-vergonha e, esse, nós precisamos de colocar na cadeia” (vide https://www.youtube.com/watch?v=TBwvT5nTUEo).

Ao assumir, hoje, dia 16 de março, a Casa Civil (ministério mais importante no Brasil, correspondendo ao de Primeiro-Ministro, em outros regimes parlamentares burgueses), as investigações de corrupção que, atualmente, sobre ele pesam, deixam de estar sob a alçada do juiz de Primeira Instância e passam a estar sob a jurisdição do Supremo Tribunal Federal (STF). Esta nomeação ministerial vem confirmar a corruptibilidade e perversão ideológica de Lula, descredibilizando-o, descredibilizando o PT, demonstrando o quanto a corrupção constitui um comportamento intrinsecamente ligado ao exercício do poder, num Estado ao serviço de uma minoria exploradora. Esta nomeação demonstra, ainda, quer o facto de nem Lula, nem o PT serem passíveis de defender os interesses da maioria explorada (que, hipocritamente, e por razões de sobrevivência, dizem proteger), quer o facto de o PT (assim como Lula e Dilma) terem sido um mero instrumento do capital, num período preciso da história brasileira.

Outros serventuários do capital sucederão aos eleitos petistas, sob os aplausos do imperialismo norte-americano, provavelmente ainda mais retrógrados e dóceis ao capital; este facto, contudo, não anula nem as responsabilidades do PT, nem as responsabilidades de Lula e de Dilma no processo de aprofundamento do capitalismo e de suas consequentes desigualdades gritantes.

A luta de classes agudiza-se. Mas no terreno concreto desta Luta, a maioria daqueles que, no domingo, dia 13 de março, saíram à rua, defende acerrimamente a classe dominante do atual modo de produção. Lula, antes por aquela acarinhado, hoje é por ela espezinhado.

Uma coisa é certa: Lula não está na luta pelo pão, pelo trabalho, pela dignidade da classe operária e de todos os trabalhadores, aquela mesma que, desde 2002, Lula tem continuamente atraiçoado.

i. O coeficiente de Gini é um parâmetro internacional usado para medir a desigualdade de distribuição de renda entre os países. Varia entre 0 e 1, sendo que mais próximo estiver do zero, menor é a desigualdade de renda num país.

ii. Como exemplo do aprofundamento do capitalismo e da deferência perante o capital estrangeiro, observem-se os números do Banco Central do Brasil, referentes ao primeiro mandato do presidente Lula (2003 – 2006). Com efeito, por cada dez reais investidos por empresas multinacionais no Brasil, seis reais foram enviados para as suas matrizes no exterior. Os bancos foram, aliás, em 2006, as entidades que mais enviaram recursos brasileiros para fora do Brasil.


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