Publicidade
Publicidade
first
  
last
 
 
start
stop
1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 (1 Votos)

240914 camaleao copyBrasil - Le Monde Diplomatique - [Luís Brasilino] Em entrevista, Vera Masagão, diretora executiva da Associação Brasileira de Organizações não Governamentais (Abong), analisa as conquistas e os problemas do novo Marco Regulatório das Organizações da Sociedade Civil (MROSC), sancionado no dia 31 de julho pela presidente Dilma Rousseff.


Ilustração: Daniel Kondo.

DIPLOMATIQUE– Como foi o processo de construção do novo marco regulatório?

VERA MASAGÃO–Essa luta por um marco regulatório legal, adequado às organizações da sociedade civil, nasceu como uma das lutas que deu origem à Abong, há 23 anos. É uma bandeira de sempre. A questão do acesso ao recurso público sempre foi nevrálgica. Um dos trabalhos da Abong, reconhecendo a legitimidade desse acesso, é criar canais seguros, democráticos e transparentes para ele. Há dezoito anos, a Abong construiu coletivamente um projeto de lei que criava um novo instrumento específico de repasse de recursos públicos para as entidades da sociedade civil. Chamava-se Termo de Transferência Direta. Esse documento foi para o Congresso e teve dificuldade de caminhar, mas serviu de referência neste momento atual da luta, que começou na campanha presidencial de 2010. Um grupo de entidades estava bastante desanimado porque, nos oito anos de governo Lula, houve bastante avanço no acesso a recursos públicos, mas não se lançou nada no marco jurídico. E havia um desencanto porque resolver isso era uma promessa do Lula. As entidades estavam bastante desanimadas, só CPI atrás de CPI... e o processo de criminalização avançando. Então, nas eleições de 2010 juntamos uma rede maior de organizações, com perfil bem diverso, entidades empresariais, Abong, Caritas, Renas [Rede Evangélica Nacional de Ação Social]. E criamos uma plataforma pleiteando dos candidatos um posicionamento; dois deles responderam: a Dilma e o Serra. Após a vitória, a primeira declaração do ministro Gilberto Carvalho [Secretaria Geral], um dos primeiros indicados, foi: “Em seis meses eu vou resolver esse problema do marco regulatório”. Ele é muito sensível a essa agenda e prometeu intervir, mas não acho que esperava, e nós também não, que ia ser tão difícil, que haveria tantas resistências internas. Primeiro, a criação do grupo de trabalho, que deveria ocorrer exatamente depois da posse, demorou onze meses. A Secretaria Geral realmente assumiu a bandeira, mas negociar lá dentro do governo não foi fácil. Conseguiu-se formar esse grupo de trabalho, que funcionou intensamente, com pessoas do governo, dos ministérios duros de controle, Fazenda, Planejamento..., e com entidades da sociedade civil das mais variadas. Trabalhamos por seis meses, e criou-se uma minuta de um projeto de lei que deveria ser enviado para o Congresso como proposta do Executivo. Mas a Dilma jamais apreciou essa proposta. Passamos um ano e meio tentando fazê-la assumir a proposta. Chegando ao fim do mandato, mudamos a estratégia. Já que não estava indo como proposta do Executivo, nós e os próprios membros do governo que estavam alinhados com a proposta fomos negociar no Congresso. Havia vários projetos de lei correndo a esse respeito. Escolhemos um, do senador Aloysio Nunes [PSDB], que tratava desse assunto e combinamos a relatoria com o Rodrigo Rollemberg, do PSB, que na época era da base aliada ao governo. Fizemos um longo trabalho de inserção das principais ideias do grupo de trabalho. O que saiu, no entanto, não foi o projeto dos nossos sonhos. A gente conseguiu aprovar um projeto que tem muitas das nossas propostas inovadoras, mas nem todas desenvolvidas suficientemente, e alguns probleminhas restaram dessa lógica de controle.

DIPLOMATIQUE – Quais são as conquistas do novo marco regulatório?

VERA– Primeiro, criar um instrumento próprio. Antes, o repasse do recurso público para as ONGs usava o convênio, que é um instrumento criado e usado em 99% dos casos para repassar dinheiro entre entes federados. É uma lógica completamente diferente de passar recursos para uma entidade da sociedade civil. E assim criava uma série de analogias indevidas. Então, o marco reconhece que isso é outra relação, de outra natureza, que merece um instrumento jurídico específico. Um grande avanço – e este foi no Congresso que a gente conseguiu – foi que agora é uma regra nacional, para todos os níveis do governo. Criou-se uma referência comum nacional, que tem alguns elementos importantes: chamamento público, exigência de que a ONG exista antes, que tenha alguma experiência na área (para não se criar uma ONG para receber o dinheiro, que era uma coisa que a gente sempre achou nefasta).

Outras conquistas compõem uma série de esclarecimentos que são bem da prática de quem estava vivendo os convênios e sofrendo com eles. Por exemplo, o marco autoriza pagamento de pessoal com recursos públicos. Todo mundo tinha uma visão de que o pessoal das ONGs era todo voluntário, [mas] são profissionais, que precisam viver, pôr dinheiro em casa etc. E foram estabelecidos critérios para as remunerações não saírem dos padrões de mercado. Além disso, criaram-se regras claras com relação à destinação dos bens. [Antes] Aconteciam coisas esdrúxulas, como análise de prestação de contas feita dez anos depois pedindo que se devolvesse um celular, um violão, que ninguém sabia mais onde estava, ou um armário. Por outro lado, o gestor cumpre a lei. Então, precisava devolver o armário, mesmo que depois ele virasse um estorvo. O marco também colocou algumas responsabilidades na gestão. Por exemplo, pôs prazo para o órgão público apreciar as contas. A gente tinha um passivo de prestação de contas que estavam sendo vistas dez anos depois; era muito difícil retomar.

E há alguns avanços que são mais psicológicos. Por exemplo, o marco reconhece [dois tipos de parceria:] fomento e colaboração. Pode-se colaborar com uma política pública, que foi já criada e está estabelecida, como a construção de cisternas. Neste caso, é uma colaboração. O fomento é reconhecer algo que a entidade pode fazer de forma autônoma e o governo vai incentivar. Ele deverá movimentar menos dinheiro – a gente imagina –, mas é interessante reconhecer essa autonomia, esse papel de protagonista, de vanguarda, das organizações. Outra ideia nossa que precisa ser desenvolvida e aplicada, mas que a lei prevê, é um negócio chamado manifestação social de interesse. A ONG pode chegar e falar: “Precisamos desse projeto, então queremos um edital para fazê-lo”. Não é que ela vá ganhar o edital, mas abre-se uma chamada pública para uma certa tarefa que a própria sociedade apresentou. Lógico que depende também da vontade política do gestor, mas são mecanismos que sinalizam uma visão mais respeitosa e autônoma com as organizações da sociedade civil. Por outro lado, colocam-se regras claras, de transparência, de responsabilidade, quando ONGs estão acessando recurso público, seja no fomento, seja para executar a política pública.

DIPLOMATIQUE– E quais são os aspectos negativos do MROSC?

VERA– Existe um excesso de controle, que pode tornar difícil o trabalho tanto para o órgão público como para a ONG, mas que pode ser interpretado de forma positiva, inclusive na regulamentação... A ideia é fazer o próprio processo de execução ser acompanhado por meios eletrônicos eficientes; depois, para fazer o relatório, basta apertar um botão e acabou, já prestou contas. Por outro lado, isso pode virar uma complicação, cada relatório virar um negócio que não conversa com o outro, ser atrapalhado. Há um excesso de burocratismo que ainda vem dessa necessidade de controle, dessa cultura de visão de ONG como algo a ser controlado.

Um aspecto um pouco mais grave são alguns pontos que sobraram na lei e ferem um pouco a liberdade e a autonomia da organização. Por exemplo, responsabilizar o gestor por qualquer coisa que aconteça, fazendo-o responder com o próprio patrimônio. Evidentemente, tem de responder se há dolo, algum tipo de fraude ou mau uso intencional do recurso. Mas se acontece algum problema administrativo ou algo assim, a figura jurídica é um ponto da democracia, do estado de direito.

Outro ponto são as condições em que o órgão pode interceder, intervir na ONG, se ela não está prestando o serviço. Está um pouco exagerado, aberto demais. Poderia haver mais proteção ao princípio da auto-organização da entidade autônoma. Mas, enfim, vamos tentar cercar isso na legislação.

DIPLOMATIQUE– Existem linhas de financiamento associadas diretamente ao marco regulatório?

VERA– Não. Foi criado apenas um termo que seria aplicado às linhas existentes, e muitas delas já vêm com regras próprias. Esse é um segundo momento bem importante. Queremos trabalhar para ampliar essas fontes de recursos, incentivar doações de pessoas e empresas, democratizando. [Atualmente] Isso está nas mãos das grandes empresas. Devemos capilarizar as doações para as pequenas e médias empresas e para as pessoas físicas, porque também não é legal a ideia de que vamos viver de dinheiro público, ainda que receber esse recurso seja legítimo. Nesse sentido, a Abong apresentou uma proposta de criar um fundo, a exemplo do Undef, o Fundo de Democracia das Nações Unidas, para fortalecer a participação social por meio da capacitação cidadã, formação de conselheiros, diálogos políticos das organizações, dos movimentos, nos diversos bairros, com os partidos, os legisladores, enfim, tudo o que diz respeito a essa construção do tecido democrático de debate, de negociação. Na verdade, já existem vários fundos que as organizações acessam, como o fundo do meio ambiente, da criança e do adolescente, do idoso, para a pessoa com deficiência. Então, não quisemos centralizar.

DIPLOMATIQUE– Houve alguma surpresa no conteúdo da lei, algo que não era esperado?

VERA– Fiquei um pouco surpreendida porque eu achei que a Dilma não ia vetar nada. Ou que ia fazer vetos mais coerentes. Mas os vetos me decepcionaram um pouco. Ela vetou aspectos desfavoráveis ao governo e não se preocupou muito em tirar da lei os cacos que prejudicam a sociedade civil. Ela continuou numa postura pouco amistosa. Agora, a gente conseguiu um acordo grande. Conseguir aprovar uma lei suprapartidária, uma lei do Aloysio Nunes, relatada por um senador do PSB, com um empenho absurdo do governo... Nesse momento, já entrando na campanha, estava um ambiente totalmente tenso no Congresso. Foi quase milagroso ter conseguido, com um empenho forte e participação importante da sociedade civil. Isso também cria uma base interessante de trabalho.

E houve uma surpresa boa também, que foi ver que existe outro lado. O gestor também quer se proteger, e é justo que ele o faça. Isso é importante neste contexto de criminalização. Esse susto eu levei lá no começo. Depois, com a lei já consolidada, houve avanços, mas vai depender muito da forma como ela será aplicada. Por exemplo, um ponto sinalizado na lei é a autorização para a criação de uma instância no governo – talvez esta seja a primeira grande bandeira a partir de agora – responsável pela regulamentação. A gente defende que haja um órgão de governo, que por sua vez coordene um conselho, com a participação da sociedade, que cuide dessa relação, faça uma avaliação da implantação da lei, do que está falhando, do que precisa para melhorar, do que demanda novas leis, não só nas questões de acesso ao recurso público, mas em todos os aspectos do marco regulatório.

DIPLOMATIQUE– Os controles criados não poderiam provocar uma concentração das parceiras nas maiores entidades?

VERA– Outro avanço do marco regulatório é que ele cria categorias. [Nas parcerias] Até R$ 600 mil, a prestação de contas é um pouco mais simples. E essa faixa pega a grande maioria dos convênios. Poderia ser mais simples ainda, mas conseguimos criar essa noção de que não têm sentido controles absolutos para dinheiros mínimos. De fato, algumas exigências talvez assustem, mas não há como eles não terem capacidade administrativa. Não tenho medo desses controles. Muitas vezes, eles são excessivos, mas isso depende da forma como são aplicados.

DIPLOMATIQUE– No que diz respeito à autonomia e aos mecanismos punitivos, o novo marco regulatório pode piorar o desgaste da imagem pública das ONGs no sentido da criminalização?

VERA– A criminalização já está posta, e a lei pode criar uma nova cultura principalmente nos políticos locais. Atualmente, estão diminuindo os repasses federais para as organizações e aumentando os municipais e estaduais. Então, se conseguirmos fazer essa lei chegar aos municípios, de fato, teremos uma ferramenta para acabar com o clientelismo e renovar positivamente a concepção da relação Estado-sociedade. Nesse sentido, é positivo. Há alguns pontos mais problemáticos, mas que não vão reger o dia a dia; são exceções, como no caso de intervenções na organização ou de responsabilização de um dirigente por um problema que aconteceu na ONG. Esperamos que não aconteça. Contudo, são brechas na lei que permitem ações arbitrárias, por exemplo, de um governo que queira retaliar uma organização. Isso é hipertemeroso.

DIPLOMATIQUE– Qual é seu balanço sobre o relacionamento do governo Dilma com as ONGs?

VERA– Foi tenso. Infelizmente, foi uma agenda que só conseguiu avançar na beira das eleições. Pagamos um preço político, mas graças a Deus conseguimos esse canal de visão suprapartidária no MROSC. Agora, sinto que foi uma luta interna no governo. Não é uma postura assumida pela gestão Dilma, mas também, justiça seja feita, [o marco regulatório] não foi feito nos oito anos do Lula. Ainda é uma luta que se trava dentro do setor político representado pelo PT. A importância de uma sociedade civil autônoma, organizada, ainda não é um consenso. As dificuldades que a gente teve mostram os limites da concepção de democracia e do reconhecimento do valor de uma sociedade civil organizada que existe mesmo nesse setor que o PT representa, de esquerda, progressista. Ainda existem posições muito contraditórias. Infelizmente, tudo esbarra na reforma política. Enquanto não tivermos outro sistema político, que acabe com o financiamento privado de campanha, tudo esbarra nisso.

DIPLOMATIQUE– Quais são os próximos passos?

VERAVamos fazer um novo encontro dos signatários da Plataforma [por um Novo Marco Regulatório para as Organizações da Sociedade Civil] e apresentar uma nova plataforma para os candidatos, quatro anos depois, para exigir um órgão, dentro da Secretaria Geral, que vai ser a instância responsável por esse tema da relação Estado-sociedade civil e fomento à organização cidadã. Que esse órgão seja criado no governo e que dentro desse governo se ligue a um conselho do qual a sociedade civil possa participar, monitorando a aplicação dessa lei e a criação de outras leis que conformem esse marco regulatório. Essa é a principal urgência. E a mobilização da sociedade civil em torno do marco regulatório vai ter de continuar. Ainda faltam quilômetros porque é um trabalho complexo de realmente mudar uma cultura. 

Luís Brasilino é editor do Le Monde Diplomatique Brasil


Diário Liberdade é um projeto sem fins lucrativos, mas cuja atividade gera uns gastos fixos importantes em hosting, domínios, manutençom e programaçom. Com a tua ajuda, poderemos manter o projeto livre e fazê-lo crescer em conteúdos e funcionalidades.

Microdoaçom de 3 euro:

Doaçom de valor livre:

Última hora

first
  
last
 
 
start
stop

Quem somos | Info legal | Publicidade | Copyleft © 2010 Diário Liberdade.

Contacto: info [arroba] diarioliberdade.org | Telf: (+34) 717714759

Desenhado por Eledian Technology

Aviso

Bem-vind@ ao Diário Liberdade!

Para poder votar os comentários, é necessário ter registro próprio no Diário Liberdade ou logar-se.

Clique em uma das opções abaixo.