"Aquela lésbica?!", replicou ele, me olhando com reprovação. Já a estudante universitária crucenha a quem falei da entrevista foi ponderada. "É uma senhora com ideias interessantes", disse ela.
Para uma costureira de La Paz, a reação ao nome de Galindo foi de chacota: "é a louca"; para o marido da costureira, um advogado, Galindo é "a careca". E para um outro pacenho, garçom de um restaurante no centro da capital, María Galindo é, "tsc, tsc, tsc, uma senhora que pretende levar as mulheres ao poder" – respondeu ele, meneando a cabeça negativamente para mostrar que isso não é uma boa coisa.
De fato, Galindo é lésbica – uma das primeiras a se assumir publicamente na Bolívia, país onde, como outros da América Latina, a heterossexualidade é um pressuposto tácito e requerido para a aceitação social. Nascida em La Paz há 45 anos e psicóloga por formação, ela entende a política como transformação das relações sociais e não como projeto de poder por meio da ocupação de cargos na administração pública.
Além disso, ela mesma se considera um pouco louca por causa das ações de protesto que empreende com suas colegas de ideais feministas. Suas têmporas são raspadas com máquina zero e contrastam com seus cabelos longos e negros pendendo do alto da cabeça – o díptico cabelo-careca combina com seu visual punk-gótico de jaqueta de couro surrada, calças justas, coturnos cravejados de rebites de ferro e sombra e batom negros gritando na pele muito branca do seu rosto.
Política nas ruas
Sobre Galindo querer levar as mulheres ao poder, há um erro conceitual na afirmação do garçom, talvez porque ele conheça apenas os fragmentos caricatos divulgados pela imprensa boliviana ou porque, justamente, faz a confusão entre "política como transformação" e "política como projeto de poder" que Galindo tenta deixar clara em seu discurso – evidenciando sempre a defesa do primeiro tipo como base de seu pensamento.
María Galindo não quer levar as mulheres ao poder, mas às ruas das principais cidades da Bolívia e da América Latina. Quer levá-las às universidades de Santa Cruz, ao parlamento em La Paz, à Bienal de São Paulo (onde esteve em 2007) e à Praça do Congresso em Buenos Aires, na Argentina. Em todos esses - e outros - lugares, quer grafitar nos muros de escolas, zonas de prostituição e instituições públicas frases como "Desobediência: por sua culpa serei feliz", que ela e suas colegas acreditam evidenciar rupturas e anunciar possíveis remendos nos "buracos do tecido social".
“Hoje vivemos, em todas as esferas, uma realidade profundamente hierárquica, autoritária e violenta”, diz María Galindo. Para ela e as bolivianas que compartilham de suas ideias, uma forma de tentar reconstruir esse tecido é fazendo política, mas na prática, no dia-a-dia, de preferência nos muros públicos – e com muita tinta.
Virgem dos Desejos
Em 1992, em La Paz, María Galindo fundou, com Julieta Paredes e Monica Mendoza, o grupo Mujeres Creando (Mulheres Criando, em português), movimento anarcofeminista que usa o grafite como uma das principais formas de expressar ideias e exigir transformações concretas na sociedade por parte das autoridades civis, políticas, religiosas e militares. “Nós três vínhamos da esquerda, mas de uma esquerda homofóbica e absolutamente incapaz de entender que nós, mulheres, somos um sujeito político. Eles não nos ouviam. Então tínhamos de criar um espaço próprio para essas discussões, e foi o que fizemos".
Para a ativista, na Bolívia "parece que os espaços sociais precisam de certo estofo institucional, ritualístico e jurídico" para existirem. "Nós éramos três loucas que decidimos nos organizar e falar publicamente”, conta.
Há dez anos, o Mujeres Creando conta com uma sede auto-sustentável no centro de La Paz, um casarão vermelho batizado de A Virgem dos Desejos. Lá há uma biblioteca com farta literatura feminista, vídeos, internet, restaurante popular, banheiro público, loja de livros e artesanato, atendimento médico gratuito, salas de aula para realização de palestras e oficinas profissionalizantes, escola primária e assessoria jurídica gratuita para mulheres vítimas de violência, além de hospedagem para essas mulheres – ou para estrangeiros que queiram conhecer mais o trabalho do grupo. Em 2007, foi inaugurada na sede a rádio Deseo, emissora comunitária que pode ser ouvida em rede nacional diariamente.
Índias, putas e lésbicas
Desde o princípio do movimento, o grafite foi pensado como instrumento de ocupação do espaço público. Para María Galindo, as ruas, praças e muros, lugares seminais do grafite, são espaços políticos mais importantes até do que a própria sede do governo ou outra instituição pública.
“Com o grafite, você se comunica com as pessoas sem intermediários. Através dos anos e da constância, conseguimos uma concatenação temática das frases que são sempre pensadas coletivamente. Entendemos, por exemplo, que o racismo e a homofobia são paralelos e caminham juntos. Nas nossas frases, misturamos temas que a sociedade e os meios de comunicação não permitem mesclar porque classificam as coisas como se uma não tivesse a ver com a outra. Mas o público e o privado estão interligados: o que se passa na cama e no parlamento têm uma relação”, diz a "agitadora de rua", como ela mesma se define.
Separatismo
A crítica implícita na frase refere-se ao denso clima separatista entre indígenas e não-indígenas que se respira nas cidades bolivianas. Desde Santa Cruz, por exemplo, província no leste do país (fronteira com o Mato Grosso) e a região mais rica, a crítica recai sobre a origem indígena aimará do atual presidente, Evo Morales - acusado pelos crucenhos de privilegiar com políticas públicas os povos indígenas de regiões mais pobres, como La Paz, com recursos vindos de Santa Cruz. Já em La Paz, província com maioria indígena, a crítica é disparada sobre a ânsia separatista dos crucenhos.
Galindo e suas companheiras, porém, colocam-se à margem das querelas racistas entre indígenas e não-indígenas para dizer que, antes de satisfazer os interesses de etnias e classes sociais, é preciso entender que a natureza humana e suas necessidades precedem as características circunstanciais de cada cidadão, como raça e orientação sexual.
“Não ficamos no grito de afirmação da diferença: fazemos da diferença um pedaço que se completa na relação de solidariedade com a outra diferente”, escreve a jornalista Helen Virreira, também membro do Mujeres Creando.
Patada no saco
Não há amenidades no discurso de Galindo e das mulheres do movimento. “Mulheres, chega de agressão: patada no saco”, “Desejo pecar” e “Igreja proxeneta, me condena e me estupra” são outros exemplos do anarcofeminismo grafitado nos muros bolivianos e que deixam claro quão pouco elas se importam com o barulho que fazem, metendo o pé na porta da cultura majoritária – e é barulho que buscam, de fato. A resposta aos grafites, às vezes, vem na mesma moeda.
Também na clandestinidade, pessoas contrárias às ideias de Mujeres Creando apagam ou escrevem por cima dos seus grafites, aos quais as mulheres do movimento prontamente respondem. Quando a sede estava prestes a ser inaugurada, a frase “Mulher, a Virgem já vem, espere-a” foi espalhada pela cidade. Abaixo de um deles, escreveram: “lésbicas”, em tom de injúria. A tréplica do grupo foi: “e felizes, rá!”.
Além do grafite, Galindo e as mulheres do movimento realizam outras manifestações políticas tendo o suporte do discurso na arte – como performances teatrais. O discurso, porém, é reformulado e reinterpretado simbolicamente, algumas vezes de forma caricata. Para o concurso de Miss La Paz do ano passado, por exemplo, as agitadoras de rua organizaram-se e forjaram convites para o evento luxuoso.
Confronto
Algumas estavam encarregadas de filmar e fotografar a ação que Galindo perpetraria sobre o palco por onde desfilariam as candidatas; outras estavam encarregadas de sua segurança; outras, de panfletar entre o público contra o que consideram a “coisificação das mulheres”. Galindo, vestida como uma miss caricata, subiu ao palco, tomou o microfone das mãos do paraninfo e proferiu seu próprio discurso – reformulado sob a visão feminista. Conseguiu falar por alguns segundos, e em seguida foi agarrada pelos seguranças e arrastada à saída do salão. “Não escolhemos a força, mas como colocamos nosso corpo nas ações, isso acontece”, ela diz.
Assim foi um truculento confronto com a polícia, quando as mulheres vestiram burcas e grafitaram contra a opressão das mulheres no Irã; assim foi quando camponesas mergulharam pés e mãos em tinta azul e marcaram os muros da capital para protestar contra os juros abusivos do microcrédito que eram incentivadas a tomar sem sequer entender as cláusulas do contrato – e terminaram por pintar de azul também as armas dos policiais.
Assim também foi quando Galindo e as mulheres do movimento despejaram tinta vermelha na Praça Murillo, centro político de La Paz, em memória ao assassinato de 67 pessoas que protestavam, em 2003, contra um consórcio de venda de gás boliviano aos Estados Unidos via Chile durante o mandato do ex-presidente da Bolívia Gonzálo Sanchez de Lozada. Galindo e as mulheres do MC conseguiram espargir quase todo o sangue falso no chão da praça, mas foram detidas pela polícia nos últimos litros. “Fazemos política a partir da rua, e isso incomoda”, diz a agitadora María Galindo, que já perdeu as contas de quantas vezes foi presa por colocar-se em espaço público e fazer política com tinta.