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harpa birmana cartazBirmânia - PGL - [José Paz Rodrigues] Existem vários filmes modelo na defesa da paz e a não-violência, que podem ser utilizados nas aulas de todos os níveis para refletir sobre a importância de fomentar o pacifismo entre os escolares. Além do de Gandhi, analisado dentro desta série no seu dia, temos«Johny vai à guerra»(br)/«E deram-lhe uma espingarda»(pt) (Dalton Trumbo), «A vida é bela» (Roberto Begnini), «Adeus às armas» (Frank Borzage), «Glória feita de sangue»(br)/«Horizontes de glória»(pt)(Stanley Kubrick), «A grande ilusão» (Jean Renoir) e «A harpa da Birmânia» (Kon Ichikawa), que eu considero o mais excelso de todos.


É muito idóneo para projetar nas aulas no dia 30 de janeiro, dia em que se celebra a jornada escolar da paz e da não-violência. O diretor nipónico deste formoso filme faleceu com 92 anos em Tóquio, em 13 de fevereiro de 2008, a causa de uma pneumonia. Chegou a realizar uns 89 filmes, quase todos obras-mestras, girando arredor da depressão, a loucura, a neurose, os condicionamentos familiares e sociais e as fortes tradições dos cidadãos, especialmente japoneses, traumatizados pola guerra e a implantação do capitalismo selvagem. Para mim, sem desmerecer nada os de Renoir e Kubrick, este é o filme pacifista e antibelicista mais primoroso e extraordinário da história do cinema. Um autêntico poema carregado de valores estéticos e morais, cheio de sensibilidade e espiritualidade.

Ichikawa, que realizou a cores uma nova versão deste filme em 1985, aborda no mesmo com grande humanidade o tema do soldado japonês Mizushima que, nos últimos dias da segunda guerra mundial, é o único sobrevivente da sua companhia. Espantado por tantas mortes, converte-se em monge budista e toca a sua harpa. Não regressa ao seu país, ficando na Birmânia para atender os feridos e enterrar os mortos, e purgar assim a sua participação nos horrores do conflito bélico. No meu coração e memória estão gravadas as imagens das cenas em que uma anciã birmanesa ajuda os soldados, a do budista e sua harpa de música celestial, e a da formosa cantiga coral do filme, realmente excelsa. A leitura da carta do protagonista ao final do filme, polos seus companheiros que regressam em barco ao Japão, é um momento sublime e de grande emoção. Sem dúvida, estamos perante um manifesto solene e didático contra a guerra, inspirado por valores budistas de paz e amor.

Ficha Técnica do filme:

Título original: Biruma No Tategoto (A harpa da Birmânia / El harpa birmana. Título na sua estreia no Brasil: «Jamais deixarei os mortos»).

Diretor: Kon Ichikawa (Japão, 1956, 116 min., Preto e Branco).

Roteiro: Natto Wada (esposa de Ichikawa), baseado no romance de Michio Takeyama.

Música: Akira Ifukube. Fotografia: Monoru Yokoyama. Produtora: Nikkatsu.

Atores: Rentarô Mikuni (capitão Inouye), Shôji Yasui (soldado, e depois budista, Mizushima), Tanie Kitabayashi (anciã birmanesa), Tatsuya Mihashi, Jun Hamamura, Takeo Naito, Ko Nishimura, Hiroshi Tsuchikata, Sanpei Mine, Yoshiaki Kato, Sojiro Amano, Yôji Nagahama, Eiji Nakamura e Shojiro Ogasawara.

Argumento: Uma tropa, liderada por um capitão apaixonado pola música, e que ensinou seus comandados a cantar, entrega as armas para os britânicos já quase na fronteira com a Tailândia, depois de terem notícias do fim da guerra. A um dos soldados (Mizushima), o harpista, é delegada uma tarefa de inglória: subir até uma montanha nas redondezas e convencer os demais soldados a abandonarem os postos e se entregarem. Chegando lá, é mal compreendido (acusado de traição) e, frente à continuação dos ataques, são todos massacrados pelos canhões ingleses. O harpista escapa roubando as roupas de um monge budista. No caminho de volta encontra, na beira de um rio enlameado, pilhas de corpos levados pola corrente. Cabe ao soldado/budista enterrar a todos, que estavam sendo devorados polas aves de rapina, e ainda ensinar um menino tailandês a tocar a harpa, para ele tirar da música o seu sustento. Enquanto isso, sua tropa original acredita na sua sobrevivência e espera pola sua volta, enquanto aguarda o dia de voltar ao Japão.

Prémios: Óscar ao melhor filme estrangeiro (1957). Leão de Ouro, Prémio S. Giorgio e prémio OCIC, os três no festival de Veneza de 1956. Prémio à música de Ifukube no Mainichi Film Concours de 1957.

Nota: Com igual título e roteiro, Ichikawa realizou em 1985 a cores outro filme similar (uma «remake»).

Análise de um filme memorável:

Dirigido com verdadeira mestria, este filme tem imagens deslumbrantes, cenas memoráveis, grandes atuações e sensibiliza o espetador. É trabalho humanista, pacifista, que nos faz enxergar poesia em meio da escuridão. Os soldados são pessoas comuns, brincam, ajudam-se, recordam a família, desejam sair do conflito o mais rápido possível. As canções emocionam, igual que a carta que é lida no final.

Música e luz compõem a atmosfera deste maravilhoso filme que resulta impressionante. Com a sua música e os seus contrastes fotográficos o diretor pinta o horror da guerra de uma forma nada retórica e alcança grande intensidade dramática com essa economia de meios. O cineasta usa a paisagem desolada, marcada polas cicatrizes das batalhas, como uma personagem adicional e muda no seu filme, e por isto é bastante eloquente. Neste filme em que a música é tão importante, valoriza-se igualmente o silêncio. Juntando com parcimónia um grande toque poético, Ichikawa alcança um ponto muito alto na representação sobre o horror e o absurdo da guerra. Estamos perante um filme pacifista por excelência que explora por meio de delicadas metáforas os efeitos da dominação ocidental no Japão do pós-guerra e as dores causadas polas perdas no conflito. Fala de um tempo de exceção em que culturas, religiões, países e raças perdem o sentido de serem assim divididos, pois talvez a divisão tenha sido feita apenas para fins de segregação, destruição e espólio.

Um dos factos mais interessante e memorável deste filme é, sem dúvida, a transformação espiritual do protagonista Mizushima. O cineasta nipónico situa-o entre dous tipos de soldados: os que se rendem e desejam voltar ao seu país, e os que continuam a lutar. A decisão de render-se, mas ficando na Birmânia para enterrar os soldados mortos, concede a Mizushima um estado espiritual superior ao resto dos soldados. Ichikawa contrasta as conversações dos soldados sobre o que vão fazer quando regressarem a seu país, com a figura solitária de Mizushima na procura espiritual através das veigas de Birmânia. Mizushima transcende o mais prezado polo resto dos seus companheiros, esse desejo por regressar à sua terra natal, por um sacrifício maior. A isto podemos somar que os japoneses têm grande apego pola sua terra (o pior que pode acontecer a um nipónico é falecer e ser esquecido no estrangeiro), e assim é como o significado de Mizushima é tão especial. Tema que já se intui ao início do filme, quando veste roupas tradicionais e os companheiros lhe comentam que parece um birmanês. Habilmente o diretor, em muitos planos e cenas, para expressar isto, funde o protagonista com a paisagem birmanesa. Uma das tomas mais memoráveis é quando o protagonista desce da cova dos rebeldes nipónicos e se adentra nas vermelhas veigas da Birmânia. Esta cena, simples mas muito bela, provoca uma série de emoções no espetador: o sentimento de isolamento e de horror provocado pola guerra, a procura de outra forma de vida ou o conceito budista da extrema conexão entre o ser humano e seu meio. Não faz falta diálogo, que não há, as imagens, a paisagem, os planos, falam por si sós e o espetador esclarece facilmente a progressão do estado mental de Mizushima naquela altura. Todo um prodígio de linguagem cinematográfica.


José Paz Rodrigues é académico da AGLP, didata e pedagogo tagoreano. Autor, igualmente, da coluna de opinião Dizer e Fazer.


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