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220111_revolucaotunisinaTunísia - Rebelión - [Alma Allende, tradução do Diário Liberdade] Esclarecedora crônica da dinâmica revolucionária na Tunísia.


E no entanto, a revolução pode com a tristeza, a melancolia, o mau humor, as tendências suicidas. Mohammed refere o caso de um amigo a quem seu psiquiatra deu a alta após o dia 14 de janeiro, data da queda do ditador. Inventamos um novo termo, a “zauraterapia”, a revolução zaura) como terapia psicológica. As mobilizações, que se repetem num dia mais no centro da cidade, estão salvando corpos e almas.

Antes de nos dirigirmos de novo à avenida Bourguiba reunimo-nos num hotel com Hamami Jilani, sindicalista no setor das telecomunicações e membro dirigente do Partido Comunista Operário da Tunísia. Hamami, que é também sociólogo, não tem a menor dúvida de que a pressão popular vai acabar por derrubar o governo. A troca? Desde faz dias, diz, há diversas tentativas para formar coalizões amplas que evitem o vazio de poder. Ainda que o exército seja débil e Ben Alí o mantivesse à margem dos sarilhos do palácio, como um corpo de técnicos muito despolitizado, seu prestígio aumentou nos últimos dias enquanto os partidos políticos, proibidos e reprimidos, não tiveram ocasião de fazer chegar suas ideias à população. Por isso é necessário agir depressa. Espera-se que amanhã mesmo se anuncie a constituição da Frente 14 de Janeiro, que reunirá um amplo espectro de forças esquerdistas e nacionalistas até agora divididas: o PCOT, os Patriotas Democráticos, o Partido do Trabalho Patriótico e Democrático, nasseristas, baazistas, trotskystas e pequenos grupúsculos de inspiração marxista. Foi impossível incorporar o Congresso da República, de Moncef Marzouki, que estaria negociando por sua vez algum tipo de aliança com o Nahda, o partido islamista de Rachid Ghanouchi, ainda no exílio. A força decisiva, em todo o caso, será a UGTT, o sindicato tunesino, ao qual o próprio Jilani pertence, que conta com 500.000 filiados e cujas bases têm estado desde o princípio mobilizadas.

 - Sempre houve dous “velocidades” dentro da UGTT -diz Jilani. - A direção não só colaborou com o regime, como que se mostrou passivo, quando não cúmplice, na detenção de muitos de seus filiados mais de esquerda. Mas agora a pressão popular obrigou o aparelho a seguir as diretrizes das bases. A UGTT não convocou a manifestação do 14 de janeiro; no dia antes tinha ido ter ao palácio e no dia depois aceitou fazer parte do governo de coalizão. Foi a pressão a partir de baixo que o fez retificar.

 O programa da Frente 14 de Janeiro incluiria, como medidas imediatas, o estabelecimento de um governo provisório do qual só se excluiria o RCD e a convocação de eleições para uma assembleia constituinte encarregada de redigir uma nova constituição. Este governo se manteria durante um ano. Para atingir este propósito -acrescenta- há que continuar a pressão popular.

 - A pressão implica dois elementos simultâneos: as manifestações na rua e a organização da vida quotidiana. Formaram-se já as chamadas “comissões populares” ou “conselhos de defesa da revolução” em todos os cantos de Túnes. Sua missão inicial, a de proteger os bairros das milícias benalistas, deve estender-se à gestão dos serviços municipais para construir um novo modelo de gestão democrática popular. Também nos postos de trabalho. Muitos dirigentes de empresas, tanto estatais como privadas, foram expulsos nestes dias pelos trabalhadores

 Quanto à ameaça das milícias, Jilani pensa que o perigo ainda não conjurado procede da Guarda Presidencial, um corpo inteiramente opaco criado por Ben Alí, muito bem armado e composto de um número ignorado de elementos. Ontem à noite voltaram a disparar no Mourouj e sempre com o intuitio de obstaculizar o fornecimento da cidade. De resto, também não se conhece o número exato de prisioneiros políticos, alguns em cárceres secretos; nem está claro que se tenha liberado todos os que foram detidos a noite do 14 de janeiro e encerrados no ministério do interior.

 - A maior parte dos prisioneiros políticos sob o regime de Ben Alí pertenciam a nosso partido, o PCOT, ou aos islamistas do Nahda, as únicas duas forças de oposição real à ditadura dentro do país e as que mais sacrifícios fizeram. Não obstante nossas diferenças irreconciliáveis, há que reconhecer o alto custo que pagaram os partidários do Nahda durante estas duas décadas. Também que desde 1987 seu discurso se moderou muitíssimo: aceitam a separação entre Estado e religião e o código de família progressista de Bourguiba. Fazem-no por pragmatismo, conscientes de sua debilidade, ou estão realmente convencidos? Esta é a pergunta para a qual não temos resposta.

 A perspicácia de Jilani em sua análise da situação revolucionária vigente contrasta com a ingenuidade na hora de julgar o papel dos EUA e a UE em todo o processo.

- Pegou-os realmente de surpresa e por isso não intervieram diretamente. Agora não têm mais remédio que operar a reboque das forças populares.

 Por último, perguntamos-lhe pelas razões que explicam, a seu juízo, a potência de uma revolução popular que não esperava ninguém.

 - Ao invés do que se diz, o movimento não foi espontâneo ou ao menos muito menos do que se crê. As primeiras manifestações em Sidi Bousid depois da imolação de Mohammed Bouazizi demonstravam já sua forte carga política: “O emprego é um direito”, repetiam as palavras de ordem, ou “emprego, liberdade, dignidade nacional”. Detrás estava o trabalho sindical, posto a prova sobretudo durante as revoltas populares da bacia mineira de Gafsa, entre janeiro e agosto de 2008. Também se exagera -diz em resposta a uma pergunta nossa- o papel da internet. Em ausência de liberdade de expressão, facebook e o telefone móvel jogaram um papel essencial, mas não são eles os que derrubaram o governo.

 (O tanque e Ibn Khaldun)

 Antes de submergirmos na “zauraterapia”, falamos também com Fabio Marchelli, advogado italiano vinculado à organização Juristas Democratas e que faz parte da Delegação Euromediterrânica de Direitos Humanos encarregada de informar à UE das violações cometidas pelo regime de Ben Alí.

 - Deve-se criar uma comissão de investigação -diz- que se ocupe de todas as violações cometidas desde 1957, consoante o modelo seguido em alguns países latino-americanos.

 Reuniu-se nestes dias com organizações de Direitos Humanos, com o comitê de apoio a Gafsa e com associações de mulheres. Também com os representantes dos advogados, muito combativos no último período (e que ontem expulsaram do palácio do Tribunal um juiz particularmente corrupto). A delegação foi recebida também pelo ministro do interior, Ahmed Friaa, um dos alvos da ira popular.

 - O ministro -diz Marchelli- referiu-se aos protestos populares como uma “revolução” e reconheceu que seu posto é provisório.

 Relativamente à posição da UE durante a crise, acha que sua imagem ficou claramente danificada pelo sustento a Ben Alí dos governos francês, espanhol e italiano e que as instituições europeias deveriam apoiar agora todas as mudanças em favor de um movimento democrático forte e organizado e com objetivos claros para o futuro imediato.

 Deveria, sim, mas deveria então -digo eu- negar seu apoio a Israel, à Argélia, ao Egito, à Jordânia, à Arábia Saudita e um longo et cétera de delinquentes e criminosos. E parece mais provável que siga sendo incoerente com seus discursos que incoerente com seus interesses.

 (Os livros proibidos)

 O centro da cidade continua em revolução. Todos os dias se renovam os protestos e todos os dias se produzem pequenas mudanças. Hoje as concentrações começam de novo na Avenida Bourguiba, onde às 10 da manhã, em frente ao ministério do interior, há já em torno de duas mil pessoas. O governo, entre outras medidas tomadas a modo de placebo, decretou três dias de luto pelos “mártires” que o próprio governo matou e as bandeiras ondeiam nos edifícios a meia-haste. Um cartaz brandido pelos manifestantes diz: “Nenhum luto antes de o governo cair”. Grita-se, canta-se, reclama-se a dissolução do gabinete. A polícia entra a partir da praça 7 de Novembro e faz um grande cordão de escudos e capacetes para cortar a calçada em direção a Mohamed V. Um grupo de manifestantes que irrompe com gritos e cânticos do extremo oposto empurra sem o saber e por um momento o choque parece inevitável. Mas a disciplina por ambas partes é muito grande e, depois de se apoiarem um instante sobre o muro de fardas pretas, a multidão se gira e começa a caminhar para a Medina, sem deixar de gritar e cantar o hino nacional.

(Glória à revolução do 14 de janeiro)

 No boulevard ficam, como no dia anterior, pequenos grupos asamblearios e muitos sinais espalhados de mudança. As pichações, por exemplo, em árabe e francês, que invocam a liberdade nas paredes ou denunciam os crimes do regime. Ou a gente que se amontoa na vitrine da livraria O-Kitab, que pôs à venda A regenta de Carthago , o livro proibido sobre a mulher de Ben Alí e sua família, e as obras do jornalista opositor Ben Brik. Ou o extraordinário consumo -ou exibição supersticiosa- de jornais num país que desprezava a imprensa. Ou essa ocupação dos cafés da avenida por parte de jornalistas, intelectuais, artistas que se tomam um café, se trocam informação, falam sem limites, antes de se debruçar de novo às mobilizações. Ou essa senhora de sessenta anos, com aspecto de matrona de bairro, que se me acerca com naturalidade e me pergunta pela manifestação como se me estivesse perguntando pela paragem do ônibus. Em frente à catedral, a estátua do grande historiador tunesino Ibn Khaldun compartilha ternamente o espaço com um tanque em flor. A avenida Bourguiba, que sempre teve um ar sombrio -um ar retido- tem hoje a ligereza ensolarada de um dia de campo. A atmosfera desses sonhos freudianos em que um se agacha a pegar uma moeda e vê outra ao lado e depois outra e de repente tudo ao redor se encheu de moedas brilhantes que não cabem nas mãos.

 Assim esta estranha dinâmica de concentrações voláteis. De repente voltam-se a ouvir gritos e chegam os médicos, com seus batas brancas, insistindo a voz em grito: “O ditador em Arábia Saudita e o mesmo governo aqui”. E vão embora. E depois ouvem-se carreiras e passam a ritmo quase militar os trabalhadores do transporte, que abandonaram seus veículos e se dirigem coreando palavras de ordem para a Porta de França. E desaparecem.

 A manifestação -diz-se-nos- deslocou-se à Qasba, à praça adiante da sede do Premiê, e para ali dirigimos-nos atravessando A Medina, estranhamente relaxada sem a presença de turistas. É lógico ir à Qasba: é aí onde há que fazer agora a pressão. Nesse grande espaço formado pelo ministério de Finanças, a Prefeitura, o Palácio de Justiça e o Primeiro Ministério, alguns milhares de pessoas fazem fervilhar seus cartazes e suas bandeiras. São já as 14 h. e a multidão insiste, resiste, não se cansa: “Continuaremos lutando até derrubar o governo”. Quando a gritaria ou a espessura parecem afrouxar, um novo grupo se incorpora por trás do hospital, com novas palavras de ordem e novos reforços; e depois outro a partir do coração da Medina. Grupos de jovens penduram das janelas do premiê.

 (Adiante do Primeiro Ministério na Qasba)

 Para as 14.30 ocorre uma coisa incrível. Uma mulher de quarenta anos aproxima-se de mim muito excitada, puxa da minha manga com obstinação e pede-me para a seguir. Ri-se, ri-se às gargalhadas. Eu ao princípio não entendo nada ou o que entendo me parece um delírio absurdo: ? Um ministro sem carro! Um ministro a pé! E não pode deixar de se rir; morre literalmente de rir enquanto acena a um e a outro, se excita, assinala com o dedo. Ali está: é um homem ligeiramente pançudo, careca, de suíças brancas, vestido com jaqueta cinzenta. É Ahmed Brami, o ministro de Ensino Superior, líder de um dos partidos de oposição (Tajdid, Renovação) que aceitou tarefas de governo e não se demitiu. Está esperando o automóvel e trata de passar despercibido. A mulher está assombrada; não acaba de acreditar e ri como uma menina: ? A pé na rua! Um ministro e não tem carro! Mas aos que reparam nele finalmente não lhes faz nenhuma graça. Vinte ou trinta pessoas vão contra ele; formam um grupo a seu redor, que vai se estreitando ameaçadoramente. Levantam os punhos, increpam: “Colaboracionista”, “traidor”, “demita-se se não quer ser cúmplice”, “está vendendo os nossos mártires” Por um momento temo o pior. Numa situação parecida, em qualquer outro lugar, teria sido brutalmente normal um linchamento ou, pelo menos, uma agressão vingativa. Mas não na Tunísia após a revolução. O ministro tenta dar explicações, depois se zanga-se, tenta abrir passagem no mato. Alguns empurram-no; outros, os mais, pedem calma. E após alguns forcejos e insultos, o ministro consegue sair do círculo, monta num carro e foge incólume.

  (A polícia une-se ao povo)

 Mas o mais incrível acontece pelas 15 h. De repente, da rua Bab Bnat, onde se encontram os tribunais, sobe um nutrido grupo de manifestantes num coro de vozes. Vão vestidos de preto. Exibem um cartão na mão. São, sim, polícias que vêm se somar aos protestos. Quando chegam às redondezas da praça, onde se encontramcom os caminhões militares e as carrinhas policiais, os recém chegados se misturam com os cidadãos, apertam as mãos deles, se abraçam. Alguns deles sobem ao teto de dois duas carrinhas e gritam: “Viva o povo, nós também somos filhos seus”. Os exaltados espectadores batem palmas e aclamam. Todos juntos cantam mais uma vez o hino nacional: namutu namutu wa yahi o-watan.

A meu lado, Amira chora.

 Agora sim parece o final. O regime desmorona-se. Não fica ninguém para defender o governo.

Mas não. Quando chego a casa começo a pensar que sonhei. Busco nos jornais e não há nada; nada nos espanhóis, mas nada também em Liberation ou Le Monde, que nestes dias atrás actualizaram a informação minuto a minuto. Seguramente fizeram-no por medo ou por um cálculo astuto, mas, não é importante que uma parte da polícia se uma aos manifestantes declarando sua ruptura com o regime? E aí reparo que, tal como uma parte da pequena burguesia tunesina, cansada de tantas fadigas, os meios de comunicação ocidentais acham suficientes as mudanças produzidas e tencionam já refrear qualquer ulterior evolução. Falam das medidas tomadas por Ghanouchi em favor da liberdade, mas nada, ou muito pouco, das manifestações contra ele. Não é que o que não saia nas televisões ou os jornais não exista; é que não produz efeitos. Pode-se fingir que não aconteceu. Os governos não se sentem concernidos pelas pressões mas pela atenção que se lhes dá. Facebook -formigueio de intercâmbios privados- tem muito menos poder que o El País ou The New York Times, que podem converter num formigueio de intercâmbios privados uma sublevação policial a favor do povo enfrente do Primeiro Ministério, numa praça pública sob o sol.

Eu julguei ter vivido um momento “histórico”, como gostam de dizer aos colecionadores de sobressaltos, e só tinha entrevisto o descarte de um jornal.

Hamami Jilani equivoca-se? Não terá ruptura? Não cairá o governo?

Como tudo é todo o momento surpreendente, não há que sacar conclusões. A gripe existe, é verdade, mas o povo tunesino é só um bebê de escassos oito dias.


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