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251214 mexico massacreMéxico - Le Monde Diplomatique - [Victoria Darling] Neste ano, as cerimônias e altares do Dia dos Mortos não foram destinados a personalidades da arte popular. As canas, laranjas, tejocotes, velas, incensos, caveirinhas de açúcar e flores de cempaxúchitl foram oferecidos aos estudantes desaparecidos que hoje contam a história de um México que se revela.


Ilustração: Alex Torres.

Guerrero é um estado pobre, cheio de desigualdades, marcado pela violência e ameaçado pelas redes de traficantes de drogas que o atravessam. Ele tem, entre suas principais cidades, Acapulco, onde artistas moram em propriedades de luxo. Guerrero, porém, não é só Acapulco: existem também outros municípios, reconhecidos pela beleza de seu artesanato ou pela abundância na produção de manga. E mais: os habitantes demonstram possuir a força que move um surpreendente espírito de resistência. Como experiência pioneira na América Latina, os cidadãos de Guerrero criaram as polícias comunitárias, formadas por civis auto-organizados. Vizinhos, membros de comunidades rurais e familiares que, muito a seu pesar, consideram que a segurança proveniente da polícia municipal ou estadual é nula. Assim, onde não há Estado, há justiça popular.

Em Guerrero, perto da cidade de Iguala, num pequeno povoado chamado Ayotzinapa, que significa, em língua nauatle, “o lugar das tartarugas”, está situada a Escuela Normal Rural Isidro Burgos. Ela existe há décadas e, como outras escolas mexicanas do mesmo tipo, é consequência da Revolução Mexicana, que procurou difundir o ensino básico entre os setores camponeses, historicamente condenados ao analfabetismo. Na escola normal estudam jovens rapazes mobilizados pelo entusiasmo de um dia se dedicar ao ensino de crianças que moram longe da cidade, em situação de precariedade.

As escuelas normales no México têm uma longa tradição de luta, pois têm sido um bastião da memória nas lutas populares. Atuam ainda de maneira articulada, cientes de que em sua resistência reside a continuidade da formação das crianças que moram em áreas rurais, pelas quais o Estado mostrou tanto desinteresse nos últimos anos, reduzindo progressivamente os recursos a elas destinados.

A realidade é que, dia 26 de setembro de 2014, um grupo de estudantes da escola normal de Ayotzinapa foi violentamente reprimido. Seis estudantes foram assassinados, 25 tiveram ferimentos e 43 estão, até hoje, desaparecidos.

Os estudantes iam à cidade de Iguala de ônibus com o propósito de coletar dinheiro para poderem se trasladar depois à Cidade do México e chegar lá no dia 2 de outubro, data em que se celebra o aniversário do Massacre de Tlatelolco de 1968, repressão militar que o governo do então presidente Díaz Ordaz realizou contra uma enorme multidão de estudantes de ensino médio e universitário, reunida na Praça das Três Culturas.

Naquela ocasião, a manifestação era contra o governo autoritário e por respeito aos direitos humanos. Hoje, como então, o Estado atuou mostrando seu caráter mais disciplinador. Tanto os estudantes da Praça das Três Culturas de 1968 como os normalistas de Ayotzinapa em 2014 foram baleados por homens uniformizados. Isso significa que houve ordem prévia e que ela veio do poder público. Dispararam contra eles à vontade, sem prévio aviso, sabendo quem eram. Julio César Fuentes Mondragón, um dos jovens normalistas, foi torturado até os limites da dor; seus olhos e unhas foram arrancados, e seu rosto, esfolado.

No dia 26 de setembro, María de los Ángeles Pineda de Abarca, presidenta do DIF (Sistema Nacional de Defensa Integral de la Familia), entregou seu relatório de atividades, augurando sua próxima candidatura à Prefeitura de Iguala. Entretanto, José Luis Abarca, seu marido e atual prefeito do município, está ligado a acusações de corrupção, pois passou de um humilde vendedor de chapéus para joalheiro de uma importante cadeia.

Os 43 estudantes agora desaparecidos foram capturados pela polícia municipal de Iguala no meio do tiroteio e – dizem – entregues aos traficantes do cartel Guerreros Unidos. Dias após o desaparecimento, o governador do estado ligou para o prefeito Abarca, que, sem prestar depoimento, fugiu com a esposa. Com o passar dos dias, a esposa do prefeito de Iguala foi identificada como financiadora do grupo de traficantes, emitiu-se uma ordem de prisão e o casal foi detido na Cidade do México. Pouco tempo depois, Sidronio Casarrubias, suposto líder do cartel Guerreros Unidos, foi preso e prestou depoimento com outros três traficantes. Em seguida, o procurador-geral da República, Jesús Murillo Karam, em coletiva de imprensa, afirmou que, segundo fontes do Estado, foram achados no depósito de lixo municipal de Cocula, próximo a Iguala, sacos com restos humanos. De acordo com os depoimentos dos detidos, os 43 estudantes teriam sido queimados vivos entre madeiras e plásticos, depois desmembrados, seus restos guardados em sacos de lixo e jogados no rio. O procurador afirmou que os restos encontrados seriam enviados à Áustria para serem analisados em laboratório; no entanto, os estudantes continuariam sendo oficialmente considerados “desaparecidos”.

Poucos dias depois das declarações públicas do procurador, soube-se por meio de uma pesquisa independente desenvolvida pela Equipe Argentina de Antropologia Forense, no dia 11 de novembro de 2014, que as 24 amostras analisadas não correspondem ao DNA dos estudantes normalistas.

Em virtude do acúmulo de notícias que vão gerando cada vez mais comoção, foram realizadas na Cidade do México ao menos cinco marchas multitudinárias, que atingiram a cifra de 25 mil manifestantes. Os lemas das manifestações foram mudando– de #yamecansédelmiedo (já me cansei do medo) a #fueelEstado (foi o Estado). O certo é que os familiares dos estudantes asseguram que, enquanto não existirem provas concretas, “vivos foram levados, vivos os queremos”.

Até hoje, nem o procurador da República nem o presidente Enrique Peña Nieto assumiram a responsabilidade do Estado nos fatos. A cada dia, nas redes sociais e nas mobilizações sociais, a versão que o Estado deu sobre o destino dos estudantes é questionada e exige-se a renúncia do presidente, envolvido ainda em denúncias de irregularidade durante as eleições, em 2012, e na repressão a camponeses da Frente de los Pueblos en Defensa de la Tierra, organização simpatizante do Exército Zapatista de Libertação Nacional, em 2006.

Sob o lema “Ayotzinapa vive, o Estado morreu!”, a sociedade mexicana está se movimentando. Com a certeza de que #fueelEstado, os jovens denunciam sua verdade. A frase #yamecansédelmiedo levanta os estudantes da América Latina e convida a não esquecer os estudantes desaparecidos. A busca dos 43 continua, porque é revoltante e inadmissível que o Estado possa declarar, impunemente, mais uma vez, que em uma democracia existam “desaparecidos”.

Victoria Darling é doutora em Ciências Políticas e Sociais pela Universidad Nacional Autónoma de México e professora da Universidade Federal da Integração Latino-Americana (Unila).


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