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290315 venezuelanasVenezuela - RBA - [Carina Santos e Juliana Afonso] Resistência do chavismo às ações orquestradas pela oposição ao governo Maduro, como a crise de abastecimento, passa pelos coletivos de gênero e pelas lideranças femininas nas comunidades.


"O que tem hoje?", pergunta o freguês, do lado de fora da mercearia. A resposta corre rápido pelas ruas. Em poucos minutos, os vizinhos descobrem quais produtos os estabelecimentos mais próximos estão vendendo. Então, é voltar em casa, pegar o dinheiro e ir para a fila. "É comum esperar uma ou duas horas, mas algumas pessoas ficam manhãs inteiras", conta a professora e tradutora Raquel Bravo, que mora em Caracas há 13 anos. Enfrentar filas que se estendem por quarteirões para comprar alimentos é um dos efeitos mais claros da crise de abastecimento que se alastra pela Venezuela."

"Há mais de dez anos cidadãos encontram dificuldades para comprar alguns produtos básicos, como papel higiênico e farinha de milho. Com o tempo, outros itens esticaram a lista. A situação se tornou mais preocupante de um ano para cá. Formam-se filas para comprar fralda, xampu, sabonete, café, carne, frango e outros produtos. Em janeiro, a rede McDonald's chegou a anunciar que serviria mandioca frita no lugar das escassas batatinhas.

"A crise de abastecimento também bagunça o orçamento doméstico. "Às vezes você sai para comprar um quilo de tomate e acaba levando coisas que não precisa por não saber quando vão vender de novo", explica Raquel. Outra consequência é o contrabando de alimentos, como fazem os bachaqueros, pessoas que se dedicam a fazer filas para comprar grandes quantidades de produtos e revender a preços mais altos. Um exemplo: enquanto um pacote de fraldas com 32 unidades custa 154 bolívares, eles vendem três unidades a 100 bolívares.

"Filas, prateleiras vazias e desespero para conseguir certos produtos dão o tom do noticiário. Isso num país em que nos últimos 15 anos o consumo de alimentos subiu 80%, segundo dados do Banco Central da Venezuela e do Instituto Nacional de Estatística. Os números se confrontam com a pauta da escassez. Segundo a Organização das Nações Unidas para Alimentação e Agricultura (FAO), a Venezuela é o país da América Latina mais avançado na erradicação da fome. Desde 1999, ano em que Hugo Chávez assumiu o poder, os venezuelanos consomem 50% a mais de calorias do que no período anterior, e só o consumo de carne aumentou cerca de 75%. Em 2013, o Índice de Desenvolvimento Humano (IDH) chegou a 0,764 ponto, ante 0,677 em 2000.

"Como, então, o país ganha as páginas dos jornais pela suposta falta de alimentos? A contradição dificulta a compreensão da realidade. Para os setores que fazem oposição ao governo, o problema seria consequência das políticas econômicas que afugentariam empresas e a entrada de recursos. O sociólogo Luís Salas, diretor do Centro de Estudos de Economia Política da Universidade Bolivariana da Venezuela, explica que o principal argumento desses setores é que o governo intimida a iniciativa privada por meio do controle das taxas de lucro e do câmbio. E pondera que esse controle é consequên­cia, e não causa, da inflação e da fuga de capitais. "São medidas que respondem à prática dos setores empresariais. O fato é que o setor privado especulativo mantém por mais de 30 anos uma 'greve' de investimentos, para defender seus interesses econômicos em um modelo rentista", afirma.

"Os partidários do governo de Nicolás Maduro, por sua vez, afirmam que a escassez de alimentos é fruto de uma estratégia oposicionista para pressionar o governo a tomar medidas impopulares. O cientista político Pedro Otoni (Secretário Político Nacional das Brigadas Populares) considera incorreto dizer que existe escassez, pois alimentos existem, mas não são colocados à disposição da população. "Com dois objetivos: a especulação, gerando lucros extraordinários para os empresários do comércio, e a criação de um sentimento de incerteza, com o objetivo de desestabilizar o governo."

Guerra econômica

"A repercussão internacional é associada, segundo Otoni, a ataques da oposição. O conjunto dessas estratégias tem sido denominado como Guerra Econômica, uma espécie de "guerra total" que os Estados Unidos, em associação com a elite econômica venezuelana, vêm travando desde a fracassada tentativa de golpe contra Chávez, em 2002. O financiamento de candidatos opositores e a incitação de conflitos regionais seriam parte dessa prática. "Promovem a redução da oferta de alimentos como principal instrumento de ameaça ao governo, tentando colocá-lo na condição de refém dos interesses empresariais", diz Otoni.

"Uma das reações do governo à crise de desabastecimento foi criar comissões de investigação dos responsáveis pela estocagem de produtos. A investida mais recente, em 12 de janeiro, encontrou mais de mil toneladas de alimentos de primeira necessidade em uma zona industrial do município de São Francisco, no estado de Zulia, a noroeste do país. Outras medidas buscam ampliar a rede pública e popular de distribuição. A Missão Alimentação, programa criado em 2003 para garantir o acesso aos produtos básicos com preços subsidiados em até 70%, conta com 22 mil pontos por todo o país­, de pequenas comunidades indígenas a grandes centros urbanos. "Ali se vendem carnes importadas, frango, vegetais, açúcar, macarrão e diversos produtos da cesta básica a preços muito menores que no mercado normal", conta a professora Raquel Bravo.

"Mas combater o medo da escassez não é tarefa fácil. "A Venezuela apresenta grande vulnerabilidade no sistema de oferta, que ainda é dependente de compras internacionais e possui uma base de distribuição nacional controlada por empresas privadas", explica Pedro Otoni. Para ele, quando o processo de produção, beneficiamento e distribuição de alimentos forem solidamente ancorados no Estado e nas iniciativas de cooperativas, a situação mudará e o empresariado deixará de contar com o poder de ditar o preço e produzir escassez.

"Em outubro de 2012, pouco depois de ganhar as eleições, o então presidente Hugo Chávez realizou um conselho de ministros, transmitido em cadeia nacional, em que evidenciou o que seria a essência da continuidade de seu projeto. Chávez dizia e repetia nesse discurso "comuna ou nada", referindo-se à necessidade de consolidação das instâncias de participação social nas decisões de "autogoverno". A frase ganhou evidência nos muros de todo o país e na base social de apoio ao chavismo. Muitas dessas experiências comunitárias buscam construir outro modelo produtivo, como alternativa ao desabastecimento de alimentos e às limitações do Estado burocrático. Em cidades como Caracas, particularmente nas localidades mais pobres, os coletivos estão passando da organização política à organização econômica produtiva.

"Um exemplo dessa resistência é a comuna Comandante Hugo Chávez, localizada no centro da capital. Criada em 2013, é composta por cerca de 9 mil pessoas. Devido ao pouco espaço entre os edifícios da região central, as famílias utilizam o teto de um consultório popular para produzir alimentos. A líder comunitária Arelys Rivas conta que os primeiros cultivos foram de tomate e pimentão: chegaram a produzir quase duas toneladas em menos de um ano. Os produtos são vendidos sem intermediários, a um terço do preço do mercado privado. "Se nossa experiência for multiplicada em outros lugares, com diferentes produtos, poderíamos oferecer alimento a preços realmente justos e combater também a especulação", afirma.

"O protagonismo feminino é um dos segredos da sustentação das políticas públicas na base social. O país tem um ministério para a mulher e a igualdade de gênero. Um dos programas criados no contexto da Guerra Econômica é o "Mulheres na defesa popular da economia", a partir de uma análise de que elas são as que mais sofrem os reflexos do armazenamento de alimentos básicos.

"Paralelamente aos aparatos governamentais, existe a construção dos comitês de mulheres, além do comitê para a defesa da economia, de mães do bairro, frentes populares, coletivos feministas e de diversidade sexual, entre outras organizações, que dão capilaridade social aos chamados dos órgãos públicos à resistência contra várias formas de manifestação da Guerra Econômica – uma espécie de rede de inteligência e contrainteligência, governamental e social. "Não por acaso nossa experiência tem o protagonismo das mulheres. Tanto no nosso país como no mundo, a mulher sempre se destacou por ser lutadora, empreendedora e altruísta. Nessa nova etapa da vida socialista ocorreu um reencontro com as qualidades que nos caracterizam. Desde então, não descansamos", diz Arelys.

Alinhamento

"É necessário ultrapassar as fronteiras venezuelanas para identificar interesses dos Estados Unidos no processo. Pedro Otoni lembra de semelhanças com o Chile, no período que antecedeu o golpe que derrubou Salvador Allende (1970-1973). "Houve paralisação de atividades da indústria e do comércio. Isso criou um forte impacto na distribuição de bens e foi um dos componentes do golpe." A participação do governo e de agentes norte-americanos na derrubada daquele e de outros governos democráticos da América Latina é conhecida.

"A conjuntura venezuelana é distinta, contudo. Atualmente, os Estados Unidos também se encontram em crise, e existe apoio internacional – e principalmente regional – à Revolução Bolivariana. "Neste caso é muito mais difícil produzir um isolamento que permita um golpe ou um ataque direto", pondera o cientista político.

"Mas nada impede que os meios de comunicação alinhados com a política norte-americana se articulem para difundir um desgaste, local e internacionalmente. O jornalista brasileiro Leonardo Fernandes, que viveu cinco anos na Venezuela, afirma que as estratégias da oposição sempre estiveram aliadas aos editoriais da imprensa corporativa: "Os meios privados cumprem papel de porta-vozes da oposição. Foi assim durante o golpe de 2002 e nunca deixou de ser".

"O sociólogo Luís Salas considera que o cenário favorece o clima de catástrofe: "A população vive um sentimento de frustração e angústia que pode terminar criando condições subjetivas tanto para a especulação como para a conspiração contra o governo", diz. Para Otoni, ameaçar com a fome é uma forma de rebaixar a disputa política ao nível das necessidades imediatas: "Se a escassez é produzida artificialmente, o medo gerado é algo que se torna bastante real e não deve ser menosprezado".


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