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sombrinhas vermelhasPortugal - Jornal Mapa - [Fernando André Rosa e Miguel Carmo] Vem agora à estampa a segunda parte da série iniciada no número anterior, falando-se agora de trabalho sexual, do aborto livre e de algumas experiências autónomas de sexualidade. São 40 anos de democracia revistos com a lupa queer, com o objectivo de escrever uma história da sexualidade militante.


 

Aids, Pop, Repressão / O que é que eu fiz para merecer isso?
Ratos do Porão, 1989

Na primeira parte deste artigo publicada no número anterior falamos de queer antes de o ser, a partir de pontualidades da sexualidade militante nos últimos 40 anos. Como disse um jovem militante, no longínquo ano de 1977, no “Lambda“, jornal que nasce no interior da Autonomia italiana:

«Não quero ser recuperado na normalidade heterossexual porque não acredito nela. Mas também não acredito num modelo homossexual e portanto, estando consciente dos meus limites, quero avançar na minha libertação para fazer explodir tudo o que afastei e (…) mudar-me a mim próprio e não ser nem homossexual nem heterossexual e, mais do que bissexual, ser aquilo que ainda não sabemos o que é, por ser reprimido».

O género, a sexualidade e o sexo não são compartimentos estanques, pelo que a sua separação nas narrativas várias e nas formas de lutas não só produz novas margens, como enfraquece a emancipação dos corpos, dos papéis sociais e reforça os interditos. É esta síntese que insistimos em chamar queer e que desenvolvemos agora em torno do trabalho sexual, do aborto e de experiências autónomas de sexualidade.

O guarda-chuva vermelho tem sido usado como símbolo da luta das/os trabalhadoras/es do sexo, muito usado nos mobilizações de rua.

O trabalho sexual é contra o trabalho?

As prostitutas permaneceram sempre silenciadas. Não há grande memória de momentos de luta ou de organização, a não ser a caridade e o abolicionismo promovidos por algumas associações junto das “indigentes”. Uma das primeiras excepções surge em 2005 no Porto, quando um grupo de 20 “trabalhadores do sexo” discute a formação de um sindicato ou associação profissional no Dia Internacional Contra a Violência sobre os Trabalhadores do Sexo. Uma mobilização de rua organizada viria a surgir no MayDay Lisboa de 2009, quando por iniciativa do Centro em Movimento e das Panteras Rosa se estabelecem contactos com prostitutas, que pretendem integrar o desfile do 1º de Maio para afirmar a condição de trabalhadoras sexuais. É um pequeno grupo de mulheres que se esforça por integrar a manifestação e que a CGTP-IN insiste militantemente em não reconhecer, a não ser no conceito de tráfico.

Em 2011, as putas regressam ao MayDay, apoiadas por militantes queer e feministas através da P*T*S – Plataforma de Trabalho Sexual, que integra os grupos referidos antes e ainda a UMAR e Irmãs Oblatas – mas são sujeitas à interdição formal por parte da CGTP, que mediante um comunicado de imprensa afirma que o bloco precário não é bem-vindo no desfile se trouxer consigo trabalhadoras organizadas numa luta pelo estatuto laboral sexual. Esta posição surge na sequência de uma campanha do Alto Comissariado para a Saúde dirigida à prevenção de infecções sexualmente transmissíveis junto de trabalhadoras/es sexuais, onde a CGTP critica a “utilização de dinheiros públicos, numa campanha, que claramente assume existirem «trabalhadoras do sexo»”. Em Lisboa, a organização do MayDay decide poupar-se ao confronto com a CGTP, ao contrário de algumas dezenas de queers, feministas e trabalhadores sexuais que decidem, já no fim do desfile, interromper o discurso de Carvalho da Silva com palavras de desordem como “sou puta precária, também sou proletária” ou “trabalho sexual é trabalho”, debaixo de dezenas de sombrinhas vermelhas, símbolo da luta das/os trabalhadoras/es do sexo.

Não querer discutir a utilização do corpo como força de trabalho, incluindo a sua dimensão sexual, é não querer encarar o carácter arbitrário, miserável e violento de tantas outras formas de trabalho, de desemprego ou de marginalidade. Poderá o movimento queer, ao considerar a prostituição como trabalho, relançar a crítica do trabalho e da sua abolição, no sentido de uma crítica comum da exploração? Ou para o dizer de forma mais simples: abolir a prostituição assim que se abolir o trabalho assalariado como relação social de exploração e violência.

Teria sido aquele o momento para repensar e alargar as lutas pela liberdade sexual, em resposta a um movimento sindical conservador e ortodoxo, cujos argumentos em nada divergem do paternalismo e da higienização católicas, e que insiste em não reconhecer o trabalho sexual dentre as opções de exploração que cada pessoa dispõe para viver. Em 2011 surge a Rede de Trabalho Sexual, que tem actuado sobretudo no campo dos direitos sociais e laborais, e contra todas as formas de violência, através de acções de sensibilização, pareceres e estabelecimento de contactos.

O aborto livre foi a votos.

A história da despenalização do aborto, e dos referendos que a serviram em 1998 e 2007, está escrita 1. É uma história institucional, concentrada nas dinâmicas partidárias e legislativas e nas grandes campanhas que se erigiram para o efeito, que está, na nossa opinião, ancorada na representatividade democrática enquanto modelo geral de leitura e transformação social e no Estado como modelo último de organização humana. É esta história que nos conta que a vitória de 2007 se deveu bastante à opção estratégica, tomada pelo movimento amplo e diverso de apoio à despenalização, de ocultar todo o argumentário que remetesse para o direito das mulheres a tomar decisões sobre o seu próprio corpo, em favor de um discurso focado na saúde pública e no fim dos julgamentos de mulheres. Argumentos que estiverem presentes na campanha de 1998, derrotada. Esta decisão é fortalecida pelo facto de virem a público algumas mortes (Lizete Moreira morre a 8 de Março 1997, na sequência de um aborto clandestino), bem como processos e julgamentos por aborto (Em 2001 foram acusadas na Maia 17 mulheres pelo crime de aborto).

Recuemos ao pós-25 de Abril, onde surgem várias clínicas, maternidades e outras instalações dedicadas à saúde, com um carácter comunitário e ligadas às ocupações de edifícios. A Clínica Comunal Popular na Cova da Piedade destaca-se por vários motivos 2, entre os quais o apoio da população e o reconhecimento da qualidade dos serviços prestados, que inclui sala de partos, consultas de contracepção e planeamento, cuidados materno-infantis e, tudo indica, aborto em condições à margem da lei. É a partir destas experiências, que contam com a colaboração de equipas de jovens médicos, alguns estrangeiros, que se criam unidades ambulatórias de aborto numa rede de casas emprestadas, preparadas para o efeito, e usando técnicas avançadas para a época – que só décadas mais tarde aparecem perto da fronteira em Espanha. Além do mais, estas práticas contrastavam com o obscurantismo e culpabilização que geralmente acompanhava os desmanchos feitos por parteiras em condições insalubres. O serviço ambulatório era apoiado por uma rede de contactos que circulava boca a boca, com números de telefone. Era proibido, mas era o PREC. Aqueles que lutam pelo aborto livre e gratuito debatem-se naqueles anos com leis e uma sociedade penalizadora 3, mas decidem combater agregando recursos humanos, meios técnicos e uma rede de apoio clandestina.

A história que interessa aqui agarrar é precisamente esta das formas autónomas de poder e ilegalidade, que na sua duração questionam o poder político democrático enquanto legítimo dispensador de liberdades e seguranças e bem-estar. É a mesma forma autoritária Estado que despenaliza o aborto em 2007, vindo assegurar o direito à escolha das mulheres e o usufruto de práticas abortivas no SNS, e que o penalizou até então, assegurando décadas de prisões e mortes, e um jugo feroz sobre a cabeça de todos nós. É ainda a mesma forma Estado que pode vir a penalizá-lo novamente. O regresso de mobilizações amplas pela penalização do aborto em Espanha torna mais claro o carácter precário da lei e das liberdades recentemente obtidas e dispensadas pelo Estado português. É talvez oportuno neste momento esclarecer que os autores deste texto votaram pela despenalização nos referendos, sem receio que a guilhotina do Estado lhes cortasse a mão de voto.

Cartaz de divulgação do ciclo de cinema porno-feminista no RDA69, em 2011: “mas as feministxs não acham todxs que a pornografia é uma forma de degradação e exploração de mulheres?”

Fabricando autonomia, o RDA69, novos grupos.

“Do mesmo modo que abandonámos as bolorentas identidades políticas, que deixaram há muito de contribuir para a construção de uma autonomia em combate contra uma sociedade de miséria, (…) recusamos, não sem esforço, os novos logros identitários de pacifistas, violentos, indignados, o caralho a quatro. Somos o corpo da revolta. A comuna em movimento.” Trata-se de um panfleto distribuído no 25 de Abril de 2012 por um emblemático bloco queer de cara tapada (Pink-Bloc), que integra o desfile comemorativo na Avenida da Liberdade, afirmando numa faixa que “o futuro é engendrado pelo desejo” – quase 40 anos depois do General Galvão de Melo ter afirmado na televisão pública que a revolução não se fez para prostitutas e homossexuais a reivindicarem. Nesse mesmo dia a ES.COL.A da Fontinha no Porto é reocupada por uma multidão determinada e um prédio na Rua de São Lázaro em Lisboa é também reocupado propondo outras formas de evocar Abril. Estas várias acções revelam, mais do que coincidência, comunicação. Continuam xs queer no panfleto: “O feminismo tem sido importante para a crítica e acção radical sobre a vida. Ele fala de desejo, de amor, de amizade, de homem e mulher, de corpos, de barricadas, da racionalidade instrumental, de xamanismo, de clínica. (…) A razão não o satisfaz, exige uma sensibilidade ou poética ou funções do cérebro direito. Exige bruxaria e histerismo”.

Antes deste momento vimos nascer a RDA69, Recreativa dos Anjos, em Junho de 2010; vimos um grupo assinar queers-feministas anticapitalistas e apelar ao “bloqueio e sabotagem” na convocatória para a primeira manifestação alguma vez feita em dia de greve geral (24 de Novembro de 2010), que juntou “mil pessoas entre o Largo de Camões e o Rossio” 4; vimos a 13 de Maio de 2011 os colectivos anónimos G13 – Grupo das Treze e Queers-Feministas-Anticapitalistas assinalar a data religiosa espalhando pelas ruas de Lisboa um cartaz com a Maria Madalena reclamando direitos sexuais para quem presta serviços sexuais; vimos uma SlutWalk em Lisboa, em Junho de 2011.

Reconhecemos relevo no que vimos acontecer na RDA69 e somos talvez demasiado suspeitos para o afirmar. É a partir de um núcleo de experimentação queer que gira em torno deste centro social que se dá uma saída do armário, não tanto individual quanto colectiva, concretizada na produção de acções e discursos múltiplos: “Super Cona 3”, o primeiro ciclo de cinema pornofeminista de Lisboa, o “book bloc” feminista que discute textos e filmes mensalmente, debates e rendez-vous vários, presenças queer organizadas em manifestações. Pela primeira vez, um espaço com uma forte expressão anarquista e autónoma conjugava, livre e alegremente, um programa eminentemente político com actividades como o “workshop de dildos”, para além de uma estética fortemente sexualizada que se viria a inscrever na divulgação dos eventos e na vida do espaço.

Surgem por essa altura várias grupos ou micro-movimentos que se reivindicam queer, tais como o Exército de Dumbledore, as Bichas Cobardes e os Rabbit Hole 5, confrontando a agenda dos direitos sexuais com uma mudança de direcção que transcende e muitas vezes crítica a agenda institucional dos partidos políticos e dos movimentos LGBT e feminista. Há um percurso queer hoje que é herdeiro de uma história e de um conjunto de laboratórios e ligações que é preciso identificar. Novos momentos haverá para se olhar com tempo para as propostas destas orgânicas, de modo a estabelecer um diálogo no campo da emancipação humana e, em particular, das próximas lutas na “época da austeridade”.

No centro do projecto queer há uma interrogação primordial sobre a relação que se estabelece entre os lugares que ocupamos, tão sexuais quanto políticos, tão económicos como sociais, e a possibilidade de acção política emancipadora. É nesta interrogação e nas respostas queer que tem sido avançadas, que encontramos a matéria bruta para re/pensar, re/organizar e re/inventar um movimento social suficientemente pujante e capaz para desnaturalizar o capitalismo e para construir um comum.

Fernando André Rosa
Miguel carmo
historiaqueer@Gmail.com

Notas:

  1. Ver, por exemplo: A despenalização do aborto em Portugal ― discursos, dinâmicas e acção colectiva: os referendos de 1998 e 2007, de Magda Alves entre outras. Oficina do CES, Coimbra, 2009.
  2. Em 1975 Margarida Gil filma o documentário Clínica Comunal Popular da Cova da Piedade, premiado em Leipzig, sobre a ocupação do palacete pela população e transformação em clínica; a 9 de Dezembro de 1975 um forte aparato militar, composto por uma centena de guardas-republicanos e fuzileiros, revista a Clínica às 6 horas da manhã, na sequência das manobras intimidatórias do pós-25 de Novembro.
  3. No início de 1976, uma reportagem polémica sobre aborto clandestino no programa “Nome – Mulher” da RTP intitulada “Aborto não é crime”, das jornalistas Maria Antónia Palla e Antónia de Sousa, levou à suspensão do programa e ao julgamento das autoras por “atentado ao pudor e incitamento ao crime”.
  4. O texto “Sobre a passagem de alguns milhares de pessoas por um breve período de tempo”, assinado pelas Edições Antipáticas, descreve este momento e enquadra-o numa proposta sobre o ciclo de lutas 2010-2013.
  5. Do manifesto Rabbit Hole: “Inspirada nas noites queer-trash das grandes urbes, nasce em Lisboa uma estrutura que dá espaço aos queers e às prostitutas, amantes da arte, do core, da artcore e do hardcore, cyborgues, genderfuckers e rave-feministas.”

 


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