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240415 educar mata

Portugal - PGL - Todas devem lembrar o acidente do petroleiro Prestige nas costas da minha terra, a Galiza, em novembro de 2002, que causou a maior maré negra na história da Europa.

 


O capitão do petroleiro escreveu na altura uma carta ao povo galego, a pedir desculpas pelo dano feito a todas as populações costeiras num país que, ele sabia por ter navegado durante anos à frente das nossas costas, vive em grande medida do mar. Nós, gente da ribeira, habituados por gerações a conviver com o Atlântico, compreendemos do mais profundo a dor do velho lobo de mar de sessenta e sete anos, o capitão Apostolos Mangouras, ao ver a degradação constante da sua nobre profissão. Embora ser ele o único rosto visível dos responsáveis da catástrofe, nós sabíamos que as causas do acidente não eram a ele atribuíveis. Foi empenho da plataforma Nunca Mais, o movimento cívico que xurdiu como resposta da cidadania contra a infâmia e a mágoa, encontrar os verdadeiros culpáveis do desastre. Uma empresa semelhante tinha guiado muitas das ações do povo irmão da Bretanha na sua causa contra os armadores do petroleiro Érica, que em 1999 causou outra devastadora maré negra. Assim fomos desmascarando a teia, a complexa teia tecida pela economia do petróleo em todo o mundo, que levou aquele malcheiroso fuel às rias tão amadas onde a história dos galegos criou alimento para o corpo e para a poesia.

Sirva o exemplo para mostrar um dos traços da vida social contemporânea e também do exercício da profissão docente: nunca vemos mais rosto real que o nosso. Culpabilizamo-nos por tudo ou desculpabilizamo-nos, que já foi dito que o inferno são os outros. Duas caras da mesma lógica que, por um lado, nos quer convencer de que não somos parte de um todo, quando de facto somos, e, por outro, nos retira qualquer margem de liberdade para as nossas escolhas enquanto profissionais. Os galegos nunca viram os rostos dos armadores do Prestige, nem dos donos da carga, nada. Abstratos, espetros, entes sem corpo, como forças fatídicas de tragédia grega, e, portanto, sem responsabilidades. E nós somos humanos, demasiado humanos. Creio que há uma linha direta entre o homem que se atirou há uns meses da ponte D. Luís no Porto e a dita e maldita crise. Diagnosticada a doença, procurem-se os remédios. Acontece é que não é a minha formação em leis. Tenho ouvido (conversas que se apanham) que temos um sistema de justiça pensado para os que roubam galinhas mas não para a dimensão dos crimes (económicos?) que tão evidente sofrimento está a causar à população portuguesa. Sei, todos sabemos, da complexidade e sofisticação à que chegaram os saberes. Mas também sei, quem escreveu o mito babélico sabia, que há uma relação direta entre as construções humanas e a incomunicação. Parece que é mesmo assim: sofistica-se o conhecimento e deixamos de compreender o próximo. E a terra real que pisamos. Eu tenho um saber simples. Dedico-me a observar as línguas, relacionar e interpretar. Também me dedico à poesia, e os poetas têm a mania de que o mundo tem uma ordem, ou teria de dizer harmonia ou melodia, que o homem insiste constantemente em alterar para a sua própria infelicidade.

Sirva isto tudo, minhas muito caras colegas, para dizer o que está a acontecer na nossa diária prática profissional. O que motiva esta carta é começar a abrir brecha para conseguir, algum dia, exercer a minha profissão com dignidade e soberania real sobre as minhas escolhas. Tenho suficiente massa crítica para questionar o estado da instituição para a que trabalho, bom senso para medir as minhas forças e coração para desejar o melhor para os seres humanos reais que são os meus alunos, verdadeiras vítimas inocentes deste sistema desumano em que temos de exercer o nosso tão humano trabalho. Desses pensamentos moles que nos alheiam dói-me especialmente a ocultação do que os professores como simples seres humanos estamos a viver nas salas de aula, único espaço real do nosso complexo sistema educativo. É aí onde fomos ficando encerrados, como aqueles irmãos do conto “Casa tomada” do argentino Julio Cortázar, que sem que nunca se saiba muito bem porquê, se vem obrigados a fechar uma por uma todas as divisões da casa que lhes pertence até se verem reduzidos a um único quarto e, finalmente, serem expulsos da sua casa. Porque a casa, a escola, era nossa.

O que confunde é o desentendimento entre as mensagens e os hábitos, mensagens de vocação humanista para ficarem encerradas em algum prefácio, e hábitos pedagógicos que só valorizam a obediência a um padrão preestabelecido, uniforme de uma ponta a outra do estado. Nesta altura da história do conhecimento trabalhamos em grande medida sobre um grande parque arqueológico, com capas sedimentadas de diferentes épocas, também no ensino. Sei quanto se distinguem os nossos estados ibéricos pelas muitas biografias de penúria, exílio, martírio mesmo, dos seres mais amantes do conhecimento, em especial os docentes. Nada de estranho em estados com predomínio de regimes autocráticos, tão obcecados com o controlo do acesso ao conhecimento. Verdadeiros humanistas escreveram algumas dessas palavras belas e bem encerradinhas que flutuam inúteis pelos programas educativos como vítimas de um naufrágio. Para mim, docente destes inícios do século XXI, o conhecimento é uma questão mais que de amor, de paixão mesmo pela condição do homem, as suas linguagens e os seus erros, a lenta e repetida epopeia dignificar cada vida. Há poemas, histórias, imagens, pensamentos, mesmo versos, que me acompanham desde há anos. Sinto-me mesmo à vontade com esta minha natureza que de maneira tão inclassificável mesmo para mim própria combina a lógica analítica, a intuição poética e a ação cívica. Podem crer, de todos os cenários pelos que transito, e são vários, em dois estados, com pessoas de muitas nacionalidades e bagagens de conhecimento, o cenário mais difícil, o campo de batalha onde me sinto mais derrotada, é a escola.

Este meu tão frágil como forte coração de miúda que me acompanha no meu caminhar pelo mundo rebela-se contra esta história tóxica que quer produzir humanos em série, como se prova por exemplos como a redução das avaliações a relatórios de estatísticas ou à obsessão milimétrica pelas metas. Quando leio alguns documentos saídos do ministério de educação, não posso evitar que me acudam as histórias e as imagens das pessoas que me amaram e amei, essa fortaleza de emoções que me tem em pé: a gente do meu bairro na Crunha, a minha extensa família espalhada pelo mundo, os meus pais, a minha muito querida irmã, os meus amigos… Lembro a luta da minha mãe contra essa história que lhe queria impor uma identidade alheia roubando-lhe o conhecimento da língua da sua mãe, minha avó, tão imensa. Não quero ser peça dessa máquina em que se converteu a escola pública, não quero ser funcionária nem funcional. Quero ser pessoa, curiosa, emotiva, amorosa, criativa, livre, também como docente. Tenho hábito de ler e ouvir histórias desde criança e desenvolvi muita intuição para ver se uma sequência narrativa está correta. Acreditem que a história atual da nossa escola está mal contada. Frente a esta escola sem rostos reais, eu não abdico do princípio de que é na conversa que tudo se decide, que todos os nós se desfazem e todas as alianças se tecem, sentindo a nossa inteira e universal humanidade. Lembrem aquilo da “vida conversável” de Agostinho da Silva?

Tenho para mim, e não sou a única que trabalha com esse fio de pensamento, que as mudanças que precisamos para este mundo tão desumanizado passam pela dignificação do humano concreto, diverso e vital, pela descoberta do universo em cada vida, tão plural. Nesta nossa escola dominada pelas estatísticas, em que tudo tem uma medida que nos estandardiza, eu meço a minha atividade pelo assombro da alma. Dela (aos meus professores de filosofia do liceu devo esta citação) dizia Heráclito: “Não encontrarás os limites da alma, caminhes o que caminhares: tão profunda é a sua medida”. Com ela e por ela continuemos a nobre aventura da expansão do conhecimento, também, como não, na escola livre e verdadeiramente democrática, também para nós, professoras.


Maria Dovigo: Nasci na Crunha em 1972 e vivo desde 2000 em Portugal. A minha formação é a Filologia, exerço a docência e sou poeta por vocação. No labor criativo ligo a minha vontade de intervenção cívica com a convicção de que a criação é a verdadeira natureza do ser humano. Colaboro com diferentes associações do espaço lusófono, tecendo redes de afetos e projetos à volta da vivência da língua portuguesa. Sou académica de número da Academia Galega da Língua Portuguesa.

 

 

 


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