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050715 gr ptPortugal - Resistir - [João Carlos Graça] São obviamente múltiplas, e de natureza muito variada, as conclusões a retirar do confusíssimo e atabalhoadíssimo evoluir recente da situação na Grécia.


 Procuremos ainda assim enunciar algumas ideias claras, no meio do turbilhão de acontecimentos e de contra/informação em que estamos mergulhados. A primeira delas é que não existe nem existiu qualquer verdadeira “negociação” entre Atenas e a “Europa”. Houve, isso sim, um formular pela tal “Europa” duma lista de deveres a cumprir pelo governo grego, seguida do lento deslizar deste, que passou duma intenção declarada de não cumprir nada ou quase nada a uma outra, de aceitar cumprir, vamos lá, 50 por cento, depois 80 por cento, depois talvez 90… (Quanto a este assunto, ver aqui, sff:  internacional.elpais.com/... ) 

Face a isto, emerge a célebre proposta de referendo, muito elogiado por alguns dado supostamente “devolver o poder ao povo”, deixando-lhe a “última palavra”, etc. Todavia, e independentemente mesmo de conjeturas sobre as reais intenções de quem procede dessa forma, parece resultar bastante óbvio que os eleitores gregos irão no próximo domingo pronunciar-se duma forma que é tudo menos livre. É livre a decisão de quem se pronuncia face à eminência propalada de caos, num contexto de, por exemplo, já quase não se poder levantar dinheiro nas caixas multibanco? Será livre a decisão de quem se pronuncia com uma pistola apontada à cabeça, ou num contexto que é já de guerra não declarada à Grécia, como afirma por exemplo Stathis Kouvelakis? (Aqui, sff:   esquerdasocialista.com.br/... ) 

Todavia, e embora eu simpatize com essa preocupação de Kouvelakis, ou precisamente por isso, as suas próprias palavras suscitam-me uma réplica imediata:  se é verdade que a situação é a do nível de chantagem referido, então a sua afirmação de que "Não pode haver dúvidas de que esse referendo é um bravo ato político" deve ser considerada como constituindo ela própria um óbvio desatino. De facto, terá sido "um bravo ato político" perguntar por exemplo aos austríacos, em 1938 (nas condições em que isso realmente ocorreu) se queriam a anexação pela Alemanha? Claro está, isso não questiona a "bondade intrínseca", digamos assim, das teses "Austro-marxistas" favoráveis à ligação voluntária da Áustria à Alemanha. Faz é, isso sim, levar em devida consideração que se discute em 1938 uma anexação em concreto; não o princípio genérico da bondade em si mesma da tal ligação Alemanha-Áustria. 

DA ZONA DO "CATEGÓRICO" PARA A ZONA DO "CONDICIONAL" 

Organizar um referendo é "devolver o poder ao povo", logo também proceder democraticamente? Bom, à primeira vista sim, mas como os nossos regimes reconhecidamente não são de democracia direta, mas de democracia representativa, é natural que se admita desde logo também que todo o referendo "traz água no bico"… Tipicamente, reconheçamo-lo, organiza-se um referendo quando não se sabe bem o que fazer. Despenaliza-se o aborto ou o consumo de drogas leves? Faz-se a regionalização? Não se sabe bem… e precisamente por isso, porque não se sabe bem (não porque "é democrático") faz-se um referendo. Evidentemente, isso significa que o assunto passou, para os decisores políticos, da zona do "categórico" para a zona do "condicional":  é conveniente e bom às vezes, mas noutras não. Se o assunto estiver na zona do categórico, obviamente não vai a referendo. Se existe escravatura e um partido chega ao poder com um programa abolicionista, esse partido deve pôr o programa em prática, isto é, abolir mesmo a escravatura; não deve fazer um referendo para saber se abole mesmo ou não. Se um exército libertador chega a um campo de concentração, liberta imediatamente (e fornece tratamento, o que não é coisa despicienda) à população prisional. Não faz um referendo, nem mesmo no âmbito da própria população prisional, sobre se deve ou não proceder à sua libertação. 

Dito isto, o que (reconheço-o) já não é lá muito abonatório da organização de referendos, há ainda que acrescentar que os decisores políticos podem bem, para além do mais, ter programas (ou "agendas") ocultos, radicalmente diversos daqueles que declaram. Quando António "Toneca" Guterres, por exemplo, promoveu entre nós os referendos acerca da despenalização do aborto e da regionalização, em finais da década de 1990, não fez isso com o intuito de promover aquelas causas, mas de as asfixiar. Missão cumprida no primeiro caso apenas transitoriamente, tendo ATG declarado aí qual era a sua inclinação:  favorável ao Não, mesmo que contra a linha maioritária do PS. Missão cumprida até agora definitivamente quanto ao segundo caso, tendo então ATG declarado o contrário da sua inclinação: opunha-se de facto à regionalização e fez tudo para lesar essa causa, mas dizia "for the record" que a apoiava. 

Como se pode já ver, o panorama em matéria de referendos é tudo menos propiciador dum juízo claro quanto à bondade da iniciativa. Mas, pelo menos, evite-se a conversa de que é e deve ser assim "porque é democrático". A anexação da Áustria pela Alemanha em 1938 foi referendada; a da RDA em 1990 não foi:  qual delas foi democrática? A Constituição portuguesa de 1933 foi aprovada através de referendo; a de 1976 não foi:  qual delas era democrática? A Bósnia-Herzegovina através de referendo fez secessão da ex-Jugoslávia e depois disso a SRPSKA (a república dos bósnios sérvios) também através de referendo fez secessão da Bósnia-Herzegovina:  estas secessões foram ambas democráticas, ou nenhuma o foi? Podíamos obviamente continuar, quase indefinidamente… 

E quanto à Grécia, hoje em dia? Não digo, registe-se bem, que Tsipras e/ou Varoufakis tenham uma atitude "guterrista" face ao referendo que promoveram. Acho, pelo contrário, que são mesmo genuinamente favoráveis ao que declaram, isto é, à vitória do Não. O problema é que a realização do referendo ocorre num contexto em que o SYRIZA e o seu aliado dispõem de maioria no Parlamento grego, mas estão roídos até à medula por cisões e hesitações, por fações e tergiversações, de modo que os setores mais "pró-Europa" não tardariam decerto a saltar do barco, perdendo com isso a coligação governamental a maioria, caso o governo rejeitasse de forma terminante o ultimato da "Europa". Por isso, pretenderam refugiar-se num consenso sólido. Daí o referendo, para disporem dum suposto "ás" negocial que pudessem exibir, contrapondo-o à pressão da "Europa". 

Mas como o ambiente geral é o que é, a realidade do Euro e das "instituições europeias" impõe-se por si mesma, queiram Tsipras e/ou Varoufakis o que quiserem, e em boa verdade queira o povo grego o que quiser. Tsipras e/ou Varoufakis arriscam-se portanto, face a um já ultrapassado prazo "troikista" de 30 de Junho, perante máquinas multibanco que não têm dinheiro, a levarem eles mesmos um Não da população grega, pronunciando-se esta maioritariamente pelo Sim às exigências da "Europa", isto é, pela cedência a 100 por cento. Mas será essa uma decisão "livre" e "democrática"? 

Todavia, pelo menos o Não também pode vencer, contrapor-se-á. Menos mau assim, talvez. Mas então… que quererá dizer o resultado do referendo? Como interpretar a possível vitória do Não? Que será o Sim à cedência a 90 por cento que o governo grego já aceitou fazer, como opina o KKE? O KKE, devo dizê-lo, esteve bem em minha opinião ao rejeitar o referendo. Mas, uma vez este decidido, ao optar pelo voto nulo tomou uma decisão muito discutível, ela própria de consequências potencialmente perigosas:  imagine-se o que será, se o Sim vencer tangencialmente… 

Mas não é esse o problema fundamental. O erro fundamental, estratégico, não foi o KKE quem o cometeu. Este último terá talvez errado taticamente, mas o vício básico esteve do lado do SYRIZA e do governo grego, ao avançarem para referendo numa matéria como esta, sugerindo desde logo ipso factoque o assunto da rejeição da austeridade deixou para eles de ser categórico, para passar a meramente condicional. O que, reconheça-se, se ainda não é traição plena, é já em todo o caso uma grande fraqueza. 

FUNDAMENTAL IMPOSTURA DO SYRIZA 

Acresce a tudo o mais que o governo grego, antes de todos o próprio Varoufakis, tem revelado bem que entre as coisas que arruma na zona do "isso-nem-se-discute", que considera serem elas sim "categóricas", coloca antes de mais a pertença à própria "Europa", a tal "Europa" (aqui, sff:  www.globalresearch.ca/... ). Outros terão ainda tentado abordar o "problema grego" mantendo a Grécia na UE, sim, mas apenas por conveniência e calculismo, estabelecendo possíveis pontes para os BRICS, fazendo dela, quem sabe, uma espécie de cavalo-de-Troia da Rússia ou da China na "Europa" (um pouco como se diz que para De Gaulle seria o Reino Unido relativamente aos EUA, embora russos e chineses viessem a operar em escala decerto bem mais modesta). Mas tais conjeturas estão já muito afastadas da lígia limpidez "europeísta" do discurso de Varoufakis. E isso, para além da untuosidade retórica que veicula, a qual me obriga aliás a um rigoroso exercício de contenção nesta minha réplica, comporta já a súmula dos "erros estratégicos" do SYRIZA, ou da sua fundamental impostura. Mesmo assumindo que as intenções de Varoufakis são as melhores (coisa que decididamente não faço), colocar o problema nestes termos é já obviamente dizer à "Europa" que nós podemos bem ter as manilhas todas do nosso lado… mas eles têm os ases, desde logo dada a incondicionalidade da nossa adesão ao "europeísmo", dado o nosso procedimento assumidamente e conscientemente de "Euro-suckers", e "Euro-suckers" que dessa condição se vangloriam. Não é necessário, parece-me, conhecer muito de "teoria dos jogos" para compreender isso… 

Quer-se mesmo combater a austeridade? Então, duma vez por todas, entenda-se que é necessário antes de mais assumir a saída do Euro! E trate-se de levar isso conscientemente, como programa de atuação, a uma formação política capaz de chegar ao poder. E que, uma vez chegada ao poder, trate mesmo de sair do Euro, não leve o assunto a referendo, porque um qualquer referendo só poderá/poderia ocorrer então (como agora acontece) em condições ultra-batoteiras e super-baralhadas. E isso, como está bom de ver, não é democrático. Se não disser e fizer assim, com esta clareza com que aqui ficou enunciado, então podemos ficar seguros de que alguém estará decerto a mentir, ou a enganar outrem. Alguns dirão que talvez se esteja a mentir, ou pelo menos a ocultar a verdade, sim, mas duma forma "pedagógica". Porque a população tem um temor patológico da saída do Euro, e com esse programa declarado ninguém ganharia as eleições. Que, uma vez chegada ao poder, essa tal formação política "anti-austeritária" deveria evidenciar bem (então sim) ser o programa "anti-austeridade" completamente incompatível com o Euro, e que só então tudo ficaria completamente à vista de toda a gente. 

Mas isso é, reconheçamo-lo, por definição mesmo um programa impostor, e bom para impostores. "Todos os cretenses mentem, disse o cretense…" Mas nem todos os gregos têm de mentir, acrescentemo-lo; nem de ocultar "pedagogicamente" verdades fundamentais. Aliás, e crucialmente importante, quem faz isso pode estar mentir, ou a ocultar verdades relevantes, não num dos sentidos, ou a uma das partes intervenientes, mas precisamente no outro sentido, ou à parte oposta. Em concreto, à população grega, pelos vistos neste caso "a última a saber" quão condicional é a rejeição da austeridade por parte do SYRIZA. 

Para que não se fale só dos males dos outros, enfim, reconheçamos também que, se a situação na Grécia é miserável, política e moralmente, em Portugal é muito pior ainda. Nós, que gostamos de falar de lusofonias, nem nos lembramos (por um momento sequer) que tal como a Grécia também temos "uma Rússia", que um outro dos BRICS é o Brasil, aquele a que por vezes até gostamos de chamar nosso "país-irmão". 

Nós, num outro plano, nem referendos batoteiros fazemos… porque a nossa elite nem desse recurso precisa, para conseguir dar-nos um completo "bailinho". Basta a propaganda "europeísta", omnipresente; mais o consenso inabalável do "arco da governação" (PSD, PP e PS); mais o Bloco de Esquerda, que é oficialmente pró-Euro por princípio, embora também seja oficialmente anti-austeridade por princípio (declara isto, evidentemente, não para nos enganar a nós, nós outros, eleitores, mas com o intuito de enganar a Troika; ah, e também porque procura proceder "pedagogicamente", claro…); mais o PCP, enfim, o prudente PCP, que prudentemente acha que nos "devemos preparar" para a saída do Euro:  seja por iniciativa nossa, ou por iniciativa de Bruxelas/Francoforte, ou por ambas as duas… 

Como é óbvio, a posição do PCP faz lembrar, mas por contraste gritante, os versos da famosa canção de resistência brasileira:  "esperar não é saber, quem sabe faz a hora, não espera o acontecer…" Mas a verdade é que ainda é "o menos mau" que se encontra no panorama português. Para quê, neste contexto, falar de misérias gregas? 


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