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download 2Portugal - Diário Liberdade - [Rodrigo Barreto da Silva Moura] Ensaio sobre a cegueira (1995) obra do escritor português José Saramago problematiza por via ficcional uma espécie de cegueira coletiva, também conhecida como "mal branco", posto que ao invés de deixar os personagens enxergando tudo escuro, esse tipo de cegueira produz uma sensação de como se tivesse acendido todas as luzes.


 

No início da obra, percebemos um ambiente banal. A correria de uma cidade grande e seus inúmeros sinais de transito. Quando, de repente, o sinal abre e um dos carros não anda. É o começo de uma onda de eventos de cegueira que se espalharão por toda a obra.

"O disco amarelo iluminou-se. Dois dos automóveis da frente aceleraram antes que o sinal vermelho aparecesse. Na passadeira de peões surgiu o desenho do homem verde. A gente que esperava começou a atravessar a rua pisando as faixas brancas pintadas na capa negra do asfalto, não há nada que menos se pareça com uma zebra, porem assim lhe chamam. Os automobilistas, impacientes com o pé no pedal da embraiagem, mantinham em tensão os carros, avançando, recuando, como cavalos nervosos que sentissem vir no ar a chibata. Os peões já acabaram de passar, mas o sinal de caminho livre para os carros vai tardar ainda alguns segundos, há quem sustente que esta demora, aparentemente tão insignificante, se a multiplicarmos pelos milhares de semáforos existentes na cidade e pelas mudanças sucessivas das três cores de cada um, é uma das causas mais consideráveis dos engorgitamentos da circulação do automóvel, ou engarrafamentos, se quisermos usar o termo corrente" (SARAMAGO, 1995, p. 11)

Irlemar Chiampi em O realismo maravilhoso (2012) assinala uma profunda ruptura que ocorreu em meados da década de 1940 cujos autores tiveram um intenso desafio de fugir do Realismo como escola que retrata a realidade, posto que seus métodos já não convenciam a um público leitor cada vez mais exigente e esperançoso por mudanças no fazer literário.

"A constatação de um vigoroso e complexo fenômeno de renovação ficcional, brotado entre os anos 1940 e 1955, gerou o afã de catalogar suas tendências e encaixa-las sob uma denominação que significasse a crise do realismo que a nova orientação narrativa patenteava. Assim, o realismo mágico veio a ser um achado critico-interpretativo, que cobria de um golpe, a complexidade temática (que era realista de um outro modo) do novo romance e a necessidade de explicar a passagem da estética realista-naturalista para a nova visão ("mágica") de realidade" (CHIAMPI, 2012, p. 19)

Nesse sentido a obra Ensaio sobre a cegueira rompe com os padrões do Realismo como estética que serve para retratar a realidade e cria novas dimensões do real através de uma cegueira generalizada. Faz-se necessário ressaltar que o ambiente em que se passa a narrativa é um ambiente banal, comum, entretanto quando surgem os primeiros casos de cegueira, há uma certa impressão de terror e medo, posto que foge de toda lógica cientifica. Entretanto, o leitor não fica se indagando o tempo todo como isso aconteceu, simplesmente vemos o desenrolar da narrativa que nos conduz por essa nova realidade. Surge, portanto uma nova modalidade de medo. Não estamos diante de medo de fantasmas ou figuras mágicas e sim num ambiente comum com algo que nos escapa a explicação pelo viés da ciência.

Zygmunt Bauman em O medo liquido (2008) discorre sobre a criação de novas realidades e que o medo vai de encontro com esse novo, afirmando que:

"O medo é mais assustador quando difuso, disperso, indistinto, desvinculado, desancorado, flutuante, sem endereço nem motivos claros, quando nos assombra sem que haja uma explicação visível, quando a ameaça que devemos temer pode ser vislumbrada em toda a parte, mas em lugar algum se pode vê-la. Medo é o nome que damos a nossa incerteza, nossa ignorância da ameaça e do que deve ser feito – do que pode e do que não pode – para fazê-la parar ou enfrentá-la, se cessá-la estiver além do nosso alcance" (BAUMAN, 2008, p.8)

A cegueira é tida como algo inesperado e isso causa no leitor um certo espanto, terror e medo, pois o inexplicável ganha forças e a irrealidade entra no plano do real como se fizesse parte dele. Em se tratando de uma cegueira branca, mais uma vez estamos diante de elementos estranhos, tendo em vista que o que se imagina é que a cegueira apague, ofusque a visão.

"O homem está lá dentro vira a cabeça para eles, a um lado, a outro, vê-se que grita qualquer coisa, pelos movimentos da boca, percebe-se que repete uma palavra, não, duas, assim é realmente, consoante se vai ficar a saber quando alguém enfim, conseguir abrir a porta, Estou cego" (SARAMAGO, 1995, p. 12)

Em se tratando da adaptação do livro para o filme, essa cena talvez cause uma espécie de confusão mental no leitor, posto que quando lemos sobre a cegueira, temos uma certa impressão de escuridão e ofuscamento. Na cena, vê-se que o homem com traços orientais fica cego em meio a um transito de uma grande cidade. Até então, tudo parece normal, tudo parece estar conforme as convenções de realidade. As expressões do homem no filme mostram angustia, desespero, medo e aflição. Logo depois, um outro homem chega com o pretexto de ajudar o cego, quando sua intenção é roubá-lo mais tarde. No filme, a sensação de horror é intensificada pela sonoplastia que denota tensão e medo. O efeito de luzes com os semáforos abrindo e fechando deixam um ar de banalidade e, ao mesmo tempo, intensificam o medo. Os traços do primeiro cego são bem singulares.

"... os olhos do homem parecem sãos, apenas de relance, a íris apresenta-se nítida, luminosa, a esclerótica branca, compacta como porcelana. As pálpebras arregaladas, a pele crispada da cara, as sobrancelhas de repente revoltas, tudo isso, qualquer o pode verificar, é que se descompôs pela angustia. Num movimento rápido, o que estava à vista desapareceu atrás dos punhos fechados do homem, como se ainda quisesse reter no interior do cérebro a última imagem recolhida, uma luz vermelha, redonda, num semáforo" (SARAMAGO, 1995, p.12)

David Harvey em A condição pós-moderna (2008) discorre sobre a transitoriedade dos tempos modernos, apontando para uma falta de núcleo para questões de identidade, sujeito e espaço, posto que com o advento da modernidade, o sujeito fragmentou-se, causando uma espécie de caos interno e externo, fazendo com o que os seres humanos perdessem, de certa forma, sua humanidade. No romance Ensaio sobre a cegueira vemos claramente essa perda de humanidade quando os cegos são colocados em uma espécie de manicômio vivendo em condições desumanas a fim de conter a possível epidemia de cegueira. Dentro desse espaço, ocorrem verdadeiras barbaridades, como violência, estupro e morte. Logo, Saramago nos leva a repensar essa humanidade e que caminhos estamos trilhando.

"Se a vida moderna está de fato tão permeada pelo sentido do fugidio, do efêmero, do fragmentário e do contingente, há profundas consequências. Para começar, a modernidade não pode respeitar sequer o seu propósito passado, para não falar do que qualquer ordem social pós-moderna. A transitoriedade das coisas dificulta a preservação de todo sentido de continuidade histórica. Se há algum sentido na historia, há que descobri-lo e defini-lo a partir de dentro do turbilhão de mudança, um turbilhão que afeta tanto em termos de discussão como o que esta sendo discutido. A modernidade, por conseguinte, não apenas envolve uma implacável ruptura com todas e quaisquer condições históricas precedentes, como é caracterizada por um interminável processo de rupturas e fragmentações internas inerentes" (HARVEY, 2008, p. 22)

Poder-se-ia ver claramente essa fragmentação e esse terror que a sociedade contemporânea enfrenta. Portanto, a obra de Saramago nos faz também uma intensa crítica social, ou seja, a cegueira pode ser vista como um mal que atinge toda a humanidade, posto que estamos cegos para tudo o que é humano, estamos cegos para os pequenos detalhes, para a beleza da vida. Ao colocar seu romance num ambiente banal – uma cidade grande, o escritor só corrobora para uma crítica a essa sociedade que enclausura, que mantém o controle sobre os seres humanos e que, na correria do dia a dia, vamos pouco a pouco perdendo nossa humanidade. Observa-se com clareza essa noção quando o médico oftalmologista diz que está cego e que gostaria que chegasse a luz do dia, ou seja, a cegueira não foi suficiente para fazê-lo repensar a condição miserável em que os seres humanos estão vivendo.

"Estou cego, mas ao mesmo tempo queria que chegasse rapidamente a luz do dia, com estas exactas palavras o pensou, A luz do dia, sabendo que não a iria ver. Na verdade um oftalmologista cedo não poderia servir para muito, mas competia-lhe a ele informar às autoridades sanitárias, avisá-las do que poderia estar a tornar-se em catástrofe nacional, nada mais nada menos que um tipo de cegueira desconhecido até agora, com todo o aspecto de ser altamente contagioso, e que, pelos vistos, se manifestava sem prévia existência de actividades patológicas anteriores de caráter inflamatório, infeccioso ou degenerativo, como pudera verificar no cego que o fora procurar ao consultório, ou como no seu próprio caso se confirmaria, uma miopia leve, um leve astigmatismo, tudo tão ligeiro que havia decidido, por enquanto, não usar lentes correctoras. Olhos que tinham deixado de ver, olhos que estavam totalmente cegos, encontravam-se no entanto em perfeito estado, sem qualquer lesão, recente ou antiga, adquirida ou de origem" (SARAMAGO, 1995, p.37)

Ana Paula Arnaut em Post-modernismo: o futuro do passado no romance português contemporâneo (2011) prefere a utilização do termo Post-modernismo para designar muitas das obras de Saramago, baseada na máxima non nova, sed nove, ou seja, não se trata de uma nova estética e sim uma outra forma de se fazer. Logo, essa obra de Jose Saramago estaria para a pesquisadora portuguesa dentro desse Post-modernismo, posto que

"Da nova literatura sobressaem os seguintes aspectos: A mistura de gêneros e a decorrente fluidez genológica, num culto ostensivo e quase sempre subversivo, a insistente e crescente polifonia, em algumas situações a tocar as fronteiras do indecidível, da fragmentação e da (aparente) perda de narratividade, os exercícios metaficcionais, já presentes em romances cômicos e satíricos do século XVIII, mas agora renovados em grau e qualidade e alargados da escrita da história e re-escrita da História" (ARNAUT, 2011, p. 131)

De volta ao romance é importante destacar o papel da mulher do médico, posto que ela como única a enxergar é a que conduz toda a história, a que dá luz e visão aos cegos. Assim como em outros romances, Saramago apresenta-se como um autor que vê certa esperança em acontecimentos vários. Assim como em A jangada de Pedra que termina com a vara de negrilho ficando verde, demonstrando que o mundo ainda pode ser mudado, assim como em Levantado do chão que conta a trágica história da família Mau-Tempo, mas que consegue ter voz no final do romance. Vemos em Ensaio sobre a cegueira um autor preso à utopia, ou seja, um autor que acredita no ser humano acima de tudo. Nesse sentido Lourdes Cancio Martins em Reconfigurações da utopia na Ficção Pós-Moderna adverte para que:

"Saramago afasta-se do modelo clássico de utopia, que propõe a reorganização do mundo numa via paralela à realidade, preferindo a variante prospectiva do paradigma, que o autoriza a idealizar a transformação do mundo no prolongamento do presente histórico. O mundo que inventa na Jangada de Pedra não se funda apenas no imaginário geográfico, mas também numa historia alternativa, através da qual procuraria responder às expectativas do leitor contemporâneo e, assim, ao seu desejo de saber" (MARTINS, 2004)

A mulher do medico tem um papel essencial no romance, ela guia os cegos em todos os momentos, como uma espécie de Joana D'Arc, essa personagem tão singular, usa de sua visão e de sua esperança para fazer com que todos acreditem que a vida é possível. Um dos episódios mais marcantes envolve um estupro coletivo. Dentro do manicômio, alguns cegos tentam monopolizar o acesso à comida e as mulheres devem submeter-se aos mais cruéis meios para obter alimento para todos. Nesse sentido, Saramago aponta para inúmeros questionamentos, mas o que nos chama atenção é a cena de horror e pavor quando as mulheres são violentadas . O filme parece bem sucedido no que tange à essa cena, posto que mostra um ambiente sujo, escuro e propício às maiores barbáries. Nota-se, nesse paradigma, a mulher como objeto. Em relação a dimensão eidética que diz respeito às linhas que configuram a superfície de uma pintura, vemos linhas deformadas, corpos deteriorados corroborando para o efeito de horror. No plano cromático, percebe-se nuances de cores escuras e uma certa claridade que nos permite enxergar todo o terror sofrido por essas mulheres.

"O que as aterrorizava não era tanto a violação, mas a orgia, a desvergonha, a previsão da noite terrível, quinze mulheres esparramadas nas camas e no chão, os homens a ir de umas para outras, resfolegando como porcos, O pior de tudo é se eu vou sentir prazer, isto pensava-o uma das mulheres. Quando entraram no corredor por onde se chegava à camarata do destino, o cego do sentinela deu o alerta. Já as ouço, já ai vem. A cama que servia de cancela foi afastada rapidamente, uma a uma, as mulheres entraram. Umas tantas, exclamou o cego da contabilidade, e ia contando com entusiasmo. Onze, doze, treze, catorze, quinze, são quinze. Foi atrás da última, metia-lhe as mãos sôfregas por baixo das saias, Esta já cá canta, esta já é minha, dizia. Tinham deixado de fazer a revista, a avaliação previa dos dotes físicos das fêmeas" (SARAMAGO, 1995, p. 184)

Cabe salientar a imagem da mulher do médico como força, como luz. Poder-se-ia dizer que Saramago coloca, nesse romance, a imagem da mulher como um ser iluminado. Isso pode ser evidenciado quando a mulher do médico toma para si toda a responsabilidade sobre aqueles cegos, de certa forma, dando ordem ao caos instalado. Mesmo em meio a cansaço, violência física e moral, a mulher do médico se mantém firme. Nesse sentido, vemos claramente o elemento de esperança que é bem característico das obras saramaguianas. Há uma parte do filme em que a mulher se encontra pensativa , de braços cruzados e um olhar distante, pálida, mas uma palidez brilhosa que pode representar o contraste claro x escuro presente na obra e no filme. Essa imagem remete à uma mulher cansada, sofrida, violentada, mas ao mesmo tempo, nota-se uma mulher forte que comanda e está alerta a qualquer tipo de perigo. Tanto que em várias partes do romance e do filme ela aparece a frente, guiando o grupo, assumindo o papel de mãe desses personagens desamparados que perderam tudo – a visão, a dignidade e a humanidade. Caso a mulher do médico não existisse, não existiria esperança para um futuro melhor. Mais uma vez, Saramago nos brinda colocando uma mulher no centro, ou seja, o autor da visibilidade a um ser que, muitas vezes, foi tido como marginal.

"A mulher do médico tem nervos de aço, é afinal a mulher do médico está desfeita em lágrimas por obra de um pronome pessoal, de um advérbio, de um verbo, de um adjetivo, meras categorias gramaticais, meros designativos, como o são igualmente as duas mulheres mais, as outras, pronomes indefinidos, também eles chorosos, que se abraçam a da oração completa, três graças nuas sobre a chuva que cai. São momentos que não podem durar eternamente, há mais de uma hora que estas mulheres aqui estão, é tempo de sentirem frio, Tenho frio, disse já a rapariga dos óculos escuros" (SARAMAGO, 1995, p.267-268)

Flavio García, Júlio Franca e Marcello de Oliveira Pinto no capítulo introdutório de As arquiteturas do medo e o insólito ficcional (2013) salientam que

"... na Contemporaneidade, pensada como feixe temporal que abarque uma longa fatia de, mais ou menos, os últimos cem anos, desde o século XX até este século XXI, "não é mais tão necessária |para provocar medo, como ocorria com o Fantástico dos Oitocentos| a aparição de um fenômeno sobrenatural (em seu sentido mais tradicional), porque a transgressão [da realidade] se gera mediante a irresolúvel falta de nexos entre os diversos elementos do real" (p. XX)

Para Filipe Furtado em A construção do fantástico na narrativa (1980) aponta que o efeito fantástico e o ambiente de terror não precisam, necessariamente, de fantasmas ou figuras assombrosas, posto que a própria ruptura com as estruturas do que concebemos como real já suscita um sentimento de medo e inquietude. Alem disso, o critico português aponta a importância da recepção, ou seja, o leitor decide o que considera como real e que como irreal.

"Assim, de forma aproximativa, a primeira expressão "história de fantasmas" corresponde a uma área importante do fantástico, chegando mesmo, a ser muitas vezes usada como equivalente a ele na língua em que M. R. James escreve, o inglês. A segunda "narrativas maravilhosas" reporta-se, naturalmente, ao gênero maravilhoso, enquanto a terceira "narrativas misteriosas" aparenta referir o gênero estranho. Finalmente, "narrativas sobrenaturais" designa uma área muito mais vasta em que se inscrevem os três gêneros anteriores, por vezes denominada "literatura sobrenatural" (FURTADO, 1980, p. 8)

Um outro momento marcante na obra é quando a rapariga dos óculos escuros toma banho de chuva . Parece que a chuva representa, em certa medida, uma limpeza espiritual por toda a violência sofrida. A cena demonstra a vida nos seus pequenos detalhes, o estar vivo, estar limpo após um período turbulento. Mais uma vez, conseguimos identificar a utopia e a esperança na obra de José Saramago. O filme retrata a personagem com expressões de felicidade, com sorriso no rosto e contornos que definem bem o estado de euforia. Além disso, no plano cromático, percebe-se claramente a utilização de cores claras e de uma claridade que reforça a ideia de pureza, de limpeza e de esperança.

"Não podem imaginar que estão além das três mulheres nuas, nuas como vieram ao mundo, parecem loucas, devem de estar loucas, pessoas em seu perfeito juízo não se vão pôr a lavar numa varanda exposta, aos reparos da vizinhança, menos ainda naquela figura, que importa que todos estejamos cegos, são coisas que não se deporta que todos estejamos cegos, são coisas que não se devem fazer, meu Deus, como vai escorrendo a chuva por elas abaixo, como desce entre os seios, como se demora e perde na escuridão do púbis, como enfim alarga e rodeia as coxas, talvez tenhamos pensado mal delas injustamente, talvez não sejamos é capazes de ver o que de mais belo e glorioso aconteceu alguma vez na história da cidade, cai do chão da varanda uma toalha de espuma, quem me dera ir com ela, caindo interminavelmente, limpo, purificado, nu" (SARAMAGO, 1995, p. 266)

Dever-se-ia pensar também que José Saramago, sendo declaradamente filiado ao Partido Comunista Português (PCP), não deixa de lado uma certa crítica social, ou seja, problematiza acontecimentos sociais através de uma literatura que nos faz pensar e repensar nosso papel na sociedade e no que a humanidade tem se formado. Em Ensaio sobre a cegueira não é muito diferente. Todo o terror instalado na obra reflete os efeitos de uma sociedade que vive com medo, que esta cega para os seres humanos, que esta cega para os mínimos detalhes – os mais importantes detalhes.

Zygmunt Bauman (2000) em Modernidade Liquida ao falar do derretimento dos sólidos em alusão a obra de Marx, assinala que nossa sociedade contemporânea passa por um momento de fragmentação e perda da referência de humanidade. Ao que parece, estamos presos em bolhas que não nos permite olhar o outro. A Globalização e toda sua tecnologia parece que transformou o homem num robô que parece incapaz de olhar o outro com um olhar mais humano. Tudo parece estar pronto para ser usado, inclusive os seres humanos. A obra saramaguiana nos mostra como o ser humano cegou e perdeu seu senso de humanidade. Tanto que mesmo no claustro, alguns personagens utilizaram de uma lógica capitalista para obter lucro e sucesso, gerando estupro, violência e desgraça.

"O derrretimento dos sólidos, traço permanente da modernidade, adquiriu, portanto, um novo sentido, e, mais que tudo, foi redirecionado a um novo alvo, e um dos principais efeitos desse redirecionamento foi a dissolução das forças que poderiam ter mantido a questão da ordem e do sistema na agenda política. Os sólidos que estão para ser lançados no cadinho e os que estão derretendo neste momento, o momento da modernidade fluida, são os elos que entrelaçam as escolhas individuais em projetos e ações coletivas – os padrões de comunicação e coordenação entre as políticas de vida conduzidas individualmente, de um lado, e as ações políticas de coletividades humanas, de outro" (BAUMAN, 2000, p.12)

Stuart Hall em A identidade cultural na pós-modernidade (2006) discorre sobre sobre o descentramento dos sujeitos, quer dizer, os sujeitos perderam o controle sobre o que pensavam sobre si mesmos. Estão agora a navegar sem um centro uno, coerente. Isso abre espaço para confusões de várias ordens e para perda de referenciais em vários sentidos, atrelado a isso, esta a perda do sentido de humano.

"Assim, a identidade é realmente algo formado, ao longo do tempo, através de processos inconscientes, e não algo inato, existente na consciência no momento do nascimento. Existe sempre algo "imaginário" ou fantasiado sobre sua unidade. Ela permanece sempre incompleta, está sempre "em processo", sempre "sendo formada" (HALL, 2006, p. 38)

Para José Gil em Portugal hoje: o medo de existir (2004) Portugal é um pais da não-inscrição, ou seja, toda sua cultura ainda esta atrelada aos velhos conservadorismos e ao legado deixado pela ditadura salazarista. O ensaísta português utiliza o termo nevoeiro para designar o estado em que se encontra Portugal, ou seja, para ele a ditadura salazarista e a Guerra Colonial foram perdoadas e caíram no esquecimento, parece não haver nenhum esforço em se resgatar a memória dos que sofreram nesse período tão conturbado. Logo, há um certo ar de conformismo em Portugal, uma falta de olhar para trás, uma falta de humanidade.

"O 25 de Abril recusou-se, de um modo completamente diferente, a inscrever no real os 48 anos de autoritarismo salazarista. Não houve julgamentos de Pides nem de responsáveis do antigo regime. Pelo contrario, um imenso perdão recobriu com um véu a realidade repressiva, castradora, humilhante de onde provínhamos. Como se a exaltação afirmativa da "Revolução" pudesse varrer, de uma penada, esse passado negro. Assim se obliterou das consciências e da vida a guerra colonial, as vexações, os crimes, a cultura do medo e da pequenez medíocre que o salazarismo engendrou. Mas não se constrói um "branco" (psíquico ou histórico), não se elimina o real e as forças que o produzem, sem que reapareçam aqui e ali, os mesmos ou outros estigmas que testemunham o que se quis apagar e que insiste em permanecer" (GIL, 2004, p. 16)

O livro termina com a emblemática cena da mulher do médico que em meio ao caos olha pela janela e enxerga tudo branco, o medo, a angústia entram em jogo. A mulher do médico pensa estar cega também, entretanto, José Saramago, de forma magistral, mantém a esperança, opta por um final que nos faz repensar que a humanidade ainda pode reparar, ou seja, que ainda tem chances de melhorar. Assim como em outros romances, Saramago termina com uma mensagem de esperança em meio ao medo, a angústia e o desespero, posto que ele parece ainda acreditar nos homens e na sua humanidade.

"A mulher do médico levantou-se e foi a janela. Olhou para baixo, para a rua coberta de lixo, para as pessoas que gritavam e cantavam. Depois levantou a cabeça para o céu e viu-o todo branco, Chegou a minha vez, pensou. O medo súbito fê-la baixar os olhos. A cidade ainda estava ali" (SARAMAGO, 1995, p. 310)

REFERÊNCIAS

TODOROV, Tzvetan. Introdução à literatura fantástica. Cidade do México: Premia Editora, 1981

SARAMAGO, Jose. Ensaio sobre a cegueira. São Paulo – Companhia das Letras, 1995

HARVEY, David. A condição pós-moderna. São Paulo: Edições Loyola, 1992

BAUMAN, Zygmunt. Modernidade Líquida. Rio de Janeiro: Zahar, 2001

ARNAUT, Ana Paula. Post-modernismo: o futuro do passado no romance português

ROAS, David. A ameaça do fantástico. São Paulo – Editora Unesp, 2014

FURTADO, Filipe. A construção do fantástico na narrativa. Lisboa – Horizonte Universitario, 1980

GIL, Jose. Portugal Hoje – o medo de existir. Lisboa, Relogio d'água editores, 2004.

CHIAMPI, Irlemar. O realismo maravilhoso. São Paulo, perspectiva, 2012

Sobre o autor - Rodrigo Barreto da Silva Moura. Mestrando em Literatura Portuguesa pela Universidade do Estado do Rio de Janeiro (UERJ). Dedica-se ao estudo de Literatura atual, sobretudo dos textos desenvolvidos em Galiza e Portugal. Tem artigos e trabalhos apresentados no Brasil e no exterior. Faz parte do grupo de Pesquisas emLiteratura Galega pelo Programa de Estudos Galegos da UERJ e Xunta de Galicia, Galiza.

 


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