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ControlinvestePortugal - Manifesto 74 - [Ricardo M. Santos] Quando, em 1999, a caminho dos 18 anos, entrei pela primeira vez na redacção de um jornal, apaixonei-me.


Como quando fui a Londres, apaixonei.me. Apaixonei-me, eu, um gajo manifestamente contra o amor. Havia qualquer coisa naquele sexto andar que me prendeu de uma forma indescritível. Entrei e ninguém me ligou nenhuma. Normal, presumo. O barulho dos teclados que se misturava com os dos telefones, a procura das fontes e as pessoas que subiam e desciam até ao sétimo andar, onde estava então a paginação.
 
Não sou nem nunca me vi como jornalista mas passei por alguns jornais. Deles trouxe muitos e bons amigos, que guardo ainda hoje, e outros que que acumulam as características de serem uma merda como pessoas e como jornalistas. E outros que já se esqueceram do que passaram quando foram jornalistas. Mas como é que viemos parar aqui? Como é possível que o despedimento de 160 pessoas de uma mega-empresa de comunicação aconteça e os jornais continuem a sair no dia seguinte?
 
Apesar dos enormes tratados que vamos lendo sobre o futuro do jornalismo, em papel e online, quanto a mim, houve e há factores bem mais relevantes do que uma suposta guerra entre a informação online e em papel. O problema começou na perda de consciência de classe dos profissionais. Sim, eu sei que há quem já não leia esta frase porque fechou a janela quando leu "consciência de classe". Não faz mal. Eu escrevo porque gosto de escrever e não por gostar de ser lido - já o disse quando deixei o Aventar.
 
Os "camaradas" desapareceram das redacções, porque a palavra tem uma carga ideológica fora de moda para alguns - então no início dos anos 2000, quando o BE surgia com força em tudo o que era Comunicação Social. E poucos são os que nos seus locais de trabalho - e agora falo apenas neste meio específico - se assumem como verdadeiros camaradas. Porque sabem o que isso lhes pode vir a custar.
 
Esta perda de consciência de classe é também consequência do aumento da precariedade -  já lá vamos - e da suposta notoriedade que alguns jornalistas foram conseguindo, movendo-se em corredores que os deslumbraram e onde se perderam - sem perceberem bem que um jornalista que cobre assuntos económicos não é um capitalista ou que quem cobre um determinado município não é vereador. E, pois claro, lá para os lados da capital com mais intensidade, não falta quem ache que uma Ordem resolveria todos os problemas da classe. Uma ordem é muito mais chique. É muito melhor falar na Ordem dos Jornalistas do que no Sindicato dos Jornalistas enquanto se come um bife no Snob. Reconheço, no entanto, que conheço mal as redacções de Lisboa. Uma das poucas vezes que entrei numa foi para receber o que me era devido, porque alguém no Porto se recusava a fazê-lo alegando que era a voz da administração. Como se pagarem a alguém pelo seu trabalho fosse um favor. Obviamente que recebi e ainda tive uma visita guiada às instalações pela mão do subdirector. Pouco antes, numa altura em que esse mesmo jornal se preparava para despedir mais trabalhadores, fui questionado sobre a minha disponibilidade para trabalhar mais, fazer mais peças - normalmente, os "colaboradores" são pagos à peça. Perguntei se me estava a oferecer um contrato de trabalho, uma vez que estavam a despedir gente. Claro que não. Claro que não aceitei.
 
Começou aí a perda da essência do jornalismo. Acentuou-se quando deixou de ser vocação e passou a ser uma saída profissional. E nunca o foi. Talvez o defeito seja meu, que vejo algumas coisas com demasiado romantismo. Foi assim que a faculdade também ficou a meio. Hoje já ninguém desenha as páginas em papel e vai levá-las à paginação, conta caracteres a olho e vai a correr para o fecho para cortar onde é preciso. Isso acabou. E acabou mais um bocadinho do romantismo da profissão, que me fez atrasar os estudos à noite, porque o jornal faz-se à noite e era um gozo enorme chegar às 15h e sair às tantas da manhã.
 
Quem vive nas redacções não pode escrever belos tratados cheios de emoção a perguntar "como é que chegamos a isto". Pode mas não deve. Fica mal e cai ainda pior para quem anda no meio. Quem vive nas redacções sabe a precariedade e a exploração a que está sujeita a pessoa que está ao lado. Pode é não se lembrar disso, seja por conforto ou por ser mesmo um filho da puta. Mas sabe. E sabe que há jornais em que só lá vão pousar o casaco e vão trabalhar para outros sítios. Nesses jornais "de referência", seja isso o que for.
 
O que vai acontecer nos órgãos da Controlinveste é o DN transformar-se numa nova "Capital", com a redacção do Porto reduzida a quase nada, o JN ficará para as províncias com o Porto à cabeça, mesmo com cambalhotas a cada eleição autárquica, e, mantendo-se a actual linha, numa luta inglória com o Correio da Manhã. E poderemos todos ler as mesmas coisas no DN, JN e O Jogo, sempre que fique mais barato, acabando com a especificidade de cada órgão. E, sempre que der jeito, ouviremos o mesmo na TSF. E o mesmo serve para outros grupos que controlam os media. Não esquecendo a importante fatia que Joaquim Oliveira tem na Lusa, dividida com o Balsemão.
 
E ficamos assim com uma visão cada vez mais afunilada do que acontece. A pluralidade dos órgãos de informação permitia-nos pensar as notícias, interpretá-las no JN, DN e Público, por exemplo, e pensar no que lemos e por que cada uma delas foi escrita com abordagens diferentes.
 
O que sucedeu com este despedimento - quantas vezes alguns destes 64 não terão chamado reestruturação a outros despedimentos? - colectivo é mais um passo no caminho de transformar a informação em enformação. Enformados, formatados e obedientes. Ou então acordamos todos, seja qual for a profissão, e damos a volta a isto, custe o que custar. Sábado há manif no Porto. É sempre um bom dia para quem não o fez ainda começar a lutar.


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