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suvPortugal - Esquerda - [Jorge Costa] A experiência da crise pré-revolucionária de 1974-75 continua a ser uma lição essencial sobre a natureza do poder da burguesia, da sua capacidade de sobrevivência, adaptação e reconversão.


A pedido da revista madrilena Viento Sur, escrevi o artigo que se segue. Gostei de tentar resumir, em cerca de vinte mil caracteres para leitores de outras paragens, os acontecimentos da revolução e o essencial do que dela ficou. A qualquer leitor de cá, o artigo surgirá pejado de lacunas. No entanto, ele aqui fica, em português.

Nas vésperas do 25 de Abril, a sociedade portuguesa fervia lentamente nas contradições acumuladas em meio século de ditadura. No centro dessas contradições, estava uma guerra que durou treze anos, pela conservação das colónias africanas de Angola, Moçambique, Guiné, Cabo Verde e São Tomé e Príncipe. Este conflito condicionava toda a vida nacional, pelo sofrimento social causado pela mobilização de duzentos mil homens, um décimo da população ativa, um custo humano equivalente ao dobro do Vietname. Prolongava-se a vaga de emigração, impulsionada pela fome e por uma guerra sem solução militar, a única que o regime concebia.

O Estado Novo federou as direitas portuguesas nas formas que tomaram ao longo do século, atravessando a guerra civil de Espanha, a segunda grande guerra e os processos emancipatórios dos povos colonizados, mas a sua capacidade dirigente desgastou-se pelo efeito da guerra colonial e pela afirmação política de um setor burguês cujo “desenvolvimentismo” era cada vez menos conforme com o regime de representação corporativa, que integrava os grémios patronais e os “sindicatos” do regime, e do condicionamento industrial, que mantinha uma férrea tutela sobre todo o sistema produtivo. Os próprios grupos monopolistas, sem nunca abrandar a extração colonial, interessavam-se desde os anos sessenta pelos mercados europeus, pressionando reformas que acentuavam fraturas no bloco político do fascismo.

Desde os finais dos anos sessenta que Portugal vive um crescendo de lutas. As universidades estão paradas ou encerradas, a repressão atinge centenas de estudantes do ensino secundário. Afirmam-se formas de organização sindical independente e delas sai a Intersindical (mais tarde CGTP). Só no último meio ano de ditadura, há cem mil grevistas nos setores das indústrias e serviços. A ordem do Estado Novo tornou-se demasiado instável. Os “de cima”, tal como os “de baixo” pressentem o seu fim.

A intensificação da guerra, com o alargamento das suas frentes, leva a um agigantamento do exército que obriga à atribuição de patentes intermédias a jovens mobilizados no âmbito do serviço militar obrigatório, saídos diretamente dos meios estudantis em radicalização. Esses militares estarão na preparação do 25 de abril e empenhados nas lutas que se seguirão.

Em 1973, forma-se o Partido Socialista, em torno de Mário Soares, que espera pelo fim do regime, decidido a explorar as possibilidades abertas pelas suas relações com as potências externas. O Partido Comunista Português, o mais alinhado com a URSS em toda a Europa ocidental, permanece como referência principal da resistência clandestina, capaz de agregar setores políticos amplos, mesmo em torno das frentes criadas para a participação nas encenações eleitorais da ditadura. Na última década da ditadura, o PCP confronta-se com uma miríade de formações à sua esquerda, saídas da efeverscência estudantil e capazes de dialogar com a radicalização operária.

Apesar de ser “uma panela de pressão”, como escreve Fernando Rosas, o Portugal de 1973 e início de 1974 não vive uma situação pré-insurreccional. Será o golpe militar, em larga medida involuntariamente, a mudar a qualidade do protagonismo popular. Os últimos esforços de reforço da autoridade do Estado vêm do interior do regime, resultando na formação de um campo político de pretensão neocolonial federalista, com relações fortes nas potências ocidentais e disponível para a integração europeia. Esta política está representada no parlamento da ditadura por quadros que virão a fundar os partidos da direita no pós-25 de Abril, CDS e PSD. O general António Spínola, ex-governador da Guiné, virá a ser o seu rosto. Mas o primeiro-ministro, Marcello Caetano, que em 1968 substituiu Oliveira Salazar com sinais de abertura política, acaba por alinhar pelos setores africanistas e da ultra-direita e marginalizar o setor “liberalizador”.

Elementos das patentes militares intermédias, esgotadas pelo esforço de guerra, organizam o Movimento das Forças Armadas (MFA), partindo de reivindicações iniciais essencialmente corporativas. Nas vésperas do golpe, procuram uma chancela política no topo da hierarquia e recebem-na do chefe de Estado Maior das Forças Armadas, Costa Gomes, e do seu vice, Spínola.

Ano um

O levantamento militar de 25 de Abril não encontra resistência relevante - quem não passa ao apoio também não o combate (exceto na sede da polícia política, que dispara sobre civis no centro de Lisboa). O general Spínola recebe o poder de Marcello Caetano, que parte para o exílio. Na capital, poucas horas depois da entrada dos tanques na Baixa, já circulam apenas os cravos da vitória, primeiro sinal de desobediência ao novo poder, que instruíra a população para não abandonar as suas casas.

Depois de retirar do programa do MFA a autodeterminação dos povos das colónias, Spínola sublinha no seu discurso ao país que a primeira tarefa do novo poder a que preside é “garantir a sobrevivência da Nação soberana no seu todo pluricontinental”. Mas as primeiras semanas após o 25 de Abril bastaram para fazer fracassar as tentativas de manter operacional a repressão política e de afirmar uma direção minimamente estável para o processo político. O novo poder fala a várias vozes, dividido entre a Junta de Salvação Nacional (onde Spínola dirige os restos da velha hierarquia militar) e o Conselho de Estado, que inclui os militares do MFA. Spínola esboça a tentativa de manter a ordem burguesa (repressão da greve dos correios) e de articular rapidamente a sua base de apoio (as grandes famílias burguesas constituem o Movimento pelo Desenvolvimento das Empresas e da Sociedade, com a promessa de criação imediata de cem mil empregos). Mas falta ao novo poder a coerência política e a força armada para garantir que as débeis movimentações dos grupos económicos conduzam a qualquer forma de normalidade.

Esta quase total falta de comparência da repressão e os sinais de apoio de alguns setores do próprio MFA ao movimento de massas abrem as comportas da iniciativa popular e desencadeiam a revolução portuguesa. Nas colónias, cessam os combates e inicia-se a confraternização entre tropas coloniais e de libertação. Na metrópole, os novos espaços de democracia são reconhecidos a um ritmo sempre mais lento que o da sua imposição. É assim com a liberdade sindical e o direito à greve, o salário mínimo, o horário de trabalho, as férias, o saneamento político das empresas onde restam fiéis do regime caído e sabotadores das transformações em curso. Sem força de Estado, cada vez mais dependente da turbulenta Assembleia do MFA, Spínola realiza o seu final político ao apelar, em Setembro de 1974, à “maioria silenciosa”, uma mobilização de massas que a reação falha e que aumenta a confiança popular para o ciclo seguinte. São marginalizados os elementos de continuidade com a velha hierarquia e a inserção das forças armadas no enfrentamento das classes. O general do monóculo vai juntar-se a Marcello Caetano no Brasil.

Dois caudais em choque

A revolução vai durar dezanove meses, de Abril de 1974 a Novembro de 1975, e deixará marcas duradouras na democracia portuguesa, como forma constitucional e como modo de exercício da liberdade política.

Dois caudais contraditórios chocam-se, cruzam-se e misturam-se naqueles meses. Um é o do permanente esforço, concentrado em torno do MFA, de reabilitar um centro de poder de Estado minimamente eficiente. Ao longo de quase todo o período revolucionário, as principais forças da esquerda, PCP e PS, integram este caudal, procurando influenciar a conformação do novo poder e assegurar uma parcela deste. Nesta busca de respeitabilidade institucional, o PCP empenha-se mesmo na desmobilização de greves consideradas “selvagens” e garante que não faz da saída da NATO uma prioridade política; ao mesmo tempo, prevendo a adversidade de eleições gerais num país com as características do Portugal, concentra-se na “institucionalização” do MFA enquanto legitimidade de Estado paralela à da Assembleia Constituinte a eleger. Quanto ao Partido Socialista, prepara o sufrágio, essencial para a reconstituição de uma legitimidade que se possa impor à dinâmica popular. Soares concilia as proclamações pelo socialismo (aliás partilhadas por todo o espetro político) com o slogan “Europa Connosco”, que remete para a integração no mercado comum europeu, de cujas potências recebe relevantes apoios.

O outro caudal é o da democracia real, o protagonismo popular direto e a auto-organização das massas, que enfrentam as suas necessidades urgentes e a pressão da crise (pouco depois do choque petrolífero de 1973) gerando a sua própria cultura política e estruturas de intervenção. Este rio extravasa largamente as margens da autoridade do Estado, sob a forma de movimentos de ocupação de casas pela população confinada a barracas, a edificação direta de bairros e serviços sociais, escolas, centros de saúde, a constituição de organismos de bairro, de empresa, a auto-gestão operária, a fundação de unidades cooperativas de produção nas áreas agrícolas ocupadas. Em cada uma destas experiências são vividas contradições, impasses, conflitos e conquistas de profundo significado e duradouro alcance. Elas são o violento despertar de partes importantes de uma sociedade atrasada e despolitizada, onde a auto-organização da classe trabalhadora foi praticamente invisível durante quatro décadas. Aprende-se em dias e semanas a realizar uma revolução que se dirige desde logo ao coração do sistema - a propriedade, fosse ela fundiária, imobiliária, industrial.

Esta súbita mudança de todas as dimensões da vida social é o grande trauma histórico que a burguesia portuguesa nunca superará. O seu clímax ocorre a partir do 11 de Março de 1975, data de uma fracassada intentona militar ainda em torno do general Spínola, a que se sucede uma aceleração do processo revolucionário. Acusados de sabotagem económica, numerosos dirigentes dos grupos monopolistas conhecem a prisão e o exílio. São aprovados os decretos da reforma agrária e de nacionalização da banca, este último simplesmente indispensável para a continuidade do funcionamento do sistema bancário e aprovado até com os votos do PSD.

Com a dissolução de vários grupos de extrema-direita, estabelecem-se no Estado espanhol redes de agitação e terrorismo anti-comunista, apoiadas em setores da hierarquia católica portuguesa, que realizam centenas de atentados contra sedes e ativistas do PCP e da esquerda radical e mesmo alguns assassinatos.

A rutura no MFA e a preparação do 25 de Novembro

Estes dois caudais vão coexistir durante um ano inteiro, um ano que transforma o país profundamente. Mas, sobretudo a partir das eleições de 25 de Abril de 1975, os impasses económico e político da revolução portuguesa abrirão uma fratura entre os campos políticos em confronto.

Nestas primeiras eleições, de elevadíssima participação, o Partido Socialista é o mais votado (38%). Considerando a votação da área comunista (PCP+MDP 16,5%) e a da esquerda radical (4%), os partidos de direita (PSD+CDS 34%) ficam a grande distância. Mas os alinhamentos políticos seguintes serão outros, definidos essencialmente sobre a natureza do poder depois dos votos, que durante meio ano será o produto de uma negociação entre o MFA e os partidos representados na Assembleia Constituinte e no governo.

O papel intermediário do MFA, entre a debilitada autoridade do Estado e o movimento de massas, tinha chegado ao seu limite. O choque entre campos da luta de classes reflete-se nas diferentes componentes do movimento militar - “spinolistas” (direita), “grupo dos nove” (PS), “gonçalvistas” (PCP), Comando Operacional do Continente (Copcon, dirigido por Otelo). O “verão quente” de 1975 é vivido no confronto entre dois campos políticos contrapostos.

De um lado, o protagonismo político de setores sociais mobilizados, que chegam a ensaiar formas de “duplo poder” (em junho de 1975, por exemplo, reúne-se em Lisboa, no regimento militar de engenharia, a primeira assembleia popular, reunindo mais de cinquenta comissões de moradores e 26 comissões de trabalhadores), acentuando a crise hierárquica das forças armadas, a partir da formação dos coletivos Soldados Unidos Vencerão (SUV) e da própria ação do Copcon. Este último corpo mantém estreito apoio às ações de massas mais avançadas, que atingem os seus momentos culminantes nas ocupações de instalações militares e nas manifestações convocadas pelos SUV a 10 de Setembro, no Porto, onde um cortejo de quarenta mil pessoas é encabeçado por dois mil soldados, e a 25 de Setembro, com participação de cerca de cem mil pessoas, entre as quais centenas de militares fardados vindos de quinze unidades. No final da manifestação, são desviadas dezenas de autocarros para conduzir os manifestantes ao presídio da Trafaria, onde libertam militares presos por pertencerem aos SUV. Apesar da sua dinâmica ascendente, este amplo setor está longe de conseguir gerar uma direção política revolucionária que encontre formas de aliança social e política maioritária e que corresponda à expressão autónoma da iniciativa popular.

Pelo seu lado, quem se articula e unifica é o campo empenhado no resgate, sob diferentes bandeiras, do bastião da ordem, a autoridade do Estado. Esse é afinal o único setor que, como escreve Francisco Louçã “era poder e lutava pelo poder” (Ensaio para uma Revolução, 1984).

O desenlace deste confronto chegará a 25 de Novembro, data do pronunciamento militar que reúne as componentes políticas e militares da direita e do PS sob o comando de Eanes (“grupo dos nove”), que chegará a presidente da República sobre esses mesmos apoios. O PCP é aceite na democracia consentida a partir de então. Nos seus textos, o partido explica claramente de que lado não estava nas horas críticas da revolução portuguesa: “o Comité Central do PCP chama a atenção para as ilusões idealistas que levaram alguns sectores a ver nestas formas de organização popular os futuros e próximos órgãos do poder de Estado. Chama também a atenção para a teorização verbalista acerca do ‘poder popular’, criando a ilusão da existência de um poder político popular em confronto com o poder militar e governamental” (Avante!, 16/12/1975). Já derrotado, este setor de “ilusões idealistas” virá ainda a expressar-se nas eleições presidenciais de 1976, reunindo 16,5% dos votos na candidatura do tenente-coronel Otelo Saraiva de Carvalho (mais do dobro dos obtidos pelo candidato do PCP, Octávio Pato).

O Estado refaz a burguesia portuguesa

Os anos seguintes ao período revolucionário são os da reorganização das condições de produção, sob o marco das relações de força refeitas na revolução e da concretização em lei de algumas das “conquistas” do processo. O vento de Abril soprará ainda no campo dos direitos sociais, com o desenvolvimento da Segurança Social e do Serviço Nacional de Saúde, bem como nos avanços sobre a liberdade e condição social das mulheres. As nacionalizações ao longo do ano de 1975 tinham constituído um setor público em torno de mais de oitenta empresas e outras 140 participadas pelo Estado, incluindo 90% da banca e a maior parte dos transportes, comunicações e energia - cerca de um quarto do produto. A reforma agrária, que em 1975 tomou 1,2 milhões de hectares, abrangendo mais de quarenta mil trabalhadores (e outros tantos eventuais), permaneceu durante uma década, apesar de concentrada na região do Alentejo. Só em 1977 se regista a primeira queda dos salários reais.

Ao longo de uma década e meia, o sistema económico permanecerá sob forte intervenção estatal, com uma classe dominante ainda diminuída e sem condições políticas e financeiras para tomar posse de empresas públicas concentradas e de grande dimensão. O Estado assume a gestão do sistema económico e o seu papel histórico de incubador e protetor da burguesia portuguesa. É sob direção estatal que se opera a reconstituição do poder da burguesia.

O fim deste período de transição é marcado pela adesão à Comunidade Económica Europeia em 1986. Ao longo dos anos oitenta, reforça-se a dependência externa, o modelo de salários baixos e de especialização em setores de mão-de-obra intensiva e baixo nível tecnológico. Esta realidade permanece, mesmo com a massificação da universidade e de todo o ensino (o analfabetismo era de 40% em 1974). O crescimento económico acelerado entre 1974 e 2004 (3,5% ao ano) assenta essencialmente na mobilização de mais trabalho, especialmente de mulheres.

A integração europeia e as maiorias absolutas de Cavaco Silva, criam as condições para a abertura do ciclo privatizador, com as necessárias revisões constitucionais que revertem a “irreversibilidade” legal das nacionalizações. A direita - e depois o PS - entregam às velhas famílias capitalistas da ditadura (Champalimaud, Espírito Santo, Mello) o controlo de grande parte da banca, estrutura estratégica para a condução financeira da fase seguinte das privatizações. É na banca privatizada que vai assentar o fortíssimo endividamento dos velhos e novos grupos económicos (Sonae, Amorim, Jerónimo Martins, construção civil) que acorrem aos grandes negócios da viragem do século: as rendas monopolísticas da energia e telecomunicações, da grande distribuição, do imobiliário.

É precisamente no imobiliário e na construção que se apoia a procura interna durante este vasto período de compressão salarial. Esta política é viabilizada pela facilitação do endividamento das famílias junto da banca privada nacional e desta junto da banca europeia. Entre 1991 e 2010, o número de fogos habitacionais em Portugal cresce à média anual de 80 mil novos fogos, o equivalente a uma cidade de Coimbra. Todo este modelo assentou num forte investimento público, essencialmente em obras de infraestrutura e em despesa inflacionada, como foi o caso dos estádios de futebol, há dez anos.

A estratégia neoliberal, imposta a partir do espaço europeu, vai diminuindo a capacidade da economia portuguesa, cada vez mais dependente de capitais, mais subalterna e endividada. A capacidade exportadora é comprometida pelas condições da adesão à moeda única, enquanto o investimento externo se limita a cadeias de montagem de reduzido valor acrescentado. A classe dominante procura a sua zona de conforto numa economia vulnerável à recessão, que rebenta sob a crise financeira de 2008 e a especulação internacional com a dívida pública portuguesa.

O resto da história é conhecida: a intervenção externa de 2011 desencadeia uma contra-revolução social de proporções inesperadas e um processo de transferência de riqueza sem precedentes na história nacional. Os setores protegidos da economia continuam a produzir fortunas crescentes, ao mesmo tempo que, considerando os padrões de 2009, a percentagem de população a viver abaixo da linha de pobreza passou de 18% para 25%. O período da troika realiza o mais intenso ciclo de privatizações desde a revolução, entregando ao capital estrangeiro os aeroportos, o controlo do sistema energético, um terço do mercado segurador, os correios. E a lista das privatizações previstas para 2014 estende-se dos transportes aéreos às linhas ferroviárias suburbanas e ao tratamento de resíduos urbanos.

Os números do desemprego são mal disfarçados pelas iniciativas estatais que retiram das estatísticas uma parte significativa dos sem-emprego e sobretudo pelo êxodo forçado de mais de cem mil portugueses por ano. Entretanto, dos que mantiveram o emprego, mais de metade sofreu cortes até 23% no salário ou recebe o salário mínimo. Existem em Portugal 5,5 milhões de pessoas capazes de trabalhar. 1,2 milhões estão desempregadas ou emigraram. Quase um milhão trabalha menos de dez horas por semana. Um milhão trabalha mais de quarenta horas por semana.

“Tudo o que é sólido”...

O percurso português dos últimos quarenta anos remete-nos para a memória amarga da “irreversibilidade” das conquistas populares inscritas na Constituição de 1976. O enorme susto vivido pela oligarquia portuguesa naquele curto período, foi o resultado de uma transição democrática feita “a quente” (ao contrário da experiência da transição espanhola). Nela surgiram, logo às primeiras erupções do povo na iniciativa social e política, em abril e maio de 1974, os sinais da presença da “velha toupeira”, a revolução socialista, com incursões na propriedade privada e no controlo do território e das empresas. Mas a ordem do Estado nunca se perdeu (por muitas que fossem as suas partes “perdidas”) e foi capaz de, pacientemente, reconhecendo vitórias parciais e históricos avanços, restabelecer o consenso, isto é, o pleno domínio da classe dominante.

Quando a fuga de Portugal volta a atingir os níveis dos anos sessenta (tempos de subnutrição e guerra, com centenas de milhar de portugueses expulsos do seu país), a atual tragédia portuguesa é portanto uma finalíssima lage sobre as ilusões gradualistas das esquerdas. Quem quis ver na crise pré-revolucionária de 1974-75 o princípio de um caminho de modernização democrática e social do país, na esteira da doutrina do PCP dos anos sessenta sobre as tarefas da revolução democrática anti-monopolista, tem hoje o triste retrato do que é uma “democracia avançada” sob o poder do capital.

Do lado da esquerda que hoje luta por uma maioria social de rutura com a chantagem dos credores, que defende a nacionalização da banca e dos setores estratégicos para a auto-determinação económica do país e a rutura com os mecanismos compressores da democracia - os tratados europeus, o militarismo da NATO -, a experiência da crise pré-revolucionária de 1974-75 continua a ser uma lição essencial sobre a natureza do poder da burguesia, da sua capacidade de sobrevivência, adaptação e reconversão.

Naqueles dezanove meses inteiramente originais na história portuguesa pela extensão do envolvimento das massas num processo revolucionário, o povo conquistou uma dignidade que nunca antes tivera e mudou a face do país. É por isso que, mesmo em horas sombrias como aquelas que os trabalhadores hoje atravessam - ou sobretudo nessas horas -, as ruas de Portugal continuaram a encher-se da canção que, na madrugada do dia 25 de Abril, deu o sinal aos revoltosos para a saída dos quartéis, “Grândola, Vila Morena”, de José Afonso.


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