No momento em que amplas massas da juventude portuguesa manifestam nas ruas, nos blogues, nas acções de contestação do governo da burguesia que nos oprime, esclarecer o que é o Estado numa sociedade de classes, como, por que se formou e para que serve, e que a superação da ditadura da burguesia, desta ou de qualquer outra, não se faz no quadro da importante luta dentro das instituições, enfim, divulgar Álvaro Cunhal, o seu pensamento e a política do Partido por ele dirigido é, seguramente, a melhor forma de o recordar.
A questão do Estado, questão central de cada revolução
Por Álvaro Cunhal
A 30 quilómetros a noroeste de Leninegrado, Razliv é hoje um lugar histórico. Aí, num sítio ermo, se pode ver a reconstituição da cabana onde Lénine viveu clandestinamente em Agosto de 1917. Aí se pode ver também o cepo de uma árvore que Lénine utilizava como mesa para escrever.
O Verão de 1917 foi um momento de viragem decisiva na revolução russa. Terminara a dualidade de poderes, situação original criada pela revolução, em que, ao lado do governo provisório, governo da burguesia, se formara um outro governo com «uma existência real e incontestável»: os sovietes de deputados operários e soldados (Lénine, «Sobre a dualidade dos poderes», Obras, edição francesa, vol. 24, p. 28) [1]. Os mencheviques e socialistas-revolucionários, impedindo que todo o poder fosse entregue aos sovietes e entrando num «governo de coligação», entregaram de facto todo o poder à burguesia. A contra-revolução passou à ofensiva. Novas tarefas se colocaram ao proletariado e ao seu partido, o Partido Bolchevique. Como escreveu Lénine, se até [4 de] Julho «o desenvolvimento pacífico da revolução russa era ainda possível», a partir de então a questão punha-se em novos termos: «ou a vitória completa da contra-revolução, ou uma nova revolução» (“Resposta», Obras, edição francesa, vol, 25, pp. 231 e 236).
Nas vésperas da «nova revolução», que problema considerava Lénine necessário abordar sem perda de tempo e o levava a escrever febrilmente no cepo de árvore em Razliv? Esse problema era o problema do Estado, e a obra que então Lenine escrevia viria a constituir uma obra fundamental: O Estado e a Revolução.
Já nas Teses de Abril Lénine caracterizara a situação como a transição da primeira etapa da revolução, que deu o poder à burguesia, para a segunda etapa, que deveria dar o poder ao proletariado e às camadas pobres do campesinato (Ver Obras, edição francesa, vol. 24, p. 12) [2].
De Abril a Julho de 1917, em numerosos artigos e discursos, Lénine insiste na importância do problema do Estado. É porém em O Estado e a Revolução que não só expõe de uma forma sistematizada a teoria de Marx e a defende dos seus detractores, como a aprofunda e enriquece com a sua investigação teórica criadora assente nas experiências do movimento revolucionário.
Nas vésperas da revolução socialista, a ideia fundamental que Lénine julga necessário demonstrar exaustivamente e defender com paixão é que, conquistando o poder, o proletariado não se pode limitar a tomar conta do aparelho do Estado burguês, mas tem de destruí-lo e substituí-lo por um novo Estado.
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A teoria marxista da luta de classes permite explicar a origem e a natureza do Estado e os seus diversos tipos e formas.
Marx descobriu e demonstrou que o Estado é um poder que nasce da sociedade numa fase determinada do seu desenvolvimento, como resultado da divisão da sociedade em classes, como necessidade do recurso à coacção por uma minoria exploradora para manter a exploração da maioria.
O Estado é uma «organização especial do poder», «um poder especial de repressão», «a organização da violência», um aparelho militar e burocrático constituído especialmente pelas forças armadas, pela polícia, pelos tribunais, pelos órgãos legislativos e executivos, pelo funcionalismo.
Aparentemente acima da sociedade e das classes, o Estado é na realidade um instrumento de dominação e opressão de uma classe sobre outras classes.
A correcta compreensão da natureza do Estado é essencial para toda a acção revolucionária do proletariado, particularmente quando se coloca na ordem do dia a tomada do poder.
Marx descobriu que a luta de classes que se trava na sociedade capitalista conduz necessariamente à revolução, à conquista do poder político pelo proletariado, a um novo Estado definido no Manifesto Comunista como o «proletariado organizado como classe dominante» (Obras Escolhidas, em dois volumes, edição inglesa, vol. 1, p. 53) [3].
Esta é a conclusão fundamental da teoria marxista da luta de classes. Não podem pretender ser marxistas aqueles que a rejeitam. Falando da sua teoria da luta de classes, Marx lembrava que não lhe cabia a ele o mérito nem de ter descoberto a existência das classes, nem de ter descoberto a luta de classes. «O que fiz de novo (sublinhava) foi demonstrar: 1) Que a existência das classes não está ligada senão a determinadas fases do desenvolvimento histórico da produção; 2) Que a luta de classes conduz necessariamente à ditadura do proletariado; 3) Que esta ditadura não constitui ela própria senão a transição para a abolição de todas as classes e para uma sociedade sem classes» (Carta a Weydemeyer, 5-3-1852, Obras Escolhidas, em dois volumes, edição inglesa, vol. 2, p. 452) [4].
O papel do proletariado na revolução socialista decorre das suas próprias características como classe na sociedade capitalista. «De todas as classes que hoje defrontam a burguesia (proclamava o Manifesto Comunista) só proletariado é uma classe realmente revolucionária.» «Os proletários só têm a perder as próprias algemas. Eles têm um mundo a ganhar.” (Obras Escolhidas, em dois volumes, edição inglesa, vol. 1, pp. 43 e 65.) [5]
Defendendo e desenvolvendo as ideias de Marx, Lénine insistiu em que só o proletariado, como «única classe revolucionária até ao fim», pode ser «o guia de todas as massas laboriosas e exploradas, que frequentemente a burguesia explora, oprime e esmaga não menos mas mais que aos proletários, e que são incapazes de uma luta independente pela sua libertação». Por isso, o poder da burguesia só pode ser abatido «se o proletariado se transforma em classe dominante capaz de reprimir a resistência inevitável, desesperada, da burguesia e de organizar para um novo regime económico todas as massas laboriosas e exploradas» («O Estado e a Revolução», Obras, edição francesa, vol. 25, p. 437) [6].
O proletariado «transformado em classe dominante», como escreveu Lénine, o proletariado «organizado como classe dominante», como definiu o Manifesto, é precisamente a ditadura do proletariado, o novo Estado Proletário. «O proletariado (insistia Lénine) tem necessidade do poder de Estado, de uma organização centralizada da força, de uma organização da violência, tanto para reprimir a resistência dos exploradores, como para dirigir a grande massa da população - os camponeses, a pequena burguesia, os semiproletários - na edificação da economia socialista» (Ibid.) [7]
Mas como organizar o poder do Estado? A conquista do poder significará a conquista do aparelho do Estado? A esta questão capital, Marx deu uma primeira e clara resposta, que depois Lenine desenvolveu.
Estudando atentamente a experiência revolucionária, Marx sublinhava em 1852 que até então as revoluções políticas não tinham feito mais do que aperfeiçoar a máquina do Estado, pois «os partidos que lutavam uns após outros pelo poder consideravam a conquista deste imenso edifício do Estado como a principal presa do vencedor» («O 18 Brumário», Obras Escolhidas em dois volumes, edição inglesa, vol.1, p. 333) [8]. A experiência da grande revolução proletária do século XIX, a Comuna de Paris de 1871, permitiu a Marx avançar e precisar a sua doutrina. Essa experiência comprovou que, ao contrário do sucedido nas revoluções burguesas, «a classe operária (ao conquistar o poder político) não pode contentar-se com o tomar a máquina completamente pronta do Estado e fazê-la funcionar para a realização dos seus fins» («A Guerra Civil em França», 1871, Obras Escolhidas, em dois volumes, edição inglesa, vol, 1, p. 463) [9].
É nessa conclusão fundamental que Lénine insiste e é sobre ela que escreve no cepo da árvore em Razliv, no Verão de 1917, no momento em que ao proletariado russo se colocava a tarefa de realizar a sua revolução.
A libertação da classe oprimida (escreve Lénine) é impossível «sem a supressão do aparelho do poder de Estado criado pela classe dominante” e a sua substituição «por um poder especial de repressão” exercido contra a burguesia pelo proletariado» («O Estado e a Revolução», Obras, edição francesa, vol. 25, pp. 420 e 430) [10].
Lénine alertava contra quaisquer ilusões que pudessem existir acerca da possibilidade de realizar a revolução socialista se o proletariado e as classes oprimidas se limitassem a tomar conta do aparelho do Estado, cuidando poder utilizá-lo contra a burguesia. Em conformidade com tal conclusão, indicava ao proletariado russo e ao seu partido uma tarefa capital para a conquista do poder pelos trabalhadores: a destruição do Estado burguês e a construção dum novo Estado, dum Estado dos operários e camponeses que, sob a direcção da classe operária, quebrasse a resistência decerto encarniçada da burguesia, suprimisse a exploração do homem pelo homem, pusesse termo à divisão da sociedade em classes, assegurasse a transformação revolucionária da sociedade capitalista em sociedade socialista.
Tal é a essência da ditadura do proletariado.
2
Quando se fala da teoria marxista-leninista do Estado deve ter-se sempre presente o significado da palavra «ditadura» empregada tanto em relação aos Estados capitalistas - à «ditadura da burguesia», como em relação aos Estados socialistas - à «ditadura do proletariado». A clara explicação desse significado é essencial para a compreensão da teoria do Estado e da teoria da revolução e para a determinação da posição das várias classes e forcas políticas em relação ao problema da democracia. Os ideólogos burgueses, incluindo os liberais e socialistas, baralham os dados do problema e procuram mostrar que os comunistas, defendendo a ditadura do proletariado, se opõem à democracia, e que os burgueses liberais e socialistas é em nome da democracia que se opõem à ditadura do proletariado. A ditadura do proletariado, como «ditadura», seria um regime de opressão, enquanto a democracia burguesa, como «democracia», seria um regime de liberdade.
A verdade é que a palavra «ditadura», na teoria marxista-leninista do Estado, não significa uma forma particular de dominação de uma ou várias classes por outra ou outras classes, mas o próprio facto dessa dominação. Segundo a teoria leninista, o Estado numa sociedade dividida em classes antagónicas é sempre uma ditadura. A expressão “ditadura» sublinha que o Estado não está acima das classes, não é um instrumento de conciliação das classes nem um árbitro entre elas, antes é a «organização da violência», é um «poder especial de repressão», é um organismo de dominação de umas classes sobre outras. Em resumo: numa sociedade dividida em classes antagónicas, Estado é sinónimo de Ditadura.
As formas de dominação, tanto na ditadura da burguesia como na ditadura do proletariado, é que podem ser diversas. A ditadura burguesa pode exercer-se através de variadas estruturas dos órgãos do poder e da administração, ou seja, sob regimes políticos diferentes: república parlamentar, monarquia constitucional, governo militar, ditadura fascista, etc. Em qualquer caso é sempre a «ditadura burguesa». A ditadura do proletariado pode também exercer-se com a existência de um ou mais partidos, com um sistema soviético ou uma assembleia parlamentar, ou outras formas de organização do poder. As experiências históricas das democracias populares já mostraram que o sistema soviético não é o único possível para o exercício da ditadura do proletariado, não é a forma única e obrigatória dum Estado socialista.
O facto de quaisquer que sejam as formas de dominação da burguesia se tratar sempre de uma ditadura da burguesia não torna a classe operária indiferente a essas formas de dominação.
Nada tem a ver com o marxismo-leninismo a opinião anarquizante segundo a qual é indiferente à classe operária que o poder da burguesia se exerça num regime parlamentar ou numa ditadura fascista, uma vez que num caso e noutro se trata de capitalismo. A repressão e o terror são utilizados precisamente contra o proletariado, para impedir o desenvolvimento da sua organização e da sua luta, para aniquilar os seus quadros, para cortar o caminho à revolução socialista. Enquanto subsistir o capitalismo o proletariado está interessado em lutar para que a ditadura da burguesia se exerça através de formas o mais democráticas possível, pois estas não só são as que menos sofrimentos lhe acarretam, como são aquelas que melhor lhe permitem defender os seus direitos, forjar a sua unidade, reforçar as suas organizações, limitar e enfraquecer o poder dos monopólios, ganhar as massas para a causa da revolução socialista. Nesse sentido se afirma que a luta pela democracia é parte constitutiva da luta pelo socialismo.
Nada tem também a ver com o marxismo-leninismo a posição de alguns «ultra-revolucionários» ao afirmarem que, nas condições do Portugal de hoje, a instauração das liberdades democráticas, se não fosse acompanhada pela conquista do poder pelo proletariado, seria ainda pior que a ditadura fascista, uma vez que representaria a consolidação do poder da burguesia, cuja crise se agrava nas condições do fascismo. O Partido Comunista Português não considera a revolução antifascista como uma revolução democrático-burguesa, mas como uma revolução democrática e nacional, de natureza profundamente popular. Mas insiste que o fim do fascismo e a instauração das liberdades fundamentais constituem um passo primeiro, fundamental e indispensável da revolução antifascista. Assim, não só formula uma reivindicação central, compreendida e sentida pelas mais vastas massas populares, como indica o caminho que pode conduzir à realização dos outros objectivos da revolução democrática e nacional e ao socialismo. Lénine numerosas vezes sublinhou que os comunistas russos «nunca separaram a luta pelo socialismo da luta pela liberdade política» («As tarefas dos sociais-democratas russos», Obras, edição francesa, vol. 2, p. 347).
Ao mesmo tempo que indicamos a conquista da liberdade política como um primeiro objectivo central da revolução antifascista, afirmamos como marxistas-leninistas, como partido do proletariado, como revolucionários que pretendem pôr fim à exploração do homem pelo homem, que a mais democrática das democracias burguesas serve a burguesia contra o proletariado, protege e defende a exploração dos trabalhadores e, se a luta destes põe em perigo os interesses do capital, a burguesia dominante, por muito «liberal» e «democrática» que seja, não hesita em violar a lei, retirar as liberdades e recorrer a métodos abertamente terroristas.
Como marxistas-leninistas, esclarecemos a classe operária e as massas da verdadeira natureza do Estado e da democracia. Quaisquer que sejam as formas do Estado burguês e do Estado proletário, o Estado proletário, tanto pela sua natureza como pela política que realiza, é sempre mais democrático que o Estado burguês. O Estado da burguesia é o instrumento de dominação por uma ínfima minoria de exploradores da maioria esmagadora da população; o Estado proletário é o instrumento da grande maioria contra uma ínfima minoria. O Estado burguês é um instrumento de exploração e subjugação das classes trabalhadoras e visa perpetuar a divisão da sociedade em classes antagónicas, o Estado proletário é o instrumento da liquidação da exploração do homem pelo homem e do termo da divisão da sociedade em classes.
Uma democracia burguesa, por mais amplas que sejam as «liberdades democráticas», e por muito grande que seja a autoridade do parlamento, é sempre uma ditadura da burguesia; qualquer ditadura do proletariado, mesmo quando assume formas «ditatoriais», é sempre mil vezes mais democrática do que qualquer democracia burguesa.
A Revolução de Outubro trouxe a grande primeira comprovação histórica desta verdade. Desde o início e no seu desenvolvimento, o primeiro Estado de operários e camponeses mostrou ser o Estado de mais profundo conteúdo democrático jamais existente na história da humanidade.
Notas:
[1] Cf. V. I. Lénine, Obras Escolhidas em seis tomos, Edições «Avante!” -Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1984-1989, t. 3, p. 132. (N. Ed.)
[2] Cf. V 1. Lénine, Obras Escolhidas em três tomos, Edições “Avante!”-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1977-1979, t. 2, p. 14. (N. Ed.)
[3] Cf. K. Marx/F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, Edições «Avante!», Lisboa, 1997, p. 56. (N.Ed.)
[4] Cf. K. Marx/F. Engels, Obras Escolhidas em três tomos, Edições «Avante!»-Edições Progresso, Lisboa-Moscovo, 1982-1985, t. 1, p. 555. (N. Ed.)
[5] Cf. K. Marx/F. Engels, Manifesto do Partido Comunista, ed. cit., pp. 46 e 73. (N. Ed.)
[6] Cf. V. I. Lénine, Obras Escolhidas em seis tomos, ed. cit., t. 3, pp. 207-208. (N. Ed.)
[7] Cf. Ibidem, pp. 208-209. (N. Ed.)
[8] Cf. K. Marx/F. Engels, Obras Escolhidas em três tomos, ed. cit., t. 1, p. 502. (N. Ed.)
[9] Cf. Karl. Marx/F. Engels, Obras Escolhidas em três tomos, ed. cit., t 2, p. 237. (N. Ed.)
[10] Cf. V l. Lénine, Obras Escolhidas em seis tomos, ed. cit., t. 3,pp. 194 e 202. (N. Ed.)
Texto (Introdução, 1 e 2) e notas da 2ª edição, Editorial “Avante!”, 2007