São explosões excecionais que mudam violentamente a relação de forças entre as classes e setores sociais, deixando um rasto de conquistas e mudanças nas mentalidades. Caracterizam-se por refluxos e ziguezagues que podem abarcar décadas. A república revolucionária francesa de 1793, por exemplo, foi substituída em poucas décadas, primeiro, pelo império napoleónico e, após este, pela restauração monárquica que se afundou com as revoluções de 1830 e 1848, que abriram o caminho de novo à república…
As sociedades com forte base camponesa e inclusive tribal estão muito longe de serem monolíticas. São mescladas e, ainda que sejam capitalistas, têm particularidades determinadas pela história particular de cada região, pelas suas tradições culturais e políticas, pela existência ou não de uma centralização por diferentes tipos de estado, pela subsistência de regionalismos consolidados, pelos diferentes graus de desenvolvimento histórico, económico e cultural, pela composição étnica de cada país e de cada região, pelos modos diferentes em que num mesmo território se combatem diferentes religiões e culturas.
Nesses países o peso desproporcionado do aparelho estatal, essencialmente repressivo e burocrático, dá-lhe uma forte tendência para o comportamento autocrático, reforçado pela dependência do capital estrangeiro e das grandes potências que incidem muito mais na economia e na política “nacional” que as classes capitalistas locais muito débeis.
Na luta pela modernização do país, mediante uma nova revolução francesa que derrube as autocracias corruptas e repressivas, sempre se mobilizam e sublevam primeiro os setores modernos urbanos (estudantes, jovens urbanos desempregados, operários sindicalizados e classes médias golpeadas pela crise económica), como aconteceu na Tunísia contra Ben Alí. Esses setores arrastam de imediato consigo parte da burguesia comercial e outros descontentamentos de diferente tipo. A rebelião une os protestos tribais, regionais e religiosos porque as autocracias (como o xá da Pérsia, Mubarak no Egito, o tunisino Ben Alí, o líbio Kadafi, o regime sírio dos Assad) tentavam uma modernização por cima tecnocrática e capitalista, fundamentalmente laica, que chocava com as tradições comunitárias, solidárias e de ajuda mútua que desde há séculos adotam na região uma arreigada forma religiosa, muçulmana ou, como no Egito, também cristã copta.
Dada a debilidade do Estado central, o Islão teceu também uma comunidade baseada em múltiplos laços (escolas e universidades corânicas, clínicas, círculos de ajuda mútua) que é, em certa medida, paralela ao Estado e também o penetra e infiltra. A hierarquia burguesa e conservadora dessa comunidade, arrasta desse modo numerosas camadas rurais e nos setores urbanos mais pobres.
A primeira onda democratizadora consegue derrubar a ditadura envolvendo de facto a nação nessa luta. Mas, carenciada de direção e programa próprios, devido à debilidade do movimento operário e à falta de tradições políticas revolucionárias, ainda que possa influir nos graus inferiores do exército, nem liquida nem constrói um novo Estado. Isso permite a reconstrução dos comandos militares, depurados dos agentes mais odiados da velha autocracia, e dá ao exército o papel de mediador enquanto dá tempo para a reconstrução da ordem capitalista com a intervenção do imperialismo, que procura reforçar o novo grupo dirigente para evitar que o mesmo seja ultrapassado pela esquerda.
A posterior normalização mediante eleições, quando não há partidos, exceto os tradicionais da burguesia comercial ou grupos com funções de partido como as hierarquias religiosas e a burocracia sindical, prepara um refluxo social apoiado nos setores mais atrasados da população, deixa em minoria os que derrubaram a ditadura e obriga-os a procurar aliados em sectores nacionalistas do exército e nas burguesias liberal e comercial, laica ou cristã.
Em alguns países como no Egito, com maiores tradições estatais desde Mehmet Alí no século XIX, isso conduz a um governo militar, neoliberal e apoiado no imperialismo, cuja existência divide os sectores democráticos e progressistas, pois uma parte destes acha que o poder castrense os defende do governo teocrático da Irmandade Muçulmana. Desta forma tudo parece levar à reconstrução do poder e do Estado que a primeira onda democrática tinha gravemente danificado… até que a crise conduz os revolucionários a elaborar um programa e uma estratégia.
Isso permitir-lhes-á estabelecer novas alianças que incluam uma parte dos camponeses e aproveitem a brecha no campo capitalista, aberta pelos conflitos entre os militares e o seu grupo de apoio e os setores comerciais e liberais da burguesia ou grupos regionais ou religiosos, como os cristãos coptas, com base urbana tradicional. A primavera não morre: pode também abrir caminho a um novo processo, marcado pela instabilidade permanente, pelo empate entre as classes e subsetores sociais e novos impulsos e explosões sociais a médio prazo.
Entretanto, o primeiro plano da cena será ocupado pelas forças repressivas, pelo imperialismo e pelas forças religiosas reacionárias que, em nome da gloriosa história árabe, querem canalizar o repúdio ao capitalismo das massas camponesas oferecendo-lhes como futuro a perspetiva medieval de um novo califado. Mas por baixo dessa fachada escava a velha toupeira.
Artigo publicado no jornal mexicano “La Jornada” em 10 de agosto de 2014. Tradução de Carlos Santos para esquerda.net.