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Slavoj Zizek

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Em coluna

Bem-vindo ao “reino animal espiritual”: Sobre o vácuo moral do capitalismo global

Slavoj Zizek - Publicado: Quinta, 20 Setembro 2012 22:03

O documentário The Art of Killing [O ato de matar, Final Cut Film Production, Copenhagen] estreou em 2012 no Festival de Cinema de Telluride e foi exibido no Festival Internacional de Cinema de Toronto. Dirigido por Joshua Oppenheimer, o filme nos mostra uma visão única e profundamente perturbadora do impasse ético do capitalismo global.


O filme – rodado em Medan, Indonésia, em 2007 – relata um caso de obscenidade levado ao extremo: um filme realizado por Anwar Congo e seus amigos, que hoje são políticos respeitados, mas já foram gângsteres e líderes de esquadrão da morte, tendo desempenhado um papel importante no assassinato de cerca de 2,5 milhões de supostos simpatizantes comunistas em 1966, principalmente chineses étnicos. The Act of Killing trata de “assassinos que venceram e do tipo de sociedade que construíram”. Depois de vencerem, seus atos terríveis não foram relegados à condição de “segredo sujo”, o crime fundador cujos traços devem ser obliterados – ao contrário, eles se vangloriam abertamente dos detalhes dos massacres (o jeito de estrangular vítimas com um fio, o jeito de cortar a garganta, como violentar uma mulher da maneira mais prazerosa…). Em outubro de 2007, a televisão estatal da Indonésia produziu um programa de entrevistas celebrando Anwar e seus amigos; no meio do programa, depois que Anwar diz que os assassinatos foram inspirados em filmes de gângsteres, a sorridente apresentadora vira-se para a câmera e diz: “Incrível! Uma salva de palmas para Anwar Congo!”. Quando ela pergunta se Anwar tem medo da vingança dos parentes das vítimas, ele responde: “Eles não podem se vingar. Quando levantam a cabeça, nós cortamos elas fora”. Um de seus escudeiros acrescenta: “Vamos exterminar todos eles”, e o público explode em uma exuberante aclamação… é preciso ver para acreditar que isso é possível. Mas o que também torna The Act of Killing extraordinário é o nível de reflexividade entre documentário e ficção – de certo modo, o filme é um documentário sobre os efeitos reais de se viver em uma ficção:

Para explorar a arrogância estarrecedora dos assassinos, e para testar o limite de seu orgulho, nós começamos com retratos documentais e simples reconstituições dos massacres. Mas quando percebemos que tipo de filme que Anwar e seus amigos realmente queriam fazer sobre o genocídio, as reconstituições ficaram mais elaboradas. Até que oferecemos a eles a oportunidade de dramatizar os assassinatos usando os gêneros cinematográficos que quisessem (western, gângster, musical). Ou seja, nós demos a eles a chance de roteirizar, dirigir e estrelar as cenas que eles tinham em mente enquanto matavam as pessoas.” [1]

Eles atingiram o limite do “orgulho” dos assassinos? Eles mal chegaram a encostar em Anwar quando propuseram que ele representasse, em uma reconstituição, a vítima de suas torturas; quando um arame é colocado em volta do seu pescoço, ele interrompe a atuação e diz “Perdoem-me pelo que fiz”. Mas isso é mais um relapso temporário que não levou a nenhuma crise mais profunda de consciência – seu orgulho heroico assume de novo o controle no mesmo instante. Talvez a tela protetora que impediu uma crise moral mais profunda fosse a mesma tela cinematográfica: como na tortura e nos assassinatos reais do passado, eles experimentaram sua atividade como uma encenação de seus modelos cinematográficos, o que possibilitou que experimentassem a própria realidade como ficção – na condição de grandes admiradores de Hollywood (eles começaram a carreira como organizadores e controladores do mercado negro de ingressos de cinema), eles já representavam um papel nos seus massacres, imitando um gângster, um cowboy ou até mesmo um bailarino de Hollywood.

Aqui entra o “grande Outro”, não só pelo fato de os criminosos terem cometido seus assassinatos nos moldes do imaginário cinematográfico, mas também principalmente, e de modo muito mais importante, por conta do vazio moral da sociedade: de que tipo de tessitura simbólica (conjunto de regras que traçam a linha entre o que é e o que não é publicamente aceitável) uma sociedade deve ser composta se até mesmo um nível mínimo de vergonha pública (o que obrigaria os criminosos a tratar seus atos como um “segredo sujo”) é suspenso, e a orgia monstruosa da tortura e da matança pode ser celebrada publicamente mesmo décadas depois de ter acontecido, não só como crime necessário e extraordinário pelo bem público, mas como atividade comum, prazerosa, aceitável? Obviamente, devemos evitar aqui a fácil armadilha de colocar a culpa diretamente em Hollywood ou no “primitivismo ético” da Indonésia. Antes, o ponto de partida deveria ser os efeitos deslocadores da globalização capitalista que, ao solapar a “eficácia simbólica” das estruturas éticas tradicionais, cria esse vazio moral.

No entanto, a condição do “grande Outro” merece aqui uma análise mais cuidadosa – comparemos The Act of Killing a um incidente que chamou muito a atenção nos Estados Unidos há algumas décadas: uma mulher apanhou e foi lentamente assassinada por um criminoso violento no pátio de um grande prédio residencial no bairro do Brooklyn, em Nova York. Das mais de setenta testemunhas que viram claramente pela janela o acontecido, nenhuma chamou a polícia – mas por quê? Conforme estabeleceu a investigação posterior, a desculpa predominante, sem dúvida, foi que cada testemunha pensou que alguém já tinha chamado ou chamaria a polícia. Esses dados não devem ser descartados em termos morais como uma mera desculpa para a covardia moral e a indiferença egoísta: o que encontramos aqui também é a função do grande Outro – dessa vez não como o “sujeito suposto saber” de Lacan, mas como o que poderíamos chamar de “sujeito suposto chamar a polícia”. O erro fatal das testemunhas do lento assassinato do Brooklyn foi confundir a função simbólica (ficcional) do “sujeito suposto chamar a polícia” como uma afirmação empírica da existência, concluindo erroneamente que deveria haver pelo menos uma pessoa que efetivamente chamaria a polícia – elas sobrepujaram o fato de que a função do “sujeito suposto chamar a polícia” é operativa mesmo que não haja nenhum sujeito para exercê-la. [2]

Isso significa que, pela gradual dissolução da nossa substância ética, estamos simplesmente regredindo ao egoísmo individualista? As coisas são muito mais complexas. Muitas vezes ouvimos que a crise ecológica é resultado do nosso egoísmo de curto prazo: obcecados por riqueza e prazeres imediatos, nós nos esquecemos do Bem comum. No entanto, é aqui que se torna fundamental a ideia de Walter Benjamin sobre o capitalismo como religião: o verdadeiro capitalista não é um egoísta hedonista; ao contrário, ele é um devoto fanático da tarefa de multiplicar sua riqueza, pronto para desprezar a própria saúde e felicidade, sem falar da prosperidade da própria família e do bem estar do ambiente, para chegar a esse objetivo. Portanto, não há necessidade nenhuma de evocar a superioridade moral e detonar o egoísmo capitalista – contra a dedicação capitalista, fanática e pervertida, basta evocar uma boa dose de simples preocupações egoístas e utilitaristas. Em outras palavras, a busca do que Rousseau chama de amour-de-soi natural requer um nível altamente civilizado de consciência. Ou, colocando nos termos de Alain Badiou: ao contrário do que ele sugere, a subjetividade do capitalismo não é a subjetividade do “animal humano”, mas sim um chamado para subordinar o egoísmo à autorreprodução do Capital. Contudo, isso não é sugerir que Badiou esteja errado: o indivíduo preso no capitalismo global de mercado necessariamente percebe-se como um “animal humano” hedonista, interessado em si mesmo, e essa percepção de si é uma ilusão necessária.

Em outras palavras, o egoísmo do interesse próprio não é o fato brutal das nossas sociedades, mas sim sua ideologia – a ideologia articulada filosoficamente na Fenomenologia do espírito, de Hegel, quase no final do capítulo sobre a Razão, sob o nome de “das geistige Tierreich” – o “reino animal espiritual”, nome que Hegel dá à sociedade civil moderna na qual os animais humanos estão presos em uma interação egoísta. Como afirma Hegel, o avanço da modernidade foi permitir que “o espírito da subjetividade chegue à realização da extrema autonomia da particularidade pessoal”. [3] O reino desse princípio torna possível a sociedade civil como domínio em que os indivíduos humanos autônomos se associam uns com os outros para satisfazer suas necessidades pessoais: todos os fins comuns são subordinados aos interesses privados dos indivíduos, são conscientemente postos e calculados com a meta de maximizar a satisfação desses interesses. Aqui, o que importa para Hegel é a oposição entre privado e comum percebida por aqueles em quem Hegel se apoia (Mandeville, Smith), bem como por Marx: os indivíduos percebem o domínio comum como algo que deveria servir a seus interesses privados (como um liberal que pensa o Estado como protetor da liberdade e segurança privadas), porém, ao perseguirem seus objetivos limitados, eles servem efetivamente ao interesse comum. A tensão propriamente dialética surge aqui quando tomamos ciência de que quanto mais os indivíduos agem de modo egoísta, mais contribuem para a riqueza comum. O paradoxo é que quando os indivíduos querem sacrificar seus interesses privados limitados e trabalhar diretamente para o bem comum, quem sofre é o próprio bem comum – Hegel adora contar anedotas históricas sobre um príncipe ou rei bom cuja dedicação ao bem comum levou seu país à ruína. A novidade propriamente filosófica de Hegel foi ainda determinar essa “contradição” ao longo das linhas de tensão entre o “animal” e o “espiritual”: a substância espiritual universal, “obra de todos e de cada um”, surge como resultado da interação “mecânica” entre os indivíduos. Isso significa que a mesma “animalidade” do “animal humano” egoísta (o indivíduo que participa da rede complexa da sociedade civil) é resultado do longo processo histórico da transformação da sociedade hierárquica medieval na sociedade burguesa moderna. Desse modo, é a própria satisfação do princípio de subjetividade – o oposto radical de animalidade – que dá origem à reversão da subjetividade em animalidade.

Os traços dessa passagem podem hoje ser detectados em todos os lugares, especialmente nos países asiáticos de desenvolvimento acelerado onde o capitalismo exerce impacto mais brutal. A exceção e a regra, de Bertolt Brecht (peça didática escrita em 1929-30) conta a história de um rico comerciante que, com seu cule (carregador) cruza o deserto de Jahí (mais um dos lugares chineses fictícios de Brecht) para fechar um negócio de petróleo. Quando os dois se perdem no deserto e a água começa a acabar, o comerciante atira equivocadamente no cule, achando que estava sendo atacado, quando na verdade o cule estava lhe oferecendo água que ainda tinha na garrafa. Posteriormente, na corte, o comerciante é absolvido: o júri conclui que ele tinha todo o direito de temer uma ameaça potencial do cule, portanto ele estava justificado em atirar no cule como legítima defesa independentemente de haver ou não uma ameaça efetiva. Como o comerciante e o cule pertenciam a classes diferentes, o comerciante tinha todas as razões para esperar o ódio e a agressão – essa é a situação típica, a regra, enquanto a bondade do cule era a exceção. Não seria essa história mais uma simplificação marxista ridícula de Brecht? Não, a julgar pelo que nos mostra um relato verdadeiro e atual da China:

“Em Nanquim, há meia década, uma idosa caiu enquanto subia em um ônibus. Os jornais contam que a senhora de 65 anos quebrou a bacia. No local, um jovem foi ajudá-la; vamos chamá-lo de Peng Yu, pois este é seu nome. Peng Yu deu 200  ¥ para a senhora (na época, o suficiente para comprar trezentas passagens de ônibus) e a levou ao hospital. E continuou com ela até a chegada da família. A família moveu uma ação contra o jovem, pedindo 136,419  ¥. O tribunal do distrito de Gulou, Nanquim, efetivamente considerou o jovem culpado e ordenou que ele pagasse 45,876  ¥. O tribunal concluiu que, ‘segundo o senso comum’, como Pend Yu foi o primeiro a sair do ônibus, era praticamente certo que ele tivesse derrubado a senhora. Além disso, ele na verdade admitiu a culpa, segundo o tribunal, ao ficar com a senhora no hospital. Sendo assim, uma pessoa normal não seria tão gentil quanto Peng Yu afirmava ser.” [4]

Esse incidente não seria um paralelo exato à história de Brecht? Peng Yu ajudou a senhora por simples compaixão ou decência, mas como essa demonstração de bondade não é “típica”, não é a regra (“uma pessoa normal não seria tão gentil quanto Peng Yu afirmava ser”), ela foi interpretada pela corte como prova da culpa de Peng Yu, e ele foi punido de acordo. Não seria essa uma ridícula exceção? Nem tanto, de acordo com o People’s Diary (jornal do governo) que, em uma pesquisa de opinião realizada online, perguntou a um grande grupo de jovens o que eles fariam se vissem uma pessoa mais velha caída no chão: “87% dos jovens não ajudaria. A história de Peng Yu reflete a vigilância do espaço público. As pessoas só ajudam quando há uma câmera presente”. Essa relutância em ajudar sinaliza uma mudança na condição do espaço público: “a rua é um lugar intensamente privado, e aparentemente as palavras público e privado não fazem sentido nenhum”. Em suma, estar em um espaço público não implica apenas estar junto de pessoas desconhecidas – ao me mover entre elas, eu ainda estou dentro do meu espaço privado, não estou envolvido em nenhuma interação com elas, tampouco as reconheço. Para que seja considerado público, o espaço da minha coexistência e interação com os outros (ou com a falta deles) tem de ser coberto por câmeras de segurança.

Outro sinal dessa mesma mudança pode ser visto como a extremidade oposta de se observar as pessoas morrendo em público e não fazer nada – a recente tendência do sexo em público no ramo do pornô hard-core. Cada vez mais surgem filmes que mostram um casal (ou mais pessoas) envolvidos em jogos eróticos até chegar à cópula propriamente dita em algum espaço público bastante movimentado (em uma praia pública, dentro de um bonde ou trem, em um ônibus ou estação de metrô, na área aberta de um shopping center…), e o interessante é que a grande maioria das pessoas que passam ignora a cena (ou finge ignorá-la) – uma minoria olha discretamente para o casal, e menos pessoas ainda fazem uma observação obscena sarcástica. Mais uma vez, é como se o casal fazendo sexo continuasse no seu espaço privado, de modo que não devemos nos preocupar com sua intimidade.

Isso nos leva de volta ao “reino animal espiritual” – ou seja, quem de fato se comporta assim, ignorando moribundos na bendita ignorância ou transando na frente dos outros? Os animais, é claro. Esse fato de modo nenhum implica a conclusão ridícula de que estamos de alguma maneira “regredindo” ao nível do animal: a animalidade com a qual lidamos aqui – o egoísmo cruel de cada um dos indivíduos que busca seus próprios interesses – é o resultado paradoxal da rede mais complexa das relações sociais (troca comercial, mediação social de produção), e o fato de os próprios indivíduos estarem cegos para essa rede complexa aponta para o seu caráter ideal (“espiritual”): na sociedade civil estruturada pelo mercado, a abstração domina mais do que nunca na história da humanidade. Em contraste com a natureza, a competição do mercado de “lobos contra lobos” é, portanto, a realidade material do seu oposto, da substância pública “espiritual” que fornece a base e o pano de fundo para essa luta entre animais privados.

Costuma-se dizer que hoje, com a nossa exposição total à mídia, a cultura das confissões públicas e os instrumentos de controle digital, o espaço privado está desaparecendo. Devemos contrapor esse lugar-comum com a afirmação oposta: é o próprio espaço público que está desaparecendo. A pessoa que expõe na internet fotografias do próprio nu ou dados íntimos e sonhos obscenos não é exibicionista: os exibicionistas invadem os espaços públicos, ao passo que as pessoas que postam suas imagens de nu na internet continuam no seu espaço privado e estão apenas expandindo-o para acrescentar nele outras pessoas. E, voltando a The Act of Killing, o mesmo vale para Anwar e seus colegas: eles estão privatizando o espaço público em um sentido que é muito mais ameaçador do que a privatização econômica.

Fonte: Boitempo Editorial.


[1] Citado do material de publicidade distribuído pela Final Cut Film Production.

[2] Podemos até imaginar um teste empírico para essa afirmação: se pudéssemos recriar uma circunstância em que cada uma das testemunhas pensasse que observava sozinha essa cena grotesca, poderíamos prever que uma grande maioria delas teria chamado a polícia, apesar do cuidado oportunista de “não se envolver no que não é da sua conta”.

[3] G. W. F. Hegel, Elementos da Filosofia do Direito (Elements of the Philosophy of Right, Cambridge, Cambridge University Press, 1991, §260).

[4] Michael Yuen, “China and the Mist of Complicated Things” (texto cedido pelo autor).


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