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Atilio Borón

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Denver: um massacre funcional do poder

Atilio Borón - Publicado: Quinta, 26 Julho 2012 15:04

O massacre que aconteceu num teatro de um subúrbio de Denver desencadeou, como tantas vezes após a ocorrência de atrocidades semelhantes, o previsível coro de lamentos que, por sua vez, se perguntava por que aparecem regularmente nos Estados Unidos monstros capazes de cometer crimes como os do tétrico êmulo do Joker.


De fato, uma análise que ponha de lado a habitual complacência com as coisas do império não poderia deixar de notar uma causa de fundo: como expressão última da sociedade burguesa, os EUA são também o lugar onde a alienação dos indivíduos atinge níveis sem paralelo em escala universal. Não deveria surpreender ninguém que comportamentos como o do jovem James E. Holmes - quantos assassinatos indiscriminados ocorreram nos últimos anos? - aflorem periodicamente para espalhar a dor na população norte-americana.
Uma sociedade alienada e alienante, que gera milhões de toxicodependentes (sem que exista qualquer programa do governo federal para prevenir e lutar contra o vício), milhões de "vigilantes" dispostos a impor a lei e a ordem por conta própria perseguindo pessoas pela cor da sua pele ou traços faciais; e outros milhões que, assim como Holmes, podem comprar em qualquer loja de armas uma espingarda de assalto, pistolas, revólveres, granadas, bombas de fumaça e todos os apetrechos da parafernália militarista e, além disso, obter licenças para usar legalmente todo esse mortífero arsenal.

A recorrência deste tipo de massacres evoca um problema estrutural, o que é cuidadosamente evitado nas explicações convencionais que, invariavelmente, falam de um ser perdido, de um louco, mas nunca questionam as causas estruturais que nessa sociedade produzem loucos em série. Uma sociedade que se apresenta com características paradisíacas, como a terra prometida, como o país onde qualquer pessoa pode ter sucesso e ganhar dinheiro em abundância, poder e prestígio, com tudo o que esses atributos trazem como benefícios colaterais e que, na verdade, são metas apenas acessíveis, na melhor das hipóteses, a 5% da população. Os restantes, submetidos a um bombardeio de publicidade incessante e constante, mastiga a sua impotência e frustração. Ocasionalmente, alguns pensam que a solução é sair e matar pessoas a sangue frio e de forma indiscriminada; outros, mais inofensivos, decidem matar-se lentamente com drogas.

Mas, se a alienação generalizada da sociedade americana é a causa de fundo, outros fatores contribuem para produzir comportamentos aberrantes como o de Holmes. Primeiro, o grande negócio da venda de armas, protegido sob o pretexto de ser um direito garantido pela Constituição, e que na verdade é o complemento necessário para legitimar, em termos de sociedade civil, o "complexo industrial militar" que domina a vida econômica e política dos Estados Unidos, desde há pouco mais de meio século.

Aqueles que fabricam armas devem vendê-las, seja ao governo dos EUA (e, portanto, devem fabricar guerra por todo o mundo, ou montar cenários tendentes a elas), quer para os indivíduos ameaçados pelo espectro da insegurança omnipresente. Vários analistas dizem que apenas nas regiões fronteiriças entre o México e os Estados Unidos existem 17.000 lojas de armas onde se pode comprar uma espingarda de assalto AK47 com a mesma facilidade com que se compra um hambúrguer, o que, além de ser uma grotesca aberração, traduz a coerência da política de governo que cobre tal absurdo.

Em segundo lugar, a indústria do entretenimento (Hollywood) permanentemente excita a imaginação de dezenas de milhões de americanos com um fluxo incessante de séries, vídeos e filmes onde a violência mais cruel, atroz e horrenda é exposta com rigor perverso. Antes também havia algo disto, mas agora sua proporção tem crescido exponencialmente e, em determinados dias e horas é quase impossível de se ver na televisão outra coisa que não seja a glorificação subliminar do sadismo em todos as formas que só uma imaginação muito doentia pode conceber.

A censura que existe - ora sutilmente, ora de forma completamente descarada - para dificultar ou impedir que se conheça o trabalho de cineastas ou documentaristas críticos do sistema ou que falem bem de países como Cuba, Venezuela - Michael Moore ou Oliver Stone, por exemplo - não existe na hora de preservar a saúde mental da população exposta ao vômito de atrocidades e crueldades produzidas por Hollywood. Por algo será. E esse "algo" é que tanto a venda descontrolada de armas de todos os tipos como a violência induzida de Hollywood são totalmente funcionais para o projeto de dominação da burguesia norte-americana.

Noam Chomsky tem mostrado ao longo de décadas como esta tem aperfeiçoado os mecanismos que lhe permitem dominar com terror, sabendo que do medo – o sentimento mais incontrolável dos homens – brota a submissão aos poderosos. Uma burguesia que incute o medo entre a população, fazendo com que todos saibam que ninguém está a salvo e que para proteger as suas vidas pobres e indefesas deve renunciar a mais e mais direitos, dando ao governo a capacidade de vigiar todas as áreas públicas, monitorizar os seus movimentos, interferir nas suas chamadas telefônicas, interceptar e-mails, controlar as suas finanças, saber o que compram, em que gastam o seu dinheiro, o que leem, com quem se reúnem e de falam quando o fazem. Um inimigo externo - agora o "terrorismo internacional", antes o "comunismo" - apresentado como onipotente e de uma crueldade sem limites é complementado internamente com a ameaça encarnada nos milhares de assassinos que se misturam com o resto da população, como Holmes, para cuja neutralização é necessário dar à polícia, ao FBI, à CIA e ao Departamento de Segurança Interna todos os poderes necessários.

O que Thomas Hobbes colocava em 1651 no seu Leviatã como uma metáfora heurística, impossível de encontrar na realidade, pelo seu extremismo: a transferência que os indivíduos faziam de quase todos os seus direitos para o soberano em troca de preservar a vida, acabou por se converter numa trágica realidade nos Estados Unidos de hoje.

Fonte: Página/12


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