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Miguel Urbano Rodrigues

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Em coluna

Kaputt - Um livro inesquecível

Miguel Urbano Rodrigues - Publicado: Domingo, 02 Agosto 2015 00:10

Ao abrir uma edição de Kaputt,* de Curzio Malaparte, pensei que iria reler o livro. Engano. Logo na introdução percebi que o desconhecia.


Recordei a admiração que senti na juventude pelo autor de A Pele.**

Kaputt (palavra derivada do hebraico antigo) não é propriamente um romance. Escrito na primeira pessoa, não cabe em géneros literários tradicionais. Não é também uma narrativa, mas uma mistura de reportagem, autobiografia e ensaio. Malaparte escreve como um correspondente de guerra que era simultaneamente oficial do exército italiano; escreve como espectador que condena a guerra.

Na agressão alemã à União Soviética esteve em muitas frentes, da Roménia à Finlândia.

Kaputt é uma miscelânea de estilos e temas dificilmente imaginável.

A guerra, que lhe inspira repugnância e piedade, está omnipresente, mas são muitos os temas que aborda na maior parte do livro. Malaparte é um escritor barroco que domina um vocabulário riquíssimo, floreado, metafórico, com toques musicais.

As transposições, frequentes e inesperadas, são muitas vezes desconcertantes. De diálogos na Suécia com um irmão do rei salta para Capri, Paris, Roma, Belgrado, Berlim, Helsinki, Jassy na frente da Moldávia, para o ghetto de Varsóvia, a Lapónia finlandesa ou o cerco de Leninegrado.

Hans Frank é uma personagem importante. O retrato que apresenta do gauleiter nazi da Polonia é devastador. Mas convive com ele amigavelmente, participa nos seus banquetes e nos do corpo diplomático. O leitor sente que ele se move com prazer nos amores e mexericos da «alta sociedade» da Europa em guerra.

Kaputt é um livro cruel e o autor um cínico que cultiva a piedade, vive o medo e a angústia.

A sua crueldade é marcada por um humor negro, por vezes sarcástico. Como no episódio do cesto com olhos humanos oferecidos ao croata Ante Pavlich pelos seus ustachis. Ou na estória do bordel de Soroca, instalado pelos SS com jovens judias romenas que satisfaziam em média diariamente 50 oficiais e soldados cada uma e apos três semanas eram fuziladas por imprestáveis.

A personagem e o escritor são um poço de contradições.

Na juventude, Malaparte - filho de um alemão e de uma italiana, batizado como Kurt Suckert- foi fascista, participou da Marcha sobre Roma, embora o negue. Entusiasmou-se com Mussolini, mas a admiração não tardou a ceder o lugar a sentimentos de desprezo e aversão. Sempre inconstante, no final da vida aproximou-se do Partido Comunista Italiano.

O seu primeiro livro, A Técnica do Golpe de Estado, levou-o à prisão. Mas ele, ao contrário do que afirma (mente despudoradamente), não cumpriu integralmente o desterro na ilha de Lipari, graças à intervenção do seu amigo Ciano, genro de Mussolini.

Correspondente de guerra na frente da Roménia, com a patente de capitão, as suas reportagens desagradaram aos alemães. Foi afastado, mas voltou e teve acesso à intimidade de altas patentes da Wehrmach e das SS durante a agressão à URSS.

Não consegue ocultar a sua cumplicidade, disfarça-a com um humor macabro. O horror da guerra toca o leitor em páginas em que desfilam cadáveres putrefactos, cavalos mortos, cemitérios nauseabundos, mulheres violadas pela soldadesca.

O escritor foi um aventureiro muito talentoso, frívolo, irresponsável, com uma imaginação prodigiosa. Brinca com as palavras, com os sentimentos, com a História.

O penúltimo capítulo de Kaputt sobre a atmosfera humana que encontrou na Itália em guerra é talvez o mais malapartiano do livro. Com uma ironia cínica esboça o quadro de uma sociedade decadente, de uma aristocracia agónica, fundida com uma burguesia igualmente corrupta e venal. Nos salões do Palácio da princesa Isabel Colonna altos dignitários do regime e diplomatas, a principiar pelo ministro Galleazzo Ciano, criticam alegremente o fascismo, ridicularizam Mussolini e Hitler. Mas não o fazem por patriotismo. Olham para o próprio povo com desprezo. Essa classe social está apodrecida até à medula. Falta-lhe energia para conspirar; cultiva a intriga, a felonia, numa vertigem de festas quase orgíacas, encharcada em whisky e champagne.

Malaparte pinta um retrato demolidor dessa gente.

Em A Pele, escrito anos depois, retoma o tema, mas situa a ação na Nápoles recém-libertada que lhe inspira piedade e paixão.

Inventa personagens que convivem com as reais. O leitor não consegue separar o que é forjado daquilo que o autor viu e viveu.

Em Kaputt a sua intimidade com generais e altos funcionários nazis é instrumental, empurra o leitor para a condenação da casta nazi, monstruosa, desumana.

Em A Pele o elogio constante do povo americano encobre mal o seu desprezo irónico quase afetuoso pela ignorância, ingenuidade e primarismo dos generais da USS Army e do seu corpo de oficiais.

Malaparte fascina pelo talento e erudição, mas simultaneamente inspira desconfiança, um sentimento próximo da repugnância pela sua leviandade.
Morreu em Roma, aos 59 anos, no auge da popularidade. Pergunto: se vivesse alguns anos mais, que rumo tomaria a obra deste grande escritor contraditório, um dos maiores da sua época? Não consigo imaginar. Um abismo separa a Técnica do Golpe de Estado de Kaputt, do jovem fascista que admirava Mussolini e este do amigo de Togliatti.

*Kaputt, Curzio Malaparte,Editora Denoel,Paris,1946
** La Peau, Curzio Malaparte, Editora Denoel, Paris,1959
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Vila Nova de Gaia e Cascais, Junho e Julho de 2015


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