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Valério Arcary

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Em coluna

O Dezoito de Brumário da burguesia brasileira de Fábio Queiroz

Valério Arcary - Publicado: Segunda, 08 Junho 2015 14:50

Um bom livro merece um grande título. A metáfora do 18 de Brumário foi uma ideia luminosa para descrever o significado do golpe de 1964.


Se para o Brasil tivéssemos feito um estudo sério da realidade teríamos chegado à conclusão de que a principal tarefa revolucionária em toda a América Latina era muito mais modesta que preparar a guerra de guerrilhas: havia que impedir que triunfara o putch reacionário gorila que se estava preparando (…). A situação latino americana, como a do país irmão (Brasil), com sua história, economia, relações sociais, política e caráter do governo indicavam que era inevitável um golpe de estado reacionário. A grande tarefa era, então, mobilizar o movimento de massas brasileiro para freá-lo ou esmagá-lo, sem depositar a mais mínima confiança no governo de (Jango) Goulart ou Brizola. A mais trágica derrota do movimento de massas latino americano nos últimos vinte anos foi a do Brasil. Essa derrota vai refletir em todo nosso continente.[1] (tradução nossa)

Nahuel Moreno

O argumento central deste livro é que se triunfou uma contra-revolução, foi porque a classe dominante brasileira se preocupou, seriamente, com o perigo de uma revolução. No Brasil de 1964 existia em curso uma dinâmica de luta de classes que se aproximava de uma situação revolucionária. Uma revolução democrática-nacional para libertar a nação da dependência norte-americana, para extender os direitos civis a todos, incluindo a maioria afro-descendente; uma revolução agrária pela divisão da terra; uma revolução operária pelo direito a melhores salários e condições de vida. Esta tensão social latente resultava da insatisfação histórica de demandas e expectativas sempre postergadas. A dinâmica histórico-social desta simultaneidade de revoluções resultava em um programa anticapitalista.

Afirmar que a revolução brasileira tinha, já em 1964, uma dinâmica anticapitalista era, naquele contexto, uma conclusão teórica corajosa. Em outras palavras, ou a classe trabalhadora era capaz de liderar, pelo impacto social de sua mobilização, um bloco social da maioria de explorados e oprimidos das cidades e do campo, que reuniria, também, a pequena propriedade empobrecida agrária, dividindo a classe média, e os setores assalariados urbanos de alta escolaridade, ou não seria possível derrotar a burguesia. Mas a chave do destino do Brasil estava no jovem proletariado formado depois de 1930. Hoje o reconhecimento da classe trabalhadora como o sujeito social da revolução brasileira é inescapável, incontornável, incontestável. O peso social do trabalho assalariado agigantou-se em tais proporções, em um país em que mais de 85% da população vive em cidades, que qualquer projeto de transformação social que diminua o papel da classe trabalhadora não merece ser, seriamente, considerado. O programa da revolução brasileira do século XXI será socialista.

O que nos remete à dialética entre tarefas e sujeitos sociais que resume o núcleo duro da teoria da revolução permanente, seja qual for a sua versão, desde Marx e Trotsky até hoje, e permanece a melhor elaboração para compreender o processo de transformações das sociedades contemporâneas.

A hipótese central da teoria na formulação de Trotsky depois da revolução russa de 1905, é o fenômeno do substitucionismo social do papel de uma classe por outra. Ela se apóia na compreensão de que, em certas circunstâncias excepcionais, a necessidade de transformações para a solução de problemas que o passado deixou pendentes, precipita crises revolucionárias, em que a classe trabalhadora se vê diante da necessidade de assumir as tarefas democráticas que a burguesia não foi capaz de resolver, mas de forma ininterrupta, inicia as rupturas anticapitalistas. A revolução política transcresce em revolução social, em permanência.

A pressão da necessidade de mudanças impõe à sociedade tarefas inadiáveis: ou se resolvem por via negociada, ou por via revolucionária. A terceira hipótese é que não se resolvam: então, a sociedade mergulha em decadência e regride.

Quando a pressão atinge intensidade máxima, as tarefas que, historicamente, corresponderiam a uma classe, mas que, pelas mais diferentes razões não foi realizada, podem vir a ser cumpridas por outra classe.  Era, talvez, esse um dos sentidos que Marx atribuía à famosa passagem “a História não se coloca problemas que não possa resolver”.

Claro que o próprio Marx, foi sempre muito cauteloso em retirar conclusões teóricas apressadas e, por isso, só esboçou a possibilidade de substituição da burguesia como sujeito social, e ainda assim, em um texto essencialmente “alemão” – a famosa Carta  à Liga dos Comunistas – apresentando uma proposta que trabalhava com a hipótese de que a pequena burguesia poderia substituir a burguesia na revolução democrática, ou seja uma reedição da experiência jacobina. Como sabemos, esta hipótese só se manifestou, parcialmente, nas revoluções de 1848.

As transições tardias do XIX assumiram, finalmente, formas não revolucionárias, tanto na Alemanha, em processo que Lenin clasificou como via prussiana, quando o regime bismarckista, com seu exdrúxulo equilíbrio de forças sociais, permitiu o aburguesamento dos junkers sem revolução camponesa, e a industrialização capitalista sem desmoronamento do II Reich, quanto, em muito menor medida, na Itália, em processo que Gramsci denominou de revolução passiva.

A explicação “última” para esse processo tortuoso, está em uma dialética entre revolução e reforma que escapa às análises que perdem a referência da dimensão internacional do que foi a transição burguesa no século XIX: é porque a burguesia francesa ensaiou, mesmo que “com o freio de mão puxado” uma segunda revolução para derrotar o perigo de uma restauração monárquica em 1848, que a burguesia alemã, renunciou à sua revolução de “1789” em 1848. Alertada, pelo exemplo de Paris, para o despertar das novas forças sociais proletárias, sobretudo na insurreição de Junho de 1848, preferiu uma solução de compromisso com os “terratenentes” prussianos, e tolerou o bismarckismo até quase o final do XIX.

Só então, se sentiu mais confortável, representada por um regime democrático/semi-bonapartista, construído por cima, através de reformas controladas, entre as quais, a legalidade do SPD, o primeiro partido operário socialista com influência de massas, sempre foi uma das questões centrais em disputa.

Já a França, depois do golpe de Luís Bonaparte, esmagou o nascente movimento independente dos trabalhadores, mas mergulhou em decadência nacional. A burguesia francesa entregou ao segundo Bonaparte o poder com medo da elevação da instabilidade social. A quartelada de 1851 veio para derrotar o perigo da radicalização democrática da revolução que derrubou a monarquia de Julho. Quando caiu, também, a II República que, por sua conta e risco já tinha esmagado o proletariado nas Jornadas de Junho de 1848, não foi somente o regime que nasceu da revolução que foi derrotado. Foi a França enquanto nação que mergulhou na aventura do Segundo Império que, por sua vez, terminou na derrota humilhante de Sedan de 1870, e na anexação da Alsácia e da Lorena pela Prússia.

A Batalha de Sedan aconteceu em  setembro de 1870 durante a Guerra franco-prussiana. Um exército chefiado em pessoa por Luís Bonaparte, que orgulhosamente se proclamou Napoleão III, e que iniciou a guerra mobilizando a França profunda para reviver as glórias do Primeiro Império acabou cercado em 31 de agosto, poucos meses depois do início do conflito. Os franceses tentaram inutilmente romper o cerco e, em 2 de setembro, Napoleão III e 83.000 soldados renderam-se aos alemães.  Luís Bonaparte teve que abdicar. Um novo governo assumiu o poder em Paris em 4 de setembro, depois de dissolver a Assembleia Legislativa, proclamar a deposição do imperador e estabelecer a III República. Otto von Bismarck, chanceler da Prússia, recusou-se a assinar a paz, assumiu posições em Versailles, a trinta km da capital e, em 19 de setembro, começou o cerco a Paris. O dirigente do novo governo Léon Gambetta fugiu de Paris.

Foi este o gatilho político da Comuna de Paris, quando a Guarda Nacional assumiu o poder, convocou eleições, e formou o primeiro governo de trabalhadores da história. Resistiu de 18 de março a 28 de maio de 1871. Bismarck não entrou em Paris enquanto a Comuna estava no poder. Esperou que a burguesia francesa formasse um novo exército, invadisse a cidade, massacrasse milhares de comunnards, para somente depois completar a operação de vitória militar. Mas a Comuna ganhou imortalidade diante da História: quando a burguesia abandonou a sua capital, os trabalhadores de Paris se levantaram para defendê-la.

O golpe preventivo de 1851 levou ao poder o bonapartismo fantasiado de Segundo Império, para evitar que a II República desmoronasse diante de uma agudização da luta de classes como aquela que, finalmente, derrubou os jacobinos durante a I República em 1793. Lançou a França na provocação de uma guerra perdida contra a Prússia antes de começar. Terminou abrindo o caminho para a revolução que tinha sido a razão de ser do golpe que lhe deu origem. O resultado foi devastador: vinte anos depois de 1851, Bismarck desfilou nos Champs Elysées, e a França perdeu o lugar de segunda potência europeia, que rivalizava com a Grã-Bretanha a disputa pelo mercado mundial, ajoelhada diante da Alemanha, enfim, unificada.

A analogia com o regime bonapartista francês apresentada neste livro é, também, inspiradora. O bonapartismo militar no Brasil tentou se legitimar como um regime que defendia a nação contra o perigo do comunismo. Invocou o cristianismo, agitou o patriotismo, exaltou o desenvolvimentismo. No auge da violência, a partir de 1969, o bonapartismo militar degenerou em um regime semi-fascista.

Mas dez anos depois de apoderar-se do poder foi surpreendido em 1974 pela derrota da Arena, mesmo em eleições ultra-controladas. A ditadura brasileira não teve a sua batalha de Sedan, como a Argentina nas Malvinas em 1982. Mas isso não impediu que a luta pela sua derrubada tenha sido uma batalha política duríssima. O nosso bismarckismo senil, analogia sugerida por Moreno, estava próximo do seu fim. Trinta anos atrás, entre janeiro e abril de 1984, quando das Diretas Já, mais de cinco milhões foram as ruas para derrubar Figueiredo, em um país que tinha então quarenta milhões na população economicamente ativa. Nunca, nem antes nem depois, tantos trabalhadores se mobilizaram para derrubar um governo.

O processo das Diretas foi grande o bastante para consolidar nas ruas a conquista das liberdades democráticas, e derrotar o regime, mas não para derrubá-lo. Foi uma mobilização que venceu a ditadura, porém, paradoxalmente, não culminou com a queda do governo Figueiredo. Tancredo Neves, o mesmo líder burguês que, trinta anos antes, tinha pressionado Getúlio Vargas em 1954 a demitir a cúpula das Forças Armadas que exigia a sua renúncia, ofereceu aos militares o paraquedas que amorteceu a crise, e permitiu que o fim da ditadura não fosse na forma de queda. Mais pacífico, menos indolor, impossível. Mais negociado, menos conflitivo, de novo, impossível.

Como em 1889, quando da proclamação da República; como em 1930, quando da derrota da República Oligárquica; como em 1945, quando da saída de Getúlio; como em 1954, quando do suicídio de Vargas. Também em 1984, prevaleceu o padrão político preferido pela classe dominante brasileira: uma solução negociada para uma transição controlada.

A pactuação de um consenso entre a direção do PMDB e as forças políticas que sustentavam a ditadura – PDS e, sobretudo, Forças Armadas – resultou em um compromisso político com uma solução institucional de conciliação. Mas este entendimento não teria sido possível sem a mobilização de massas que subverteu o país e impôs uma nova relação de forças.

Ironia da dialética da história, não fosse o papel do proletariado na luta contra a ditadura, Lula nunca teria sido eleito presidente da República quase vinte anos depois.

Notas:

[1] MORENO, Nahuel. Dos métodos frente a la revolución latinoamericana. Este artigo foi publicado pela primeira vez na revista Estrategia de Buenos Aires (Tercera época, Nº3, 1964), cujo diretor era Nahuel Moreno. Uma versão foi republicada em La Verdad, Año III, Nº110, octubre 23, 1967, editada por el PRT argentino. Disponível no arquivo Leon Trotsky:https://www.archivoleontrotsky.org/detalhes.php?id=002316. Consulta em 14/08/2014.


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