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Ilka Oliva Corado

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Crónicas de uma inquilina

Guatemala, não se detenha

Ilka Oliva Corado - Publicado: Quarta, 13 Mai 2015 17:52

Não foi capaz de unir a Guatemala o julgamento por genocídio, não tiveram pessoas encadeadas em frente ao Congreso de la República (Congresso da República) nem em frente à porta do Palacio Nacional (Palácio Nacional). Não se aglomeraram pessoas com panelas, potes e violões para acompanharem as mulheres Ixiles1 que testemunharam. Não chegaram desconhecidos a lhes oferecer um pão com feijão e um copo de atol. Não chegaram artistas nacionais para abraçá-las pela sua dignidade e integridade, ficando o momento registrado na mídia.


Também não foram vistos estudantes San Carlistas2 fazerem fila em marchas para apoiá-las, muito menos os das universidades privadas. Não saíram avós, mães, motoristas de ônibus, sacerdotes, pastores e nem freiras para protestarem, enchendo as ruas do país exigindo a prisão [do general e ex-ditador] Efraín Ríos Montt3.

Não foi mostrado o apoio multitudinário às vitimas do genocídios, aos familiares dos desaparecidos. Porque se tocam a um, tocam a todos. Este deveria ser o nosso lema de vida como povo.

 Insensíveis, apáticos, sem memória histórica, negando o genocídios... Assim foi como o povo guardou silêncio. Não soltaram fogos de artifício no dia em que a sentença foi ditada e Ríos Montt foi condenado a 80 anos de prisão. A Guatemala não saiu às ruas para festejar o triunfo da justiça. Também não se indignou quando, dias depois, o sistema corrupto, no qual os juízes civis cheiram a subornos, anulou a sentença e praticamente o julgamento.

Um ano depois, quando o mesmo sistema e os mesmos juízes civis tiraram a fiscal-geral Claudia Paz y Paz antes do tempo de finalização do ser cargo, o povo também guardou silêncio e a acusou de comunista. Repetindo a mesma reza que a classe oligárquica lhes mete na cabeça através da televisão, do jornal e do rádio. Via cartazes e anúncios publicitários. Claudia Paz y Paz foi fundamental no processo de levar a Ríos Montt a julgamento e também na detenção de varias quadrilhas criminais que operavam sob o amparo do Estado guatemalteco. Ia em busca das maiores cabeças, mas foi então que a impunidade na Guatemala triunfou mais uma vez. O povo guardou silêncio.

O que teria acontecido se o povo da Guatemala tivesse se levantado quando estava sendo realizado o julgamento pelo genocídio? Se tivesse apoiado os seus companheiros Ixiles? Se tivesse enchido as ruas para denunciar e mostrar a não aceitação da anulação da sentença por genocídio? Se não tivesse aceitado a demissão de Claudia Paz y Paz? Quem nos dera! Mas, não é para jogar na cara, é para colocar em contexto apenas estes dois últimos anos.

Eu me pergunto qual foi o detonante que fez com que de repente a população se sacudisse e despertasse do seu estado moribundo, saindo às ruas. A corrupção? É que isto resulta inverosímel. O povo deveria se indignar com o mesmo fervor quando sai à luz o caso de uma criança estrupada, de uma adolescente que ficou grávida a consequência disto. Deveria se indignar porque no país não existe uma lei de aborto. Porque não existe o direito à união civil. Deveria realizar uma greve geral quando descobre que apareceu o corpo de uma mulher, desmembrado, vítima do feminicídio.

Deveria se enfurecer pelas centenas de crianças que vivem nas ruas. Pelas famílias que vivem do que recolhem nos lixões municipais. Pelo estado de calamidade em que sobrevivem os párias nas ladeiras. Pelas crianças que não têm acesso à educação formal.

A população da Guatemala deveria tomar as ruas e se unir sem religião, raça, classe social ou cor por todos esses jornaleiros que são internados desde pequenos e chegam à idade adulta e morrem nas fendas de algodão, no corte de café, nos canais da terra. Sem direitos laborais nem humanos. Pelos adolescentes que veem passar a vida dentro de uma maquiladora. Por todas essas meninas e mulheres que apodrecem dentro de uma fábrica de tortillas4.

E ainda mais claro, a Guatemala deveria se levantar com o espírito inquieto por todos esses bares que existem em cada esquina onde os nossos homens abusam de quantas meninas, adolescentes e mulheres ali estejam, vítimas do tráfico de pessoas. Diante de tudo isto deveriam se pronunciar os bispos, ferventes pastores e rabinos e deveriam deixar em paz o tema do aborto. Ou melhor, em uma só voz exigir o direito que corresponde a toda mulher de decidir sobre o seu corpo. Porém, são os primeiros a julgarem.

Algo sucedeu, ainda não consigo assimilar muito bem o que é porque, com tanta carência que se vive na Guatemala e com tanta necessidade de protesto, não sei qual foi o detonante. Se o fato de uma criança ficar grávida por causa de um estrupo nunca foi o detonante, o que mais pode fazer com que a população sinta indignidade? Se não foram os feminocídios? A fome? A venda de terras e a submissão dos povos originários?

Quero pensar que foi a acumulação de tudo, que estamos fartos, que a cara-de-pau da classe oligárquica, uma classe ladra e embusteira, e a nossa própria cara-de-pau, por sermos submissos, nos bofeteou e foi tão forte que nos fez reagir. Quero pensar que o fedor dos lixões penetrou as salas das nossas casas, que o clamor das crianças que vivem nas ruas posou nas nossas camas, que o choro das meninas violadas ressonou nos nossos tímpanos e que, finalmente, despertou a nossa dignidade humana.

Quero pensar que a nossa indignação é definitiva e que a nossa decisão de restaurar a Guatemala é categórica. Que não nos iremos deter. Que não iremos parar até que essa revolução tão sonhada pelos nossos ancestrais e mártires seja uma realidade e que a terra seja de quem a trabalha. E que os Direitos Humanos sejam para todos, sem distinções. Que exista finalmente a equidade de gênero. Essa Guatemala que está no papel e que diz que é: pluricultural, multiétnica e multilingue.

Guatemala, não se detenha até ter conseguido o impossível. Não se detenha, povo, até ter demonstrado que você é digno da terra que o viu nascer. Não se distraia porque agora o caminho é árduo. Não renuncie a fazer valer os seus direitos. Não permita que os traidores façam com a sua voz um canto segundo o que lhes convêm.

Não durma nunca, não descanse nunca. Não permita que estes mesquinhos continuem fazendo da mais-valia de uma terra milenária farrapos sujos que, apesar de tanta mancha, ainda se atreve a dar flores.

Que esse despertar seja definitivo. Caiu a cabeça de uma das quadrilhas, não nos esqueçamos de que existem milhares, que o sistema está cheio desta praga de embusteiros. Vamos por mais, vamos levar aos tribunais as quadrilhas. Vamos meter os genocidas nas masmorras. Vamos tirar a imunidade dos criminosos. Demonstremos que quando o povo quer, ele pode.

Que isto não seja somente uma nuvem passageira. O povo tem o poder. O povo, se deseja, pode atuar. O povo, quando desperta, é um canto sonoro. É o eco das quebradas. É a frescura das primaveras. É o aroma dos campos semeados. É a beleza das plantações de milho. É o sorriso da infância feliz. É uma manhã e o seu orvalho. É a satisfação de fazer o que é justo. O povo, quando desperta, é uma revolução que vale a pena e a alegria de viver. O povo, quando desperta, é um vulcão em constante erupção. É uma folha de tomate macio. É uma terra fértil. É um preságio de sonhos. É poesia. O povo, quando desperta, é honra. É tempo de lutar pela nossa terra.

Para que? Para que na Guatemala NUNCA MAIS.

9 de maio de 2015

Estados Unidos

Notas de tradução

1A etnia Ixil encontra-se no norte da Guatemala. É um dos menores grupos maias que sobreviveram até os dias de hoje na região.

2Os estudantes “San Carlistas” são aqueles que pertencem à Universidad de San Carlos de Guatemala.

3José Efraín Ríos Montt é um general retirado e político que encabeçou a ditadura na Guatemala entre os anos de 1982 e 1983. Chegou ao cargo de presidente através de um golpe de Estado e o período do seu governo é considerado um dos mais duros da América Central.

4Alimento em forma circular e aplanada, para acompanhar a refeição feito com massa de milho ou de trigo. É fundamental no dia-a-dia de países da América Central, América do Sul, México, República Dominicana e Porto Rico.

Tradução de Camila Lee para o Diário Liberdade.


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