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Matheus Rodrigues Gonçalves

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Não passarão!

Por que abolicionismo penal?

Matheus Rodrigues Gonçalves - Publicado: Domingo, 22 Fevereiro 2015 02:40

Muito se tem falado, nos últimos tempos, em um suposto crescimento expressivo da violência no Brasil, ocasionado – alegam os conservadores de plantão – pela impunidade endêmica reinante no país.


Trata-se de um discurso que busca legitimar o avanço do Estado penal e o aumento do controle dos corpos da população, especialmente de sua parcela mais pobre, sem, contudo, possuir qualquer tipo de fundamento na realidade, como se verá a seguir.

De acordo com a versão preliminar do Mapa da Violência 2014, o Brasil registou, em 2012, o índice de 29 homicídios por 100 habitantes, taxa ligeiramente maior que a registrada em 2002 (28,5 homicídios por 100 mil habitantes). Entre 2003 e 2011, os índices variaram entre um mínimo de 25,2 e um máximo de 28,9. Esses dados demonstram que, nos últimos anos, os índices nacionais de homicídios, que são utilizados para medir a situação geral da violência no país, permaneceram relativamente estanques.

Por outro lado, a população carcerária brasileira explodiu nos últimos anos: de 90 mil em 1990, chegou a 239 mil em 2002 (um aumento de 165%) e a 550 mil em 2012 (crescimento de 611% em relação a 1990 e de 130% em relação a 2002), segundo dados do Departamento Penitenciário Nacional (Depen) e do Conselho Nacional de Justiça (CNJ). Em termos proporcionais, em 1990 o Brasil possuía 61 presos para cada 100 mil habitantes, 138 em 2002 e 274 em 2012.

Em 2014, a situação ficou ainda mais alarmante, e o Brasil chegou à absurda cifra de 711.463 presos (crescimento de 790% desde 1990 e de 197% desde 2002), sendo 358 presos para cada 100 mil habitantes: alcançamos a terceira colocação mundial em números absolutos de pessoas presas, perdendo apenas para os Estados Unidos, com 2,28 milhões de presos, e para a China, que possui 1,7 milhão. Além disso, no ano da Copa do Mundo no Brasil, nos tornamos campeões sul-americanos de encarceramento em termos proporcionais, ultrapassando o Uruguai, antigo detentor do posto com 289 presos por 100 mil habitantes.

Há de se ressaltar que o crescimento da população brasileira foi de cerca 13% no período compreendido entre 2002 e 2012. Enquanto isso, os índices de violência tiveram, no mesmo período, um crescimento absoluto de 13%. A população carcerária, por sua vez, cresceu espantosos 130%, dez vezes mais, entre 2002 e 2012.

Diante desses dados, é possível inferir que, a despeito do encarceramento em massa que observamos no Brasil nos últimos anos, os índices nacionais de violência se mantêm estáveis, donde se conclui que, ao contrário do que clamam os discursos conservadores, a prisão não se configura como um elemento capaz de reduzir a violência e trazer segurança para o conjunto da população. Assim fosse, seria preciso haver uma drástica redução dos índices de violência, o que não é o caso.

Essa não é uma crítica nova: conforme nos lembra Foucault, a conclusão de que a prisão não serve para “corrigir” aqueles que violam a lei é praticamente tão antiga quanto o próprio surgimento da prisão, no início do século XIX. De acordo com o filósofo francês, a prisão “não produz absolutamente nada”, mas

[...] se trata unicamente de um extraordinário truque de mágica, de um mecanismo inteiramente singular de eliminação circular: a sociedade elimina enviando para a prisão pessoas que a prisão quebra, esmaga, elimina fisicamente; uma vez quebradas essas pessoas, a prisão as eliminam libertando-as, reenviando-as à sociedade; nesta, sua vida na prisão, o tratamento que sofreram, o estado no qual saíram, tudo concorre industriosamente para que, de modo infalível, a sociedade os elimine de novo, reenviando-os para a prisão [...]. (“Sobre a Prisão de Attica”: entrevista com J. K. Simon; trad. F. Durant-Bogaert)

Nesse sentido, a prisão (e a prisão brasileira aí se insere com especial pertinência) serve não para “corrigir” ou “ressocializar” uma pessoa que tenha infringido a lei, mas, antes, para tirá-la do convívio social, quebrá-la e, quebrando-a, garantir que, uma vez posta em liberdade, ela esteja de volta à prisão em pouco tempo, o que se deve muitas vezes ao forte estigma carregado por ex-presidiários na sociedade, que os vê sempre com suspeita, mesmo que eles tenham sido mandados para a prisão com o suposto fim de serem “corrigidos”. O jurista Eugenio Raul Zaffaroni, recém-aposentado da Suprema Corte argentina, também é categórico ao classificar a pena de prisão como inflição de dor sem sentido. Zaffaroni vai além e afirma que

A seletividade, a reprodução da violência, a criação de condições para maiores condutas lesivas, a corrupção institucionalizada, a concentração de poder, a verticalização social e a destruição das relações horizontais ou comunitárias não são características conjunturais, mas estruturais do exercício de poder de todos os sistemas penais. (“Em busca das penas perdidas”, p. 15)

Há ainda outros dados que muito revelam acerca do sistema penitenciário brasileiro e das prisões de modo geral: cerca de 70% da população carcerária brasileira vai do analfabetismo ao ensino fundamental completo, e menos de 10% completou o ensino superior. Em 71,2% dos casos, os indivíduos foram incriminados por crimes patrimoniais ou tráfico de entorpecentes. Essa é uma realidade não apenas brasileira, mas dos sistemas carcerários em todo o mundo, e o seu significado é claro: a prisão, antes de ser uma ferramenta de diminuição da violência e de garantia da segurança, se configura, conforme Wacquant, como uma ferramenta de gerenciamento da miséria.

Nesse ponto é preciso que se diga: a prisão não é uma instituição reformável, visto que a necessidade de excluir em vez de ressocializar, quebrar em vez de corrigir, está no centro de sua própria concepção. A capacidade de ressocialização de que disporia a prisão nada mais é que um fraco mote para tentar acobertar a sua real utilidade. Assim, é cada vez mais imperioso repensar todo o modelo penal, no Brasil e no mundo. Enfraquecê-lo em vez de fortalecê-lo e, enfraquecendo-o, dar um poderoso golpe no próprio sistema punitivo, mais amplo e perigoso, do qual o sistema penal e as prisões são parte essencial.

É necessário, pois, sem medo, defender e lutar pelo fim das prisões e pela sua substituição por modelos alternativos de responsabilização, dos quais a responsabilização civil e a multa pecuniária são alguns exemplos. Utopia, dizem alguns. Louk Hulsman, de saudosa memória, costumava afirmar que o abolicionismo penal não é utópico, mas o sistema penal, sim. Afinal, há utopia maior do que acreditar em algum tipo de benefício trazido pelo cárcere? Defender o fim das prisões não é defender a impunidade ou a prática de crimes, mas ao contrário disso, é dar um passo rumo à plena humanidade.


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