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Fernanda Lacombe

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Memória, verdade e justiça

Porque nos incomodamos...

Fernanda Lacombe - Publicado: Sábado, 31 Mai 2014 20:56

...Mesmo como que parece insignificante.


Já faz alguns anos que o metrô do Rio de Janeiro adotou uma política de vagão exclusivo para mulheres, em horários específicos. Não irei me estender na discussão da validade da medida. Acredito que ela indicou um problema grave, mas que isolada não serve de nada. Mesmo com o pouco que ainda sei, percebo que de nada adianta proteger as mulheres do assédio e não educar os homens. Mas como foi dito, pretendo ir além dessa discussão.

Vez ou outra é possível ver um funcionário do metrô vigiando os passageiros para impedir a entrada de homens no vagão. E mesmo quando este funcionário se aproxima e pede que o cidadão se retire, é geralmente respondido com uma série de reclamações, insultos e frases do tipo " Até parece que eu vou estuprar todas elas!". Narro estes fatos como alguém que anda de metrô todos os dias, pelo menos duas vezes ao dia.

Esta semana, presenciei um outro aspecto desta situação, e ainda mais preocupante. Logo na primeira estação da Linha 2, Botafogo, entra um homem no vagão exclusivo durante o horário determinado. Antes dele, outros homens entraram, mas ou mudaram de vagão ou foram solicitados a fazê-lo pelo funcionário do metrô. Este homem em questão veio de um outro vagão, e se sentou quando o funcionário já não estava mais prestanto atenção. Despreocupadamente, abriu seu jornal e ficou lendo.

Na mesma hora, todas as mulheres do vagão se puseram a olhá-lo. Todas, jovens e maduras, brancas e negras, altas e baixas, todas. Além de trocar olhares furtivos umas com as outras. Mas nenhuma pediu que ele mudasse de lugar, nem mesmo as que estavam visivelmente contrariadas com sua presença. Em dado momento, ele levantou os olhos o jornal e olhou em volta.Não sei se não reparou no aviso na parede, ou que era o único representante do gênero masculino no vagão. E voltou a ler seu jornal

Ele continuou ali. Continuou porque mesmo que tenha visto o aviso, ninguém reclamou.Ninguém se opôs a sua presença, nem mesmo quem vos escreve. Porque no segundo em que ela ia se levantar e pedir que ele trocasse de vagão, lembrou que ele poderia ignorá-la. Que ele poderia rir da cara dela. Poderia reclamar, ser mal-educado. Poderia até comprar uma briga com ela, que provavelmente ficaria sozinha, as sete da manhã, ouvindo um homem gritando. E que nenhuma dessas hipóteses era delírio, considerando todas as reações de desprezo a regra do vagão que ela já tinha visto.

O caso desta semana me lembrou imediatamente de Sophia, transsexual que foi agredida por um imbecil após sofrer abusos físicos e verbais em um ônibus. Não estou aqui para diminuir o sofrimento dela, que foi ao mesmo tempo vítima do machismo e da transfobia.Também imagino o que a levou a protestar contra as mulheres do ônibus que não foram ajudá-la. Mas a questão é que mesmo sendo uma mulher, Sophia não foi criada como uma. Não cresceu dentro da atmosfera de medo, de vigilância constante. Claro, passou por seus próprios medos e dilemas. Mas justamente esse medo, o medo de sofrer simplesmente por ser mulher, ela não conheceu.A prova disso é que se defendeu os berros de seus agressores.

Porque, assim como eu hesitei com o intruso no vagão, todas hesitam. Hesitamos diante do colega de faculdade que é simpático demais. Hesitamos diante do professor que coloca a mão em nosso ombro. Hesitamos quando um idoso se aproxima demais no transporte público, e não sabemos se aquela mão na altura dos nossos seios é proposital ou não. Hesitamos porque nos ensinaram que somos exageradas, que vêmos pêlo em casca de ovo, que nosso short curto é o culpado. Pior:conhecemos o potencial de agressor em cada homem, mesmo aqueles que confiamos.

É por ver nossas mães, avós, irmãs e amigas hesitarem tanto, que decidmos não hesitar mais. Decidimos que vamos lutar por todas elas, por todas nós. 

E é por isso que nos incomoda o rapaz pacato no vagão exclusivo.


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