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Gustavo Henrique Lopes Machado

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Alétheia

Egito, Ucrânia, Síria, Líbia: revolução? Afinal, que é uma revolução?

Gustavo Henrique Lopes Machado - Publicado: Terça, 06 Mai 2014 19:55

Para os marxistas uma teoria é um guia para a ação, para intervenção nos movimentos em que se faz presente a classe trabalhadora e seus aliados tendo em vista sua unidade, mobilização e a permanente disputa de suas consciências no sentido de uma revolução social.


No extremo oposto, os sectários e acadêmicos tomam a teoria com fins puramente sociológicos, ou seja, enquadrar os diversos processos sociais neste ou naquele conceito dado de antemão, para a partir daí, de sua tribuna professoral, julgá-los como justos ou injustos, corretos ou errados, progressivos ou regressivos, revolucionários ou não revolucionários conforme se ajustem mais ou menos aos seus esquemas pré-fabricados. É desta maneira que se desenrola o “saber” acadêmico, esta fábrica de conceitos e métodos, cuja mania é classificar e enquadrar os fenômenos aos seus diversos arquétipos conceituais dados aprioristicamente. No lugar de adequar o conceito à realidade, expurgam desta os aspectos indesejáveis, e adéquam a realidade ao conceito. Os indivíduos e organizações sectárias se comportam de maneira análoga. Antes de considerar uma dada elaboração como uma orientação para intervenção na realidade, viram as costas para esta quando não se conformam aos seus dogmas. Assim, uns e outros, colocando-se como sábios, contemplam de cima os diversos acontecimentos históricos, sem maior consideração pela consciência da multidão que segue seu curso, e prosseguem com seus discursos sem se preocupar se estes serão seguidos.

Não parece casual que diversos acadêmicos e sectários tenham posições coincidentes com relação aos recentes processos revolucionários mundo afora, como aqueles do mundo árabe, Ucrânia e Síria. Insatisfeitos com os rumos destes processos, com as bandeiras mais imediatas de seus agentes, com a não coincidência em relação aos processos revolucionários do passado solucionam a questão pela mera invocação de uma frase: não é uma revolução. Como pretendemos demonstrar, não avaliam o processo pela sua natureza social, mas pelos seus resultados políticos.

Ora, um processo revolucionário não é dado por um critério teórico, mas é a mera constatação de que as massas se jogaram na via insurrecional, se jogaram na via da ação e das mobilizações diretas contra o poder constituído. Em suma, o que caracteriza uma revolução é o fato das massas, antes inertes, se colocarem em movimento. Mas as coisas não estão dadas de antemão, um processo revolucionário pode terminar com a mera derrubada de um governo ou de um regime mantendo intacta a forma de dominação capitalista. Daí vem a necessidade de uma direção revolucionária para disputar as consciências e o rumo do processo. Evidentemente, na ausência de uma alternativa revolucionária e quando as massas estão apegadas a ilusões e ideologias diversas nada impede que um processo revolucionário termine em uma contrarrevolução ou culminem em líderes bonapartistas ou reformistas que apareçam e se façam reconhecer como os salvadores da pátria. Ora, julgar uma revolução pela presença ou não de uma direção revolucionária é fazer uma análise puramente subjetiva da realidade, é dizer: apoiamos um movimento de massas desde que gostemos de suas direções.

Esta questão foi desenvolvida de maneira lúcida e transparente em diversas obras de Léon Trotsky. Em seu livro História da revolução russa dirá que “a característica mais indubitável de uma revolução é a interferência direta das massas nos eventos históricos” e a “história de uma revolução é para nós, antes de tudo, a história da entrada violenta das massas no domínio de decisão de seu próprio destino” (TROTSKY, 2007, p. 9). Ora, não é isto que se passa ou se passou recentemente no Egito, Ucrânia, Líbia, Síria? Mas muitos pretensos marxistas não estão satisfeitos porque nos casos em questão as massas não defendem o programa da revolução socialista, porque as direções mais expressivas são por vezes reacionárias, porque não se constituíram soviets como na revolução russa de 1917. Mas, logo em seguida, Trotsky dirá que “as massas entram na revolução não com um plano preparado de reconstrução social, mas com um agudo sentimento de não poderem mais suportar o velho regime” (TROTSKY, 2007, p. 10). Como se vê, a multidão não se joga na via revolucionária por escolha ou por concepções ideológicas de qualquer tipo, mas quando não é mais possível tolerar as condições de vida dadas anteriormente.

A mera presença da contrarrevolução nestes processos é a evidência contundente de que existe uma revolução em curso, afinal, somente ali onde existe um processo revolucionário pode existir uma contrarrevolução. Pensar uma contrarrevolução que se desenvolva em um cenário não revolucionário é como pensar em um carro circulando na contramão em um campo aberto em que não exista uma direção autorizada para o fluxo de veículos. Em suma, um absurdo nos termos. Como dizia Marx em seus artigos sobre as revoluções de 1848: “o terreno contrarrevolucionário é revolucionário” (MARX, 2010, p. 318).

Em seu livro, “Aonde vai a França?” Trotsky dirá que “em todos os períodos revolucionários da história é possível encontrar duas etapas sucessivas, estreitamente ligadas uma à outra: primeiro, há um movimento “espontâneo” das massas, que toma o adversário de surpresa e arranca dele sérias concessões, ou pelo menos promessas; depois disso, as classes dominantes, sentindo ameaçadas as bases de sua dominação, prepara a revanche. As massas semivitoriosas manifestam impaciência. Os chefes tradicionais de “esquerda”, apanhados de surpresa pelo movimento, da mesma forma que os adversários, esperam salvar a situação com a ajuda da eloquência conciliadora e, ao fim das contas, perdem sua influência. As massas entram na nova luta quase sem direção, sem programa claro e sem compreensão das dificuldades próximas” (TROTSKY, 1994, p. 157). Ora, a confusão na mente das massas quando de um levante é uma regra sem exceção em toda histórica contemporânea. É dever das organizações revolucionárias intervir e disputar o seu programa em meio ao processo, possibilitar que as massas extraiam as conclusões corretas das experiências em curso, jamais virar as costas para o movimento por não gostar de suas bandeiras mais imediatas, por não gostar das conquistas até então adquiridas, por não gostar de suas direções tradicionais. O exemplo francês comentado por Trotsky no caso acima é exemplar. O revolucionário russo não deposita nenhuma expectativa nas direções do proletariado em questão (PCF e SFIO), sabe que se uma nova direção não for forjada no curso dos eventos dificilmente o processo francês irá desembocar em uma revolução social vitoriosa, mas tão logo se desencadeou em meados de 1936 uma greve geral contra a Frente Popular proclamará: “a revolução francesa começou (...) as palavras “revolução francesa” podem parecer exageradas. Mas não! Não é exagero. É precisamente assim que nasce a revolução. Em geral, não podem fazer de outra maneira. A revolução começou” (TROTSKY, 1994, p. 147). Sabemos o que dizia o partido comunista nesta altura do campeonato: a situação não é revolucionária.

Como se vê, Trotsky não faz uma análise subjetiva do processo. Uma revolução é um processo objetivo e não depende de considerações teóricas de qualquer tipo. Uma teoria que sirva meramente para classificar a posteriori este ou aquele levante como uma revolução não serve absolutamente para nada. Com isto, sob nenhuma hipótese, queremos reduzir o papel da elaboração teórica em um processo revolucionário, tampouco dos processos históricos precedentes. Mas esta teorização deve servir de orientação para as ações futuras, deve servir para nortear a compreensão e intervenção nos processos que se desenrolam no presente. Como dirá Marx: “a teoria também se torna força material quando se apodera das massas” (MARX, 2010, p.151).

Mas como nada é absolutamente novo na história, sabemos que a França possuía também suas seitas e porta vozes sectários. No mesmo livro, Trotsky comenta que “na França há muito senhores [...] que vivem em grupos e seitas, trocando entre quatro paredes suas impressões sobre os acontecimentos e pensando que não chegou o momento de sua esclarecida participação. “Ainda é muito cedo.” E quando La Rocque [fascismo] chegar, dirão “Agora é muito tarde.” Os argumentadores estéreis desse tipo são numerosos [...] Seria o maior dos crimes perder um só minuto que seja com esse público. Que os mortos enterrem seus mortos!” (TROTSKY, 1994, p. 144).

Neste sentido, o que diferenciou a revolução russa das demais revoluções abortadas foi o fato de existir o bolchevismo. A revolução de fevereiro, que derrubou o czarismo, colocou em seu lugar um Príncipe! O príncipe Lvov, juntamente com os liberais cadetes, elevados aos principais ministérios. A primeira medida deste governo provisório foi a negociação com os aliados e a manutenção da Rússia na guerra imperialista. Por isto, o marxista argentino Nahuel Moreno corretamente salienta que a maioria das revoluções do século XX foram revoluções do tipo fevereiro e não revoluções do tipo outubro, ou mais precisamente, revoluções políticas, e não revoluções sociais. Esta constatação não está a relativizar a noção de revolução, nem está revisando a teoria da revolução permanente de Trotsky, como sugere algumas organizações, mas fazendo uma constatação histórica evidente e inquestionável: a enorme maioria dos processos revolucionários do século XX não se elevaram até a destruição do capitalismo e da sua forma jurídica, a propriedade privada, mas terminaram na mera substituição dos governos e das formas de governo. Quando muito, não foram além de revindicações democráticas e nacionais. Compreender estes aspectos da histórica das revoluções do século XX é fundamental. Pois eles explicitam que uma revolução social não é algo automático e mecânico, antes, depende da nossa intervenção consciente no fluxo dos acontecimentos. Por isto, quando Trotsky diz que “as revoluções são impossíveis até que se tornem inevitáveis” não insinua que o socialismo é inevitável, que o capitalismo terminará necessariamente na revolução socialista mundial. Se assim fosse, não precisaríamos de qualquer tipo de atuação consciente ou organização, seria suficiente ir para casa, fazermos nossas preces e aguardarmos o dia do juízo final. O processo revolucionário produzido objetivamente pelas mazelas e pelas contradições objetivas inexoravelmente alimentadas dia a dia pelo capital é que são inevitáveis. Cabe aos indivíduos e organizações conscientes na necessidade de uma revolução social intervirem em meio ao processo para que este não termine na mera substituição dos agentes governamentais, para que este não termine na mera substituição de um regime político, mas na tomada do poder pela classe trabalhadora, na supressão da propriedade privada e do capital.

Assim, o papel dos marxistas não consiste em avaliar externamente os processos e julgá-los conforme suas expectativas ou um arcabouço conceitual dado de antemão, mas intervir e disputar o rumo dos processos revolucionários contra todos aqueles que querem detê-lo, seja com discursos conciliadores, seja com concessões parciais, seja com repressão. É precisamente a ausência de um grande número de indivíduos organizados - com consciência da necessidade de uma revolução social - nos processos revolucionários atualmente em curso que afirma e reafirma o diagnóstico realizado por Trotsky há mais de 70 anos: “a crise histórica da humanidade reduz-se à crise da direção revolucionária” (TROTSKY, 1979, p. 74) . Estas palavras não servem para afagar o ego, não servem para tranquilizar a consciência daqueles pouco dispostos em abandonar prioridades centradas em sua vida privada. O diagnóstico de Trotsky é um chamado à ação, um chamado à uma vida dedicada a intervenção organizada tendo em vista a destruição desta forma de organização social. O futuro da humanidade depende da superação da crise da direção revolucionária, isto é, que possamos abandonar toda passividade e construir alternativas influentes, não para substituir a ação das massas trabalhadoras, mas para convencê-las a não deter o processo revolucionário com as ilusões produzidas por conquistas parciais ou transformações de natureza meramente política. Uma alternativa revolucionária com capacidade de disputar e vencer aquelas que procuram deter a revolução com promessas, reformas e engôdos de todo tipo. Esta é a tarefa e o grande desafio colocado para os marxistas em nossa época histórica.

TROTSKY, L. A história da Revolução Russa. São Paulo: Editora Sundermann, 2007.

________. Aonde vai a França? São Paulo: Desafio, 1994.

LÊNIN, V; TROTSKY, L. A questão do programa. São Paulo, SP. Editora Kairós, 1979.

MARX, K. A burguesia e a contrarrevolução, in: Nova Gazeta Renana. São Paulo: Educ, 2010.

________. Crítica da Filosofia do Direito de Hegel . 2.ed., revista, São Paulo: Boitempo, 2010.


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