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Samuel Alves

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Calefação política

Farsa: A Globo e sua nota sobre o apoio ‘editorial’ ao golpe de 64

Samuel Alves - Publicado: Sábado, 07 Setembro 2013 21:46

Circula na internet um texto publicado pelas Organizações Globo em 31 de agosto de 2013 (http://oglobo.globo.com/pais/apoio-editorial-ao-golpe-de-64-foi-um-erro-9771604) cujo título – “Apoio editorial ao golpe de 64 foi um erro” – dá a impressão de que o leitor teria diante de si uma crítica tanto ao regime militar como aos conteúdos concretos veiculados sistematicamente nos editoriais daquele jornal em apoio ao regime, algo que conformasse uma espécie de retratação ou pedido de desculpas. O engano não é um detalhe: trata-se precisamente do contrário!


Para bem analisar essa que é uma publicação tão lamentável quanto o famoso editorial do dia 02 de abril de 1964 (“Ressurge a democracia”...) cabe começar questionando o tremendo eufemismo que consiste adjetivar o apoio dado ao golpe, e ao que a ele se sucedeu, com o termo “editorial”. Ora essa... As Organizações Globo vêm mais uma vez tratar todos os brasileiros como idiotas e dizer que o apoio que deu ao regime militar se limitou ao conteúdo de seus “editoriais”? Quem em sã consciência pode admitir tamanha infâmia? Dezenas de páginas se seguem aos editoriais. Por acaso o assassínio de opositores foi denunciado nas páginas do jornal? Seus colunistas de economia acusaram o arrocho salarial? As páginas de meio ambiente denunciaram a devastação da Amazônia? Alguma matéria sobre direitos humanos mostrou o genocídio indígena organizado pelo regime, ou o genocídio da população pobre das favelas de nossas capitais a partir da criação das polícias militares? A corrupção sem precedentes em todos os órgãos administrativos daqueles governos (com destaque para as superintendências de desenvolvimento) foi escancarada nas suas primeiras páginas? Ou talvez as inúmeras intervenções nas universidades alguma vez tenham sido devidamente tratadas como uma imperdoável violação ao princípio de livre-pensamento, indispensável para a própria atividade acadêmica? Não! É mais do que sabido que o apoio de O Globo ao golpe foi irrestrito, envolvendo a articulação sistemática e premeditada de todo o conteúdo veiculado em suas páginas!

Mas, antes disso, devemos lembrar que uma rápida leitura das matérias de destaque do jornal O Globo durante todo o governo Jango permite tranquilamente classificá-las de golpistas. E, ademais, é preciso chamar a atenção para o avassalador crescimento econômico das Organizações Globo durante o regime militar. Afinal, esse apoio, que agora chamam de “editorial”, não foi jamais gratuito. O alinhamento ideológico de seu proprietário com os generais jamais dispensou os muitos favorecimentos econômicos que, além de enriquecê-lo ainda mais, permitiu às Organizações Globo ocuparem o poderosíssimo lugar midiático em que estão desde os anos de 1970.

Entretanto, o que mais ofende no texto em questão é que ele, muito ao contrário de apontar o erro, trata de afirmar que não foi um erro! Qualquer leitor sereno chegará a essa conclusão. Não se trata apenas de uma justificativa! Isso se daria se o texto fosse capaz de mostrar que a leitura que O Globo fez dos eventos estava errada já naquele momento, e sublinhar os fatos contrários ao golpe que foram ignorados pelo jornal. Não, não se trata disso! O objetivo do texto é, muito antes, dar uma mensagem para os milhares de jovens que acusaram nas manifestações de junho deste ano as relações da Globo com os militares. E o conteúdo da mensagem que pode ser extraída do texto é somente um: o golpe foi necessário (talvez, com boa vontade, um “mal necessário”), e O Globo tinha razões para apoiá-lo.

Ao contrário de uma retratação desinteressada, estamos falando de algo escrito com o objetivo claro de atuar no contexto político atual. O parágrafo introdutório, que justifica o porquê da “retratação” vir tão tardiamente, não poderia ser mais patético e, a um só tempo, revelador: “Porque as ruas nos deram ainda mais certeza de que a avaliação que se fazia internamente era correta e que o reconhecimento do erro, necessário.” Deixemos de lado a incorreção de estilo. O que interessa é colocar as manifestações de junho ao lado de tantos outros episódios e revelações (e falo precisamente do que esteja relacionado ao golpe) e indagar sobre “o que mais era necessário”(?) e apareceu apenas agora. Poderíamos citar a multiplicação, a cada nova investigação, das cifras de mortos e desaparecidos, mas o desprezo e indiferença das Organizações Globo por todos aqueles que tombaram lutando contra a ditadura é fato conhecido. Nem todo o conteúdo mais regressivo e abominável do golpe e do regime que ele instaurou, bem como as consequências nefastas que sentimos ainda hoje foram motivo suficiente para uma retratação. E a resposta para essa indagação é sugerida pelo próprio texto na medida em que ele não aponta (salvo com uma exceção da qual trataremos adiante) as atrocidades do regime. O que se passou de novo em junho foi uma agitação política popular que pode (tomara!) ter iniciado um período de reorganização das forças políticas no Brasil, no qual mudanças muito mais profundas das que o governo PT reivindica ter feito serão exigidas. E para poder continuar atuando sobre a consciência desses novos “atores políticos” na mesma direção em que sempre atuou, como instrumento de manipulação em prol dos interesses de um setor das elites econômicas, O Globo precisa dizer que o apoio dado ao golpe militar foi um erro, mas é uma página virada, e que o jornal, bem como o conjunto da organização da qual faz parte, é, mais do que nunca, defensor da democracia, agora chamada de um “valor universal”.

Mas, antes de tratar desse desfecho, bem como mostrarmos qual o seu significado político no contexto atual, cabe analisar alguns momentos do conjunto do texto.

Comecemos logo por uma das passagens mais patéticas desse vômito literário, aquela que trata de enaltecer a figura de um dos maiores canalhas da nossa história, precisamente o dono-fundador e diretor das organizações Globo até a sua morte (demasiadamente tardia), Roberto Marinho. Este aparece como uma espécie de herói, defensor por toda a vida da “legalidade”, que teria apoiado o conteúdo “revolucionário” ou “democrático” (sic) do golpe, mas que “corajosamente” enfrentara “aqueles que pretenderam assumir a autoria do processo revolucionário”. Não obstante, notem que um escorregão cumpre o papel de dizer talvez a única verdade do texto: Roberto Marinho tinha pleno conhecimento das práticas de tortura e assassinatos no regime militar, e por isso “São muitos e conhecidos os depoimentos que dão conta de que ele fazia questão de acompanhar funcionários de O GLOBO chamados a depor: acompanhava-os pessoalmente para evitar que desaparecessem.” Não só tinha conhecimento, como utilizava seu poder e influência junto ao regime para evitar que alguns sofressem o que era o modus operandi da repressão, que, aliás, não tinha nada de “legal”. Embora o AI-5 tivesse suspendido o habeas corpus, não autorizava os tão praticados crimes de lesa-humanidade, cujos psicopatas autores continuam soltos graças à aberração jurídica da “lei da anistia”, que, aliás, viola o direito internacional. Qual vez o campeão do legalismo ousou acusar as violações legais em que consistiam os desaparecimentos dos quais tinha plena ciência, segundo o próprio texto de O Globo?

O lugar sagrado em que tenta colocar Roberto Marinho é mais uma vez contradito no início do longo ataque ao governo Jango. O dono do jornal O Globo sempre fora um defensor da lei, da constituição etc., mas parece que cabe exclusivamente a ele escolher quais leis devem ser defendidas, e quando elas devem ser descartadas, o que para bom entendedor qualifica um caráter justamente oposto ao afirmado. É por isso que, segundo o texto, os militares estavam corretos em impor a João Goulart o parlamentarismo, e o plebiscito que restabeleceu o presidencialismo no Brasil soou no decorrer da leitura como o único verdadeiro golpe praticado no Brasil desde o Estado Novo...

As considerações que se seguem sobre o contexto político em 63-64 só poderiam ser profundamente refutadas numa análise demasiada extensa para os objetivos aqui propostos. Cabe chamar a atenção para algumas das manipulações e distorções de fatos (prática tão familiar a O Globo...). Em primeiro lugar, as repetidas menções a militares próximos a Jango, como se isso configurasse uma conspiração golpista (que foi ao final frustrada pelo... golpe!), ao contrário de algo plenamente normal, já que o comando das forças armadas é uma parte do governo, e deveria responder ao Presidente. Em segundo, a vaga afirmação de “ameaças a atropelar o Congresso e a Justiça” para que as reformas de base fossem feitas, onde não é esclarecido o conteúdo nem das reformas, nem das ameaças. E ainda a tentativa de convencer o leitor de que a “revolução de 64” foi uma exigência do povo.

...

(pausa para o vômito...)

Como dizíamos então, a Globo segue produzindo, sob o nome de história, um esvaziamento da história. É preciso estudar aquele período com dedicação, para lograr desconstruir todo o falseamento acerca do mesmo que a Ditadura, com a dedicada ajuda das organizações Globo, produziu e que, impressionantemente, dá o tom da discussão ainda hoje. Para mencionar rapidamente um elemento central do contexto em questão, que assusta tanto nossas elites ainda hoje, que precisa ser escondido, aquele foi o único momento em nossa história em que pareceu possível a realização de uma reforma agrária ampla e profunda, condição primeira e imprescindível (ao meu modo de ver) para qualquer mudança social verdadeira e duradoura no Brasil.

E é preciso dizer sem meias palavras que a Globo se dedica acima de tudo a zelar para que isso – “uma mudança social verdadeira e duradoura” – jamais aconteça no Brasil! E é somente tendo isso em mente que se pode entender o porquê da afirmação da “democracia como um valor absoluto”. Afinal, por acaso o conteúdo de “democracia” é uníssono? Qual foi o uso do termo “democracia” nas “coberturas jornalísticas” que a Rede Globo empreendeu sobre as manifestações de junho senão o de uma mensagem contra a tentativa de promover qualquer mudança?!

O significado “global” de democracia é muito claro: nos dias de hoje só é eleito quem gastar verdadeiras fortunas em campanhas publicitárias nas eleições. Estas, além de engordarem os cofres da própria Globo, só são viabilizadas pelas doações de grandes empresas, que, naturalmente, exigem o comprometimento dos candidatos de que nada vá mudar profundamente.

Quem respeita a “democracia” até pode então ir pra rua protestar, desde que respeite os padrões estéticos, os horários razoáveis, as normas dos bons costumes etc. Vale expressar a sua indignação em cartazes. Mas não arremessando pedras. Afinal, os vidros que serão quebrados valem muito mais do que as vidas que são tomadas diariamente nas periferias e no campo, mas que nunca vão ao ar porque não dão audiência. Até vale fazer a popularidade da presidente cair. Aliás, isso é até bom, porque assim o governo vai ter que aumentar ainda mais as verbas de publicidade. Mas o fundamental para que se entenda o que é democracia reside precisamente nisso: depois do protesto, o bom cidadão volta para casa e espera até as próximas eleições para ver se aparece algum candidato prometendo fazer aquilo que ele pediu no seu cartaz.

O texto publicado pelo jornal O Globo é, acima de tudo, parte de uma estratégia discursiva que visa combater quaisquer tentativas de impulsionar mudanças no Brasil fora do estéril terreno eleitoral, o que só é enfim possível dando à palavra “democracia” um sentido superficial, impreciso, vazio.

Ao contrário de todo esse falatório pueril, acima de tudo eu questiono: pode verdadeiramente existir uma democracia política num país que tem uma das estruturas econômicas mais antidemocráticas do mundo?


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