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Flávio Aguiar

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Carta Maior

Os amigos imaginários

Flávio Aguiar - Publicado: Sexta, 21 Setembro 2012 00:03

Já tratei aqui dos falsos amigos – nas palavras e nos objetos, no caso, um mero – prosaico ou poético – cartão de visitas.


Hoje quero tratar de amigos tão completamente falsos que passam a ser quase verdadeiros. Refiro-me a “amigos imaginários”, aqueles que, sejam objetos ou palavras, criam “verdades”, “tradições”, “origens”, que passam a ser indiscutíveis. São “cortinas de fumaça”, nem sempre necessariamente negativas, que detém as perguntas com a certeza de sua presença.

Veja-se o exemplo do traje considerado o mais gaúcho de todos, a bombacha. Sua presença é identificada com a presença do campeiro pampiano desde sempre, perdidos ambos na noite dos tempos.

Pois é, mas a bombacha se popularizou mesmo da campanha gaúcha somente depois da Guerra do Paraguai, como um traje propício às lides de montaria e gado. Embora houvesse o costume do uso de calças largas na Maragateria, na Espanha, de onde vieram muitos ascendentes dos “gáuchos” nossos vizinhos, e na Ilha da Madeira, as bombachas começaram sua invasão comercial no Rio Grande do Sul trazidas pelos ingleses, com os excedentes (segundo alguns) da Guerra da Criméia, de uma ampla coligação liderada por Londres contra os russos, terminada em 1856. Foi-se a guerra, ficaram as bombachas que os súditos de S. M. vendiam, sobretudo,  para o exército do Império Otomano.

Ou seja, não há desdouro em afirmar que a peça de vestuário que mais identifica o nosso “monarca dos pampas” pode ser, no fim de contas, uma sobra de guerra em sua origem. Afinal as célebres “camisas vermelhas” da legendária Legião Italiana, que lutou com Garibaldi no Uruguai e depois na campanha pela unificação da Itália, eram, na origem, túnicas dessa cor para uso em matadouros. Os ingleses iriam vende-las aos “saladeros” argentinos, mas foram bloqueados em Montevidéu pelo conflito no Rio da Prata. Já o governo da futura capital uruguaia precisave de roupas baratas para vestir os italianos que por ele lutavam. Daí à formação da legenda só foram necessários alguns anos de luta, um grande condottieri, ou caudilho, e um escritor também legendário que importalizou tudo ao copidescar e editar as Memórias de Garibaldi: Alexandre Dumas, Pai.

Mas falemos de coisas mais prosaicas. Dois produtos culinários que, no Brasil, quase invariavelmente (hoje menos, mas a tradição continua) são associados a uma tradição original alemã, são a chimia e a cuca. A chimia é uma geleia mais pastosa, não tão firme, mas em transição para a goiabada, a marmelada, a pessegada etc., sem jamais chegar lá. Fica-se no ponto em que pode passá-la no pão. Antigamente, geleia a gente comprava pronta, no armazém. Chimia, a vó fazia em casa, no tacho sobre o fogão a lenha. Claro está que o hábito tinha raiz, e a palavra também, nas colônias alemãs. Mas tinha quase nada a ver com a Alemanha, a não ser a semelhança com o substantivo feminino “Schmiere”, que quer dizer graxa, mais usada no carro do que no pão, e o verbo “schmieren”, que quer dizer untar, lubrificar, borrar, e até sujar. Não há “chimias” no mundo germânico, embora haja, é claro, “Marmelade” de tudo quanto é fruta, inclusive de marmelo, aqui chamado “Quitte”. Tratou-se de um deslizamento de palavras, mas que nobilitou a prática caseira comum a várias culturas, de produzir pastas doces no fogão, com uma pertinaz ascendência teutônica, ainda que mais ancorada, nas formas produzidas no Brasil, nas margens de rios como o Taquari do que propriamente nas do Reno ou Elba.

Tal deslizamento ocorreu também com a hoje popular e brasileríssima cuca. Também não há cucas na Alemanha. A palavra pode ter derivado de “Kuchen”, que significa tanto bolo quanto torta.  Em algumas regiões alemãs, próximas da fronteira com a França, serve-se um “Streuselkuchens”, uma mistura de açúcar, farinha e manteiga, acompanhando bolo ou torta. Mas isso de bolos recobertos por frutas – particularmente a banana – é brasileiríssimo demais, nascido, é claro, entre imigrantes desejosos de aproveitar os frutos da terra. Mas isso, por assim dizer, na visão de muitos “achataria” a cuca, sonegando-lhe alguns acordes wagnerianos que poderiam edulcorar a sua origem.

O mesmo se deu e ainda se dá com o popularíssimo galeto – agora atravessando os Alpes em direção à Itália. Não há galetos, nem al primo nem al segundo canto, nas terras de Dante, Petrarca, Gramsci, Berlusconi e tantos outros. A não ser, takvez, por importação de um hábito brasileiro. Mas dizer que o galeto veio da Itália para o Brasil dá mais cacife ao prato. Ao contrário da pizza, que de fato nasceu na Itália, embora fruto do encontro entre o hábito de por molho cozido diretamente em cima do pão medieval, a massa fina importada da China e o tomate importado da América, o galeto nasceu exclusivamente entre os imigrantes italianos no Rio Grande do Sul. Nos anos 50 surgiu a primeira galeteria, em Caxias do Sul.

Por que nasceu o galeto? Porque os imigrantes italianos trouxeram da Itália, isso sim, o hábito da passarinhada assada  no espeto. Porém a partir dos anos 30 as passarinhadas começaram a ser proibidas (mais uma do dr. Getúlio!) no Brasil em nome da proteção à fauna, e os imigrantes e descendentes, aferrados a seus hábitos, deram de substituir os passarinhos por galetos de meio quilo, antes de completarem um mês de idade. Daí ao encontro com as carnes de rês  churrasqueadas sob a forma de imponentes costelas e vazios (picanha era coisa de rico), foi um pequeno passo, ou voo. Embora o galeto tenha preservado seu próprio espaço, com salada de radite e polenta cozida, frita ou grelhada.

Parafraseando o que  se  diz na Bíblia a propósito de moedas e corações, à Europa o que é da Europa. Mas ao Brasil o que é do Brasil. 

Fonte: Boitempo Editorial.


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