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130314 sudao do sulSudão - Le Monde Diplomatique - [Jean-Baptiste Gallopin] Uma feroz guerra civil eclodiu no fim de 2013 no Sudão do Sul. Opondo partidários do presidente Salva Kiir aos do ex-vice-presidente Riek Machar, ela ameaça a estabilidade regional. Enquanto isso, do outro lado da fronteira, o Exército sudanês, lutando com grupos rebeldes, provoca deslocamentos maciços da população.


Numa manhã de maio de 2012, a vila de Gabanit, ao pé das colinas de Ingessana, no estado sudanês do Nilo Azul, está prestes a sofrer uma ofensiva do Exército. É um Antonov que inicia o ataque. Voando em grande altitude, o avião cargueiro lança diversas bombas artesanais – barris cheios de explosivos e pedaços de metal, que se espalham com a explosão. Depois é a vez da artilharia, que arrasa indistintamente a vila e as colinas vizinhas, onde estão refugiados os rebeldes do Movimento/Exército Popular de Libertação do Sudão do Norte (Sudan People’s Liberation Movement/Army – North, SPLM/A-N). Os civis fogem em pânico, enquanto a infantaria invade a vila, atirando sem avisar. Os mais lentos e os mais fracos são mortos ou queimados vivos, com o Exército incendiando suas casas. Sete meses depois, da aldeia só resta a escola, transformada em base militar. Até a mesquita está em ruínas.

Vila após vila, a história se repete durante a estação seca, seguindo uma política de terra arrasada que varre a população das colinas de Ingessana. Awedallah Hassan, de 28 anos, sobreviveu ao ataque contra a vila de Khor Jidad. Agora ele faz parte dos cerca de 120 mil sudaneses do Nilo Azul que encontraram asilo nos campos de refugiados de Maban, no Sudão do Sul, país nascido em julho de 2011. Protegido do sol e das tempestades de areia por uma tenda de galhos e lona, Hassan fala com voz calma, sem emoção aparente: “Os soldados vieram com seis caminhões e vinte Land Cruisers. Levaram todos os animais que tinham sobrado na vila e queimaram o resto”.

A guerra no Nilo Azul, que há mais de três anos assola a região, corre o risco de cair no esquecimento. Assim como no Kordofan do Sul, próximo dali, nela se enfrentam as forças do governo e os rebeldes do SPLM/A-N, aliados históricos do partido no poder no Sudão do Sul. O conflito começou em junho de 2011, quando o Sudão do Sul preparava sua secessão.1 Então as autoridades de Cartum deram um ultimato, exigindo que Juba – capital do futuro país – deslocasse para o sul suas forças militares ainda presentes no Kordofan do Sul e no Nilo Azul, dois estados federados do norte. Poucos dias depois, o Exército sudanês tentou desarmar os membros do SPLM/A-N no Kordofan do Sul, desencadeando uma nova guerra civil.

Os rebeldes fazem a lei

Menos de três meses depois, a guerra se estendeu para o Nilo Azul. À mercê das contingências da história, os membros do SPLM/A-N que ficaram ao norte da nova fronteira internacional entre o Sudão do Norte e o Sudão do Sul separaram-se formalmente de Juba e passaram a constituir outro grupo rebelde sudanês. Desde então, os rebeldes do Kordofan do Sul conseguiram tomar grandes porções de território. Mas os do Nilo Azul, menos preparados, tiveram grandes problemas. Depois de perderem rapidamente a cidade estratégica de Kurmuk e as colinas de Ingessana, eles controlam apenas uma porção do Nilo Azul, perto da fronteira com o Sudão do Sul.

Uma viagem do Sudão do Sul em direção às áreas rebeldes do Nilo Azul exibe uma paisagem desolada. Passada a fronteira invisível, acácias e matas se sucedem ao longo da pista. Além de alguns campos de rebeldes e jovens de uniforme caminhando ao longo da estrada, a vida humana é rara e discreta. No trajeto entre o posto de fronteira de Guffa e a vila de Samari, mais ao norte, uma escola mostra os vestígios de um bombardeio de Antonov. As aulas por ali pararam há muito tempo. No interior, nas paredes, desenhos de crianças refletem o trauma da guerra: dois homens abrindo fogo contra um civil; num helicóptero, um corpo decapitado.

Sob os voos e bombardeios quase cotidianos da aviação de Cartum, as pessoas foram procurar abrigo na savana. Debaixo das árvores, longe das estradas, os deslocados sobrevivem graças a algumas rações do Alto Comissariado das Nações Unidas para Refugiados (Acnur), que são contrabandeadas dos campos. Em sinal de desespero, muitos empunham o gop, raiz venenosa que são obrigados a comer depois de cozê-la por um dia todo, para torná-la inofensiva.

Cartum recusa às organizações humanitárias qualquer acesso às áreas rebeldes, provocando um êxodo e o colapso dos parcos serviços que existiam ali. Mais uma escola, mais um posto de saúde deixam de funcionar no Nilo Azul, apesar das dezenas de milhares de civis que ainda estão lá. Os mais fracos sofrem as consequências de maneira desproporcional: deficientes e idosos, que precisam ser abandonados; os muito fracos, que morrem de fome ou cansaço a caminho dos campos; as crianças feridas em bombardeios, que morrem nos braços dos pais antes que possam receber cuidados.

Alguns dias depois, longe dos microfones, os agentes humanitários que ajudam refugiados nos campos do Sudão do Sul compartilharam conosco seus dilemas. Apenas algumas dezenas de quilômetros os separam dos deslocados carentes que ficaram no Nilo Azul. Mas a fronteira se impõe às associações. Quem quer correr o risco de sofrer represálias de Cartum e virar alvo de Antonov? O Kordofan do Sul conta com a assistência de algumas ONGs dispostas a se arriscar na travessia a partir do Sudão do Sul; mas o Nilo Azul, esquecido pelas câmeras, não tem essa sorte.

O bloqueio da ajuda humanitária sugere que Cartum pretende usar a fome e o terror para deslocar as populações das áreas controladas pelos rebeldes – estratégia já empregada em Darfur e nas áreas de fronteira com o sul durante a Segunda Guerra Civil Sudanesa (1983-2005). Diante disso, os rebeldes se organizam, recorrendo à fonte de recursos humanos e materiais mais acessível: os campos de refugiados. Sem profundidade estratégica no Nilo Azul, eles fizeram de Maban uma retaguarda estratégica. Na cidade de Bunj, perto dos acampamentos, grupos de jovens, armados ou não, vão e vêm das picapes brancas cobertas de lama – uma camuflagem improvisada contra os Antonov. Ali os rebeldes geram sua logística, aproveitando rotas comerciais informais que ligam Maban e a Etiópia em Yabus, cidade do sul do Nilo Azul e base principal do SPLM/A-N.

Nos campos, sua hegemonia sobre os refugiados é palpável. Malik Agar, presidente do movimento, organiza mensalmente reuniões nas quais os chefes locais são encorajados a fornecer combatentes. Inicialmente voluntário, esse recrutamento tornou-se forçado em novembro de 2012. Os “desertores” e aqueles que se recusam a servir, tendo sido designados por seu xeque para engajar-se no combate, são levados à noite por homens armados. Todo mês caminhões entram nos campos para coletar uma “taxa” revolucionária em alimentos e dinheiro. Os funcionários do Acnur que tentaram documentar esses atos sofreram ameaças, e são raros os refugiados dispostos a falar abertamente sobre isso com estrangeiros.

Mas, enquanto os civis pagam um preço alto, a questão das batalhas parece pouca coisa diante da desintegração generalizada que atinge tanto o Sudão do Norte como o do Sul. A curto prazo, os rebeldes têm pouca esperança de retomar o controle de Kurmuk, seu bastião histórico no Nilo Azul. O governo, por sua vez, limita seus esforços militares no estado para concentrar-se na frente do Kordofan. O SPLM/A-N, aliado desde 2011 das três principais facções rebeldes de Darfur sob o nome de Frente Revolucionária do Sudão (FRS), estende gradualmente para lá sua guerra de desgaste, que atinge assim o Kordofan do Norte, baluarte do governo central. Paralelamente, o Estado sudanês enfrenta uma profunda crise política e econômica, que provoca uma rápida erosão das lealdades nas áreas periféricas. Em última análise, o que se vê não é bem uma marcha de conquista dos rebeldes sobre a capital, mas uma somalização do país.

Nos últimos tempos, o Sudão do Sul também entrou em plena implosão. Em dezembro passado, o presidente Salva Kiir apareceu de uniforme na televisão nacional para acusar de tentativa de golpe de Estado seu ex-vice-presidente – e rival de longa data –, Riak Machar. Este, temendo pela própria vida, fugiu para a capital de canoa e encabeçou um levante armado. Em poucos dias, os rebeldes conquistaram a cidade estratégica de Bor, a 200 quilômetros de Juba, antes de obter o controle da maior parte do estado de Unidade, paralisando 20% da infraestrutura petrolífera nacional. Desde então, os dois lados continuam empreendendo batalhas em várias cidades-chave e já causaram o deslocamento de mais de 500 mil civis.

Cartum não parece realmente preocupada

Na crise interna do Sudão do Sul, os rebeldes do SPLM/A-N fazem o jogo da neutralidade. Mas os refugiados do Kordofan e do Nilo Azul têm muito a perder com uma desestabilização do país que os acolhe. Se os combates vierem a se estender, eles se verão privados de ajuda humanitária, presos entre o Exército sudanês e as facções do sul. De acordo com Al-Jundi, um jovem refugiado em Maban, “todos estão prontos para voltar ao Nilo Azul, se necessário”.

Seu fatalismo parece justificado. A resposta internacional não tem se mostrado à altura. A atenção das grandes potências e dos atores regionais, puramente reativa, salta de uma crise a outra, negligenciando largamente a situação no Kordofan e no Nilo Azul. O Conselho de Segurança da ONU, que já esteve preocupado com as relações entre os dois irmãos rivais,2 concentra-se agora na crise do Sudão do Sul. Já os mediadores internacionais, sob a égide da União Africana, abandonaram os esforços para levar Cartum e o SPLM/A-N à mesa de negociações. Uma reunião marcada para dezembro foi cancelada. O motivo oficial – a morte de Nelson Mandela – não consegue dissimular a falta de entusiasmo em relação a um novo ciclo que parecia fadado ao fracasso. “Os mediadores provaram-se incapazes de trabalhar com duas questões de uma só vez”, avalia Jérôme Tubiana, analista para o Sudão do International Crisis Group. As guerras no Kordofan do Sul e no Nilo Azul, consideradas secundárias, foram esquecidas. Ótimo para Cartum, que fica com o campo livre para intensificar suas ofensivas militares.

A situação atual estabelece o fracasso da abordagem desarticulada dada à questão sudanesa por mais de uma década:3 tratam-se separadamente os conflitos no Nilo Azul e no Kordofan, a crise em Darfur e o autoritarismo em Cartum. Como resumiu o pesquisador Claudio Gramizzi, “a comunidade internacional tem tratado as diferentes questões sudanesas de maneira estanque, atitude que Cartum sempre mais ou menos incentivou, já que isso joga a seu favor”.

Mas é a dominação econômica, política e cultural de uma elite estreita nas periferias que está no centro da questão norte-sudanesa. E a autodeterminação do sul, arrancada de Cartum em 2005, quando a contrainsurreição em Darfur chegava ao auge, deveria ser acompanhada de esforços de democratização em escala nacional.

Porém, diante da resistência das elites de Cartum e de Juba a qualquer abertura pluralista, as grandes potências preferiram sacrificar a meta democrática em favor da secessão do sul e de uma estabilidade a curto prazo. A ideia de um esforço global para resolver as crises no norte avança junto a diplomatas europeus e norte-americanos. Mas, sem um esforço coordenado para uma abertura democrática de Cartum, a paz no Sudão continuará sendo um horizonte longínquo.

Notas:

1  Ler Gérard Prunier, “Le régime de Khartoum bousculé par la sécession du Sud” [Regime de Cartum abalado pela secessão do sul], Le Monde Diplomatique, fev. 2011.

2    Ler “Amer divorce des deux Soudans” [Amargo divórcio no Sudão], Le Monde Diplomatique, jun. 2012.

3   John R. Young, The fate of Sudan: the origins and consequences of a flawed peace process[O destino do Sudão: origens e consequências de um processo de paz fracassado], Zed Books, Londres, 2012.

Jean-Baptiste Gallopin é jornalista.


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