Foto: Daniel Arauz (CC BY-SA 2.0)
O AKP obteve quase a metade dos votos e 317 das vagas, de um total de 550. O CHP (Partido Popular Republicano) obteve o 25,4% dos votos e 134 vagas. O MHP (Partido de Ação nacionalista), de extrema-direita, 11,9% e 41 vagas. O HDP (Partido Popular Democrático) 10,7% dos votos e 59 vagas.
Com o resultado, Erdogan aparece como o grande vencedor, pois conseguiu que o seu partido superasse com folga o mínimo necessário para governar sem necessidade de coligações. Nas eleições que aconteceram em junho, o AKP tinha perdido a maioria absoluta. Por esse motivo, chamou a novas eleições. Com o objetivo de retomar os votos que tinham migrado para a extrema-direita do MHP e para o Partido curdo HDP, rompeu a trégua que tinha promovido com a guerrilha curda do PKK (Partido dos Trabalhadores), ao mesmo tempo em que aconteceram grandes atentados terroristas sobre os quais existe a suspeita da intervenção dos serviços de inteligência turcos.
Erdogan não foi o candidato do AKP, pois os estatutos do Partido lhe impedem se candidatar por mais de três mandatos. Em contrapartida, ele acabou se tornando o primeiro presidente da República a ter sido eleito no primeiro turno nas eleições realizadas em 2014. O novo primeiro-ministro será o antigo ministro das Relações Exteriores, Ahmet Davutoglu.
O que vem depois?
Na campanha eleitoral, o AKP prometeu um aumento do salário mínimo, para 300 euros mensais, e ajudas para os jovens que contraírem matrimônio. A inflação continua subindo e a perda do valor da lira, perante o dólar, em 25% apenas neste ano, tem provocado o aumento dos preços dos crescentes produtos importados.
Enquanto a crise capitalista se aprofunda na Turquia, as regiões vizinhas se encontram em chamas. Ao sul, a crise na Síria e no Iraque escalou. Ao norte, a Ucrânia se encontra em chamas, apesar da desescalação do conflito, e as tensões aumentam no Mar Negro.
Erdogan tem manobrado. Nos próximos dias, acontecerá na cidade turca mediterrânea de Antalya a reunião de cúpula do G-20, os 20 países mais importantes. Apenas a duas semanas das eleições, o governo conseguiu uma ajuda por três bilhões de euros da União Europeia para conter a migração dos sírios para a Europa, a promessa de facilitar os visados, o que lhe valeu o aumento do apoio nas camadas médias da sociedade, convites para participar das futuras reuniões de cúpula da União Europeia e o atraso de um relatório sobre as perseguições a jornalistas na Turquia.
Mas agora as manobras deverão ser transformadas em políticas para evitar a explosão dos protestos sociais. Como o governo do AKP irá colocar em prática essa mágica?
Como ficarão as relações com os Estados Unidos?
Como ficará a questão curda?
E qual será a política para a contenção da crise capitalista?
O equilibrista governo nacionalista turco
As relações do governo Erdogan com os Estados Unidos têm sido complexas. Em 2003, a invasão ao Iraque não pode ser realizada a partir da Turquia.
A Turquia faz parte da OTAN, tem mísseis nucleares no território, mas o exército não tem entrado em confrontos militares na região, apesar de enfrentar os guerrilheiros do PKK, o Partido dos Trabalhadores curdo, há mais de 30 anos.
O pior cenário para o governo de Erdogan é a formação de um estado independente curdo na Síria. O YPD, que governa essas regiões curdas, está intimamente vinculado ao PKK turco. As milícias de autodefesa do YPD, o YPG, fazem parte da frente única impulsionada pela Administração Obama para estabilizar a região e têm desempenhado um importante papel em campo contra o Estado Islâmico e a al-Nusra, a al-Qaeda na Síria. Além disso, há as relações do YPD com o Curdistão Iraquiano que é apoiado pelos Estados Unidos e até pelos sionistas israelenses. O grosso do petróleo consumido por Israel vem do Curdistão Iraquiano que, com seus pershmergas (soldados), tem desempenhado um papel muito importante em campo contra os “rebeldes” do Estado Islâmico.
Com o aprofundamento da crise capitalista, a principal indústria turca, a indústria têxtil, se viu envolvida em grave recessão. Os projetos faraônicos, em andamento ou em planejamento, estão ameaçados, o que colocaria em xeque o apoio dos setores dominantes da burguesia nacionalista turca. O déficit das contas públicas só tem crescido e tem sido fechado com os petrodólares sauditas.
A política econômica que Erdogan tem impulsionado, como “saída” para a crise, tem como eixo transformar o país num nó (hub) do fornecimento de gás e petróleo para a Europa. Há acordos assinados e em andamento com a Rússia e o Irã. Há a perspectiva de reativação do projeto B-T-C (Bakú, Tbilisi, Ceylan) para o escoamento do gás do Azerbaijão. Há a possibilidade de participar do projeto impulsionado pelo Catar e pelos sauditas para transportar o gás do mega campo de Pars, a partir do Catar. Todos esses projetos passam pela Província da Anatólia Oriental, que é habitada majoritariamente pelos curdos e onde o PKK tem forte atuação.
O papel da Turquia é estratégico por causa do controle do Estreito do Bósforo que une o Mar Negro ao Mar Mediterrâneo e também porque representa a porta de entrada para o contágio da desestabilização do Oriente Médio em direção ao Cáucaso e ao sul da Rússia. As relações e as concessões obtidas dos russos passam por este fator. A deterioração das relações poderia bloquear o acesso da poderosa Frota russa do Mar Negro, que está estacionada em Sebastopol (Crimeia), ao Mar Mediterrâneo. O fechamento colocaria em risco um importante volume comercial, deixaria aberto um flanco importante da Rússia para o OTAN e teria o potencial de escalar para um conflito militar. Ao mesmo tempo, a partir do aprofundamento da crise na Ucrânia, os Estados Unidos têm fortalecido as relações com a Romênia como contrapeso à presença russa no Mar Negro. O aumento das das tensões apresenta séria implicações para a Turquia.
A política turca sobre a questão curda
Umas das políticas defensivas que o governo Erdogan adotou com o objetivo de conter o avanço dos curdos foi passar a participar da coalisão contra o Estado Islâmico, abrindo uma base aérea, Incirlik, para a aviação norte-americana.
Os ataques promovidos, nos últimos meses, pelo Exército turco, contra os guerrilheiros curdos, liquidaram com a trégua que estava em andamento com o PKK. Mas o principal objetivo era acirrar as contradições internas para viabilizar a vitória do AKP nas eleições deste domingo.
A blindagem do espaço aéreo sírio pela Federação Russa, mediante os mísseis S-300, criou entraves para a Turquia confrontar, em termos militares, os curdos, principalmente se levarmos em conta que a atuação dos russos passa pelo acordo com a Administração Obama. O ponto de largada deste acordo foi dado com a visita de John Kerry, o chefe do Departamento de Estado norte-americano, a Sochi em junho. Ao mesmo tempo, o apoio turco ao Estado Islâmico e a outros “rebeldes” ficou dificultado.
A política mais provável para o próximo período é que o governo do AKP tente dar continuidade à política de acordos com o PKK. O ponto em que as negociações tinham ficado era a ampliação da autonomia nas regiões curdas. O principal dirigente curdo, Abdullah Ocalan, que se encontra numa prisão turca desde 1999, abriu mão da independência curda para assumir uma posição semi-anarquista baseada na organização popular nos municípios, algo assim como a política aplicada pelos zapatistas no sul do México.
O HDP, o partido pró-curdo, não representa uma ameaça para o AKP, principalmente agora com a maioria parlamentar. Se trata de um partido de cunho social-democrata, integrado ao regime, com relações muito tênues com o PKK, algo assim como o Polo Democrático colombiano com um vínculo nacionalista com as reivindicações curdas.
O ponto chave para o AKP avançar nas negociações com os curdos passa por duas questões principais. A primeira questão se relaciona com o aprofundamento da crise capitalista, pois os acordos implicarão na realização de investimentos nas regiões curdas para promover a estabilização em termos materiais. Erdogan tenta extrair tudo o que puder da União Europeia usando a ameaça da crise migrantória. Ao mesmo tempo, a Turquia avança nas negociações com todos os países que disputam o fornecimento de gás à Europa.
O segundo fator se relaciona com as negociações sobre a Síria. Erdogan tentou depor o regime sírio de al-Assad, assim como o tentaram os sauditas, o imperialismo e as demais monarquias reacionárias da região. Essa política confrontou a tradicional política turca da não interferência nos assuntos internos dos países vizinhos. O objetivo era evitar o fortalecimento dos curdos. O principal objetivo do governo turco nas negociações continua sendo exatamente esse, a busca pela garantia de que um estado curdo independente na Síria não sairá do papel. A criticidade dessa política, para os turcos, é revelada pelo acirramento do conflito militar, nos últimos meses, e até pelos brutais atentados terroristas contra os curdos, onde a mão dos serviços de inteligência turcos aparecem de maneira bastante clara.
A Turquia cumpre um papel de primeira importância no Oriente Médio. A desestabilização terá efeito muito mais catastrófico da crise na Síria e no Iraque. Conforme a crise capitalista se aprofunda, o avanço sobre o coração do capitalismo europeu e mundial se torna mais iminente.
Alejandro Acosta é cientista social, colaborador do Diário Liberdade e escreve para seu blog pessoal.