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conchita wurstBlogueiras Feministas - [Catarina Corrêa, Marcelo Caetano e Bia Cardoso] Conchita Wurst venceu o Festival Eurovision 2014. A final foi no último sábado. Eurovision é um festival de canções que reúne artistas ícones de cada país da Europa para concorrer com a música do ano, desde 1956.


Entre grandes nomes revelados, está por exemplo, a banda Abba, que venceu em 1974. Quase 40 países europeus fazem suas competições locais e a música escolhida vai para grande final.

Na final de 2014, Conchita Wurst, representando a Áustria, venceu. A mídia brasileira reagiu de forma absurdamente transfóbica em suas manchetes. Infelizmente, sinto que estou dizendo obviedades, não é mesmo? Por que esperar um tratamento mais respeitoso da mídia brasileira em relação a gêneros fora da binaridade de gêneros?

A BBC Brasil, revistas semanais e portais de notícias usaram termos como “mulher barbada” e “travesti barbudo”:

Por que eu esperaria algo diferente dos veículos de comunicação? Bem, em primeiro lugar, porque a mesma notícia foi publicada na BBC UK com a seguinte manchete:

Então sim, é possível tratar a diversidade como ela deve ser tratada. Pra começar, você poderia, simplesmente, dizer o nome dela. Por que o resto importa? E, se importa, então publique-se o que a pessoa tem a dizer sobre si mesma. Dê-lhe voz, por favor (porra!).

Conchita Wurst é uma persona criada por Thomas “Tom” Neuwirth. É cantora e tem uma longa carreira na Europa. Quanto é Tom utiliza pronomes masculinos, quando é Conchita, femininos. Em seu site oficial, há a biografia tanto de Tom, como de Conchita e uma breve explicação:

“Dois corações batem em meu peito. Eles são um time trabalhando em sincronia. Embora, nunca tenham se encontrado antes, sentem a falta um do outro constantemente no espelho. A pessoa privada Tom Neuwirth e a figura artística Conchita Wurst respeitam-se do fundo de seus corações. São dois personagens individuais, com suas próprias histórias individuais, mas com uma mensagem essencial pela tolerância e contra a discriminação.”

Ao receber o prêmio pela música ‘Rise Like a Phoenix’, que contem o verso: “Waking in the rubble / Walking over glass / Neighbors say we’re trouble / Well that time has passed” (“Acordar nos escombros / Caminhando sobre vidro / Vizinhos dizem que nós somos o problema / Esse tempo já passou”; emblemático, não?), a cantora disse: “Esta noite é dedicada a todos os que acreditam num futuro de paz e liberdade. Somos unidos e somos imparáveis”.

Bem, a questão é que as frases como “mulher barbada” me encheram. Fiquei pensando na condição e trajetória circense que as mulheres barbadas ocuparam durante tanto tempo, na condição marginalizada à qual mulheres e homens são submetidos por transfobias midiáticas e por intolerâncias que nossa sociedade como um todo constrói em cima da transgressão do nosso binarismo de gênero e sexo: homem e mulher.

Explico, mas antes devo dizer que mulheres barbadas, mulheres e/ou homens trans e drag queens são questões diferentes. Cada pessoa com suas características.

Em primeiro lugar, Thomas Tom Neuwirth é frequentemente referido como drag queen, ainda que, ao que observei, sem qualquer afirmação dos próprios Tom ou Conchita. Ambos transitam entre os gêneros, referindo-se a si mesmos ora no masculino, ora no feminino. Drag queens são pessoas que, para fins de performance, se travestem. Pessoas trans*, por outro lado, são pessoas que não se identificam com o gênero e/ou sexo que lhes foi designado no nascimento. Quem se identifica com o gênero e o sexo que lhe foi designado ao nascer são pessoas cisgênero.

Os três conceitos se encontram na noção de performance de gênero, que é a forma como seu gênero é entendido e vivenciado pela sociedade, como você se coloca no mundo e como o mundo te enxerga a partir da sua performance de gênero. Assim, é possível ser um homem cis heterossexual, ter uma performance de gênero não-hegemônica e ser violentado por isso.

Mais especificamente, a performance de gênero (e isso não sou eu que digo, é Judith Butler, ou ao menos é o que eu digo do que a Butler diz), é aquilo que perturba as associações binárias sexo/gênero. A noção de performance caminha para a desnaturalização do estereótipo do binarismo homem-mulher e chama atenção para o caráter de fabricação de toda identidade sexual.

A Mulher Barbada, de acordo com a Wikipedia, é alguém que possui hirsutismo, supostamente uma doença, definida como o crescimento excessivo de pelos terminais na mulher em áreas anatômicas características de distribuição masculina. Pode se apresentar acompanhado de outro sinais de hiperandrogenismo, distúrbios menstruais e/ou infertilidade, ou ainda alterações metabólicas relacionadas com hiperinsulinemia/resistência insulínica. Blá blá blá biologicismo.

Como barbas e bigodes são normalmente consideradas características sexuais secundárias masculinas, mulheres com pelos faciais sofrem enorme pressão cultural para removê-los, visto que sua manutenção configura um estigma social. Justamente por isso, as exceções notáveis acabaram se tornaram atrações burlescas entre o final do século XIX e o início do século XX, nos chamados “circos dos horrores”.

Nossa aversão, nossa associação ao horror daquilo que transgride o “””normal””” do ser mulher e do ser homem se reproduzem ainda hoje, para além do espaço do riso do circo, na figura do transgênero marginal.

Quando, pensando nisso, eu já estava quase desistindo da humanidade, as atrocidades midiáticas me fizeram lembrar uma música (que acho brilhante) da Adriana Calcanhoto: A Mulher Barbada.

Com o que será que sonha a mulher barbada?
Será que no sonho ela salta como a trapezista?
Será que sonhando se arrisca como o domador?
Vai ver ela só tira a máscara como o palhaço.
O que será que tem?
O que será que hein?
O que será que tem a perder a mulher barbada?

A razão de eu achar esse música tão brilhante e genial é que Adriana menciona três possíveis sonhos. Primeiro, a trapezista que corresponde ao estereótipo mais feminino das mulheres: delicada, é também aquela que salta, que se joga, que corre riscos. Depois, o domador, o mais viril e corajoso dos homens. E por último, o palhaço, alguém que se expõe à graça e ao riso, mas que ao final tira a máscara e não vive constantemente o ser horrível, a causa do riso e da marginalização — ou ainda aquele que apenas performatiza e não é sempre palhaço.

A dicotomia de ser um estereótipo, feminino ou masculino, causa repulsa. Porque queremos ser quem somos, num momento performático. Isso é tudo que o conceito de performance de gênero quer gritar. Não há homem tão homem quanto o estereótipo de gênero pretende. E ainda que haja, que isso não limite e sujeite todas as formas de ser homem. Não há mulher tão mulher quanto o estereótipo de gênero supõe. E ainda que haja, que isso não limite e sujeite todos as pessoas que querem ser mulheres.

Conchita é linda. Ela é Conchita, não é “a drag Conchita”, ou a trans, travesti ou qualquer coisa que o valha seguido de seu nome. Sua performance de gênero, seu rosto fino, suas sobrancelhas feitas, seu longo cabelo e sua forma de se vestir e falar contrastam com sua barba. Isso perturba nossa associação binária sobre o que é ser mulher ou homem. Ainda assim, não temos nenhum direito de apagar e invisibilizar o ser que vive, quem se é, e que sonha (com o que quer que seja).

Somos imparáveis desde que sonhemos e, desde que lutemos para que qualquer pessoa seja o que sonha e não o que a sociedade nos limita ser.

Guias técnicos com orientações sobre identidade de gênero

Há publicações que podem nos ajudar a encontrar a melhor forma de apresentar informações sobre identidades de gênero:

- Orientações sobre identidade de gênero: conceitos e termos. Guia técnico sobre pessoas transexuais, travestis e demais transgêneros, para formadores de opinião. Por Jaqueline Gomes de Jesus.

- Guia Mídia e Direitos Humanos. Do Coletivo Intervozes – Coletivo Brasil de Comunicação Social.

- Guia para jornalistas sobre Gênero, Raça e Etnia. Parceria da FENAJ – Federação Nacional dos Jornalistas com a ONU Mulheres.


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