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CHINAChina - Le Monde Diplomatique - [Michel Aglietta] A abertura financeira é uma manobra de alto risco em sua fase inaugural. Uma comunicação desajeitada do governo chinês esquentou as coisas e tumultuou as finanças internacionais. Mas essa visão “curto prazista” dos mercados nãopermite compreender o que se passa na China.


Em novembro de 2013, durante a sessão do Comitê Central, o Partido Comunista Chinês (PCC) anunciou as diretrizes que definem suas prioridades de reforma por um período de vinte anos. Estas foram aprovadas pelo Congresso Nacional do Povo em março de 2014. Na China, os objetivos políticos são guiados por uma visão de longo prazo. A reforma da economia entrou em uma nova era, que deverá levar a transformações econômicas e sociais fundamentais. Ela se desenvolve em fases de cinco anos, orientadas por planos estratégicos. O 13º plano quinquenal, para o período 2016-2020, será apresentado ao público durante a sessão de outubro de 2015, detalhando sua estratégia.

Interpretar o balanço dessa reforma após dezoito meses é um desafio para os observadores ocidentais. Por várias razões profundas. Em primeiro lugar, eles não têm o mesmo referencial intelectual que os chineses. A maioria pensa que a economia de mercado é o fundamento de uma sociedade democrática. Fazer reformas estruturais consiste, portanto, em remover os obstáculos ao funcionamento do mercado, o que levaria automaticamente ao melhor dos mundos possíveis. Para a China, não é nada disso. A reforma econômica é uma ferramenta para objetivos políticos: a unidade da nação, dominando suas forças de ruptura, e a legitimidade do poder centralizado do PCC. A realização dessa finalidade suprema passa pela elevação do bem-estar do povo. Além disso, o presidente Xi Jinping tem uma intenção geopolítica que não se via desde as reformas lançadas por Deng Xiaoping em 1979. Ele quer que a China recupere seu lugar histórico no mundo, o de Império do Meio. Para isso, é necessário integrar a Ásia em torno do yuan; portanto, dissociar a moeda chinesa do dólar e torná-la uma divisa internacional de pleno direito. Embora deem uma visão coerente e unificada a longo prazo, esses objetivos múltiplos tornam difícil entender os eventos atuais.

A reforma é, de fato, um processo contraditório. Ela concretiza oportunidades, mas enfrenta obstáculos. Nos últimos vinte anos, a transformação da sociedade tirou 400 milhões de pessoas da pobreza, mas o rápido crescimento permitido por esse desempenho extraordinário aumentou a desigualdade e a degradação ambiental, que se tornaram insustentáveis.

Entre 1993 e 2012, a expansão da indústria foi o motor do crescimento. A China tornou-se a fábrica do mundo, utilizando ao máximo seu principal trunfo: uma mão de obra pouco qualificada, jovem e muito abundante no campo, que podia ser transferida a baixo custo para as cidades e não contava com serviços sociais básicos. Foi necessário também investir em infraestrutura para garantir o desenvolvimento rápido. Assim se deu uma acumulação excessiva de capital, sobretudo na indústria pesada, agravada pelo pacote de estímulo de 2009-2010 para enfrentar a crise financeira global.1 Esse regime criou gigantescas desigualdades sociais e enriqueceu uma elite cujos interesses poderiam opor-se à nova orientação.

No entanto, as condições de viabilidade desse regime de crescimento desapareceram. A mão de obra escasseou, com o envelhecimento da população.2 O mercado de trabalho tornou-se favorável a um aumento duradouro dos salários, assentado em reivindicações, elevando fortemente os custos de produção das empresas chinesas. A demanda estrangeira desacelerou. Além disso, o crescimento furioso da indústria ao custo mais baixo explorou ao máximo os recursos naturais, deteriorando de maneira grave o ambiente. Há, portanto, ao mesmo tempo, um obstáculo absoluto para continuar seguindo pelo caminho anterior e uma oportunidade de mudar o regime de crescimento graças à ascensão da classe média.

O desafio é passar de fábrica do mundo a uma sociedade de “prosperidade média”, mais inclusiva e eficaz quanto ao uso dos meios de produção. O trunfo da China está no dinamismo do setor privado, sob a forma de dezenas de milhões de empresas inovadoras, bem equipadas para adaptar as tecnologias avançadas à demanda em expansão dos consumidores urbanos.

O grande desafio reside na transição de um tipo de economia para outro, porque a mudança foi brutal. O crescimento da indústria passou de 12%, em 2012, para 6%, na previsão para 2015. Ela deixou um enorme superinvestimento; portanto, capacidade de produção excedente na indústria pesada. A taxa de utilização da capacidade produtiva foi de 71% na indústria do aço, 70% na de alumínio e cimento, e 72% na de vidro. No setor automobilístico, caiu para 76%. Os especialistas consideram que o limite normal de rentabilidade nessas indústrias fica entre 78% e 80%. A consequência foi um colapso da rentabilidade – a tal ponto que empresas públicas, de grande porte e altamente endividadas pelo esforço de investimento anterior, estão em condições financeiras perigosas, o que afeta os bancos que emprestaram a elas.

No total, considera-se que, para absorver a capacidade de produção excedente, é preciso que a taxa de investimento passe para 35% do PIB, contra os 50% atuais. Se a redução de investimento fosse realizada rapidamente, sob a ameaça de restrições financeiras sem compensação, haveria uma ruptura no crescimento, que poderia cair para menos de 5% ao ano. É o temido pouso forçado (hard landing). Haveria grandes consequências sociais e políticas para a legitimidade do poder político. Na verdade, como os sistemas de proteção social ainda não estão desenvolvidos, a sociedade urbana chinesa não tolera o desemprego. A economia deve ser capaz de criar, na média, pelo menos 10 milhões de empregos urbanos por ano – embora exista uma queda da população ativa, 100 milhões de habitantes migrarão do campo para as cidades até 2020. Em 2014, apesar da desaceleração da indústria, ela criou 13,2 milhões. É por isso que o governo se empenha em manter um crescimento em torno dos 7%, com o difícil objetivo de conseguir um pouso suave (soft landing).

Até agora, vem dando certo. A contribuição do consumo para o crescimento do PIB ultrapassa a do investimento.3 Em 2012, ela representava 4%, em uma taxa de crescimento de 7,8%; em 2013, 3,9% sobre 7,7%; em 2014, 5,6% sobre 7,3%. Desse modo, a participação do consumo no PIB aumenta, enquanto a do investimento diminui. Em termos de estrutura setorial, a participação dos serviços tornou-se dominante, com 46,1% do PIB, contra 43,9% para a indústria. Também é necessário que esse processo não seja interrompido por um infarto financeiro.

Mais liberalização

A dívida chinesa é sustentável? A dívida total dos agentes não financeiros atingiu 220% do PIB no final de 2013, sendo 150% para as empresas (contra, por exemplo, 317% nos Estados Unidos, 331% na França, 431% no Japão e 120% na Índia). Vimos que a capacidade de produção excedente explica a fragilidade dos balanços das empresas estatais na indústria pesada. Os promotores imobiliários que têm estoques de moradia não vendidos nas cidades de segunda e terceira categoria sofrem do mesmo mal.4

A queda da inflação agrava a situação financeira das empresas com sobrecapacidade. De fato, os preços globais de venda por atacado dos produtos dessas indústrias estão em queda. As empresas sofrem deflação. Segue-se que a taxa de juros real sobre sua dívida – ou seja, considerada em relação à variação dos preços de venda – aumenta. Assim, sua vulnerabilidade financeira se agrava.

É por isso que o governo tomou medidas de reestruturação, ostentando a absorção das sobrecapacidades, de modo a não provocar rupturas no tecido industrial: consolidação das empresas, ou seja, fusão, além de desmembramento e remembramento para eliminar acúmulo de atividade nos mesmos ramos, injeção de capital privado em estruturas de propriedade mista, transferência de ações detidas pelo Estado a holdings financeiras a fim de tornar a gestão das empresas mais eficiente. Os bancos comerciais foram instruídos a renovar os empréstimos às empresas que chegam à data de vencimento, mas a não fazer nenhum novo empréstimo a empresas que não reduzam sua sobrecapacidade em uma porcentagem definida segundo sua vulnerabilidade e setor.

Por fim, a dívida das coletividades locais inchou a partir do plano de estímulo de 2009, atingindo 33% do PIB no segundo semestre de 2013, de acordo com uma auditoria exaustiva do Tribunal de Contas chinês,5 e resulta da desigualdade dos recursos fiscais nas diferentes regiões e territórios. Os governos locais lançaram-se ao endividamento com a ajuda de obscuras empresas criadas especialmente para contrair empréstimos – uma forma de shadow banking(sistema bancário paralelo) – e refinanciadas pelos bancos oficiais. Aguardando a reforma fiscal prometida, que deve aumentar os recursos dos governos locais, 1 trilhão de yuans (R$ 620 bilhões) estão sendo reescalonados pela emissão de títulos garantidos pelo governo central, o que ajuda a se desembaraçar desses expedientes.

Entre a multiplicidade de mudanças institucionais necessárias para concluir a transformação, os líderes chineses optaram por priorizar a reforma financeira por duas razões principais. A primeira é quebrar a resistência à reforma sujeitando as empresas estatais do setor comercial à concorrência e, assim, forçando as instituições financeiras a avaliar corretamente os riscos. A segunda é elevar o yuan à categoria de moeda internacional de reserva – portanto, plenamente conversível até 2020. Nessa perspectiva, o governo quer aproveitar a oportunidade para introduzi-lo na cesta de direitos especiais de saque (DES)6 no fim de 2015. Desse modo, é preciso dissociar o yuan do dólar e afirmar a independência monetária da China; daí a decisão de 11 de agosto de 2015 de desvalorizar o yuan 3% em relação ao dólar, após ter ampliado diversas vezes as margens de flutuação diária das taxas de câmbio. Ao contrário do que foi relatado no breve pânico que assaltou as finanças internacionais, essa decisão não é de modo algum uma política de desvalorização competitiva: a queda de 3% é puramente simbólica e, obviamente, não tem nenhum efeito significativo sobre o comércio exterior, comparada à depreciação de 20% do euro desde julho de 2014. Mas ela sinaliza a disposição do Conselho de Estado (governo) de dissociar o yuan do dólar; portanto, de continuar a liberalização financeira.

Em última análise, essa decisão é compatível com a reforma do sistema financeiro interno. Na verdade, liberalizar as finanças é liberalizar as taxas de juros bancários e criar instrumentos financeiros de mercado (ações, títulos, derivativos), de modo que uma estrutura completa das taxas de juro por períodos de vencimento e categorias de títulos possa ser determinada de forma endógena, sem intervenção direta da administração.7Nesse contexto, o papel das autoridades públicas não é mais fixar diretamente as taxas de juros e dizer aos bancos a quem e quanto eles devem emprestar, e sim estabelecer regras prudenciais para incentivar os atores financeiros a adotar meios para avaliar os riscos, fornecer aos detentores de poupança os meios para diversificar seus investimentos e manter balanços sólidos para absorver os choques.

É nesse contexto político que ocorrem as mudanças, primeiro com a abertura dos mercados de ações pela conexão entre as bolsas de Hong Kong e Xangai, em meados de 2014, depois com as medidas de liberalização do mercado de câmbio.

Que essas inovações institucionais criem perturbações financeiras não é algo que deva surpreender. Todos os países que liberalizaram abruptamente seus sistemas financeiros passaram por crises financeiras mais ou menos intensas e extensas: os países anglo-saxões – nas décadas de 1970, no caso do Reino Unido, e 1980, no caso dos Estados Unidos e outros países –, os escandinavos, a França e o Japão na virada da década de 1990, e até a Alemanha, em 2002. Esses redemoinhos acalmam-se quando os governos adaptam sua regulamentação prudencial e quando o Banco Central ajusta os instrumentos de ação de sua política monetária. É isso que as autoridades chinesas tentam fazer agora. Se os preços dos ativos financeiros tiverem uma margem razoável de flutuação no segundo semestre de 2015, o governo poderá abordar em 2016 o cerne da transição: a reforma das empresas estatais, a reforma fiscal, a dos direitos da população rural sobre o uso das terras e a da padronização e ampliação dos sistemas sociais.


Michel Aglietta 

Michel Aglietta é professor de Economia na Universidade Paris Ouest Nanterre La Défense e conselheiro científico no Centro de Estudos Prospectivos e Informações Internacionais (Cepii) e no organismo governamental France Stratégie.

 

Ilustração: Alves


1       Esse plano atingiu o equivalente a US$ 700 bilhões, dirigidos principalmente para a construção civil e a infraestrutura, por iniciativa dos governos locais, com participação estatal de apenas 25%.

2    A população ativa diminuiu em 2,44 milhões de pessoas em 2013 (–1,6%), pelo segundo ano consecutivo. Cf. “Chine: la population active enregistre une deuxième année consécutive de baisse” [China: população ativa registra segundo ano consecutivo de queda], Xinhua, Pequim, 21 jan. 2014.

3    O crescimento do PIB para um ano é dividido entre as três fontes de demanda: consumo (público e privado), investimento total (incluindo variação dos estoques) e exportações líquidas (exportações – importações). O total das contribuições é igual ao crescimento do PIB.

4    Há quatro cidades de primeira categoria – Pequim, Xangai, Guangzhou e Shenzhen –, e trinta de segunda – capitais de províncias e cidades muito importantes (Chongqing, Chengdu, Wuhan, Tianjin, Xiamen...). As cidades de terceira categoria são aquelas com mais de 1 milhão de habitantes. A lista não está fechada, mas seriam entre cem e 150 cidades.

5    Trata-se da dívida total (coletividades locais, organismos públicos...). A do governo central é modesta (23% do PIB no final de 2013), bem inferior às reservas internacionais do Banco Central e dos fundos soberanos.

6    O valor dos DES é determinado por uma cesta de moedas: dólar, euro, libra, iene.

7          Ler Ding Yifan, “En Chine, une réforme financière à haut risques” [Na China, uma reforma financeira de alto risco] e “Bientôt des yuans dans toutes les poches?” [Logo o yuan estará no bolso de todo mundo?], Le Monde diplomatique, jul. 2015.


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