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010914 dividaResistir - [Renaud Duterme] Uma das forças do argumento para o reembolso da dívida pública é a aparente neutralidade da medida. Reembolsar a dívida é apenas uma questão contabilística isenta de qualquer motivação oculta.


"Precisamos de reembolsar a dívida porque um Estado não pode viver acima dos seus meios". Indiscutível enquanto posição. No entanto, escavando um pouco, torna-se claro que a análise contabilística permite ocultar uma visão em termos de classe, ou seja, no cerne da gestão da dívida tal como ela tem sido feita desde há décadas. Se a utilização da dívida como forma de domínio não é nova [1] , os anos 70 e o abrandamento da economia nos países do primeiro mundo vão ver o argumento do reembolso da dívida ser utilizado pelas grandes potências, com um duplo objetivo rapidamente alcançado: o domínio dos territórios recém-independentes (o terceiro mundo) e a restauração do poder de classe nas economias ditas do primeiro mundo. Este elemento marca de certo modo o início duma época que se prolonga até hoje.

Nova Iorque, aqui estamos!

Embora se evoque frequentemente a crise da dívida dos países do Sul no início dos anos 80, é em Nova Iorque que se vai desencadear um processo de desapossamento das classes populares através da dívida. Fui buscar a análise que se segue a David Harvey [2] . No seu livro Brève histoire du néolibéralisme , ele descreve um "putsch das instituições financeiras em prejuízo do governo democraticamente eleito de Nova Iorque". Nos anos 70, vários elementos estruturais (desindustrialização, empobrecimento do centro da cidade na sequência do desenvolvimento dos subúrbios) arrastaram a cidade para dificuldades financeiras. Resolvidas temporariamente pelo défice, essas dificuldades agravaram-se em 1975, na sequência da decisão de um banco de investimentos de recusar cobrir a dívida da cidade, provocando com isso uma espécie de incumprimento do pagamento. Na sequência desse incumprimento, a gestão do orçamento da cidade passou para o controlo de novas instituições não eleitas, que visaram prioritariamente o reembolso dos credores. Iniciou-se assim um mote que se generalizou rapidamente aos quatro cantos do mundo: cortes orçamentais nos serviços públicos e sociais, congelamento dos salários dos funcionários públicos e enfraquecimento dos sindicatos, nomeadamente pela obrigação que lhes foi imposta de investir o seu fundo de pensões em obrigações da cidade. David Harvey dá grande importância a este acontecimento "local" porque, segundo ele, "a gestão da crise orçamental de Nova Iorque preparou a via para as práticas neoliberais, tanto no plano nacional com Reagan, como a nível internacional, com o FMI [3] na década de 1980". E acrescenta que isso estabeleceu as bases do seguinte princípio: "no caso dum conflito que oponha a integridade das instituições financeiras e os benefícios dos acionistas ao bem-estar dos cidadãos, (os poderes públicos) privilegiariam os primeiros". Por consequência, "o governo tinha por função a criação dum clima favorável aos negócios, em vez de resolver as necessidades e o bem-estar da população em geral". [4]

Etapa seguinte: o terceiro mundo

Depois de Nova Iorque, foi o México quem teve o triste privilégio de abrir o baile da austeridade.

A explosão das taxas de juro decidida unilateralmente pelos Estados Unidos, aplicada em conjunto com a queda dos preços dos produtos de exportação do país, vai levar o governo mexicano à incapacidade de honrar as suas dívidas. A partir daí, o método nova-iorquino vai ser aplicado pelo FMI e pelo Banco Mundial. [5] Para além dos cortes orçamentais, estes impuseram igualmente medidas estruturais tais como a redução das barreiras aduaneiras, privatizações maciças e uma maior flexibilidade do mercado de trabalho. [6] As consequências serão duplas e anunciarão a nova era neoliberal: precarização maciça da população mexicana (provocando uma subida do emprego informal, da criminalidade, da insegurança alimentar...) e o enriquecimento duma "elite" estrangeira (bancos de depósitos, empresas americanas) e nacional (apareceram 24 multimilionários na sequência das várias reformas impostas à economia mexicana, entre eles Carlos Slim, que chegou a ser o homem mais rico do planeta). [7] As coisas desenrolaram-se praticamente do mesmo modo numa grande parte da América do Sul, da África e, em menor escala, da Ásia. Para muitos autores, entre eles David Harvey, é muito claro que a crise da dívida esteve na origem da viragem neoliberal na maior parte dos países do Sul. [8] O que é preciso perceber, é que o modo como as coisas se passaram não aconteceu por acaso, mas foi preparado com muita antecedência, nomeadamente pelos discípulos de Milton Friedman, que colonizaram pouco a pouco o FMI e o Banco Mundial. Naomi Klein resume: "confrontados com os choques repetidos dos anos 80, os países endividados não tinham outra alternativa senão recorrer ao Banco Mundial e ao FMI. Esbarravam então num muro de ortodoxia criado pelos Chicago Boys que, dada a sua formação, não viam as catástrofes como problemas a resolver mas como ocasiões preciosas que deviam ser aproveitadas de imediato a fim de abrir novos territórios ao mercado livre". [9] Embora o Norte não tenha sido poupado a esse ataque [10] , foi na sequência da crise da dívida grega em 2010 que a ofensiva de desapropriação pelos credores vai ser mais brutal.

Uma gestão da dívida ao serviço de 1%

O que é necessário entender, e o que Harvey demonstra de modo magistral, é que o neoliberalismo na realidade não passa duma casca ideológica que dissimula a reafirmação dum poder de classe [11] . Assim, "o principal êxito do neoliberalismo reside na redistribuição, e não na criação, de riquezas e receitas". [12] Christian Vandermotten diz o mesmo quando escreve que "quaisquer que sejam as modalidades do seu aparecimento, o neoliberalismo traduz-se por uma reafirmação do poder económico das classes dominantes". [13] Por consequência, mais do que uma ideologia, é necessário considerar esta vaga neoliberal sobretudo como um projeto político de reforço do domínio a favor dos detentores de capitais. Para ficar convencido, basta considerar as múltiplas distorções feitas à teoria neoliberal, mesmo entre os defensores mais fervorosos desse sistema. A gestão das crises da dívida é provavelmente o melhor exemplo. "Ao dar toda a autoridade ao FMI e ao Banco Mundial para negociar a redução da dívida, os Estados neoliberais acabavam por proteger as principais instituições financeiras mundiais da ameaça de um incumprimento. Na realidade, o FMI cobre, o melhor que pode, a exposição aos riscos e às incertezas nos mercados financeiros internacionais. Uma prática difícil de justificar em relação à teoria neoliberal, visto que os investidores, em princípio, deviam ser responsáveis pelos seus erros". [14] Joseph Stiglitz vai no mesmo sentido. Prémio Nobel de economia e antigo economista-chefe no Banco Mundial, escreve: "na economia de mercado normal, se um emprestador consente num empréstimo que acaba mal, sofre as consequências disso (...) Na realidade, repetidamente, o FMI forneceu fundos aos Estados para salvar de apuros os credores ocidentais". [15] Resume as coisas de modo límpido: "se examinarmos o FMI como se o seu objetivo seja servir os interesses da comunidade financeira, encontramos sentido para os seus atos que, sem isso, parecem contraditórios e intelectualmente incoerentes". [16] Num registo semelhante, as operações de salvamento de bancos na sequência da crise de 2007-2008 nos Estados Unidos e na Europa revelam igualmente interesses de classe: longe do ideal liberal de responsabilidade dos investidores, assistimos sobretudo a um mecanismo de privatização dos benefícios e de socialização das perdas. Tanto pior para o famoso risco moral , apesar de este ser invocado para justificar o reembolso da dívida pelos países do Sul.

Um outro ponto de discordância [17] em relação à teoria é a escolha das prioridades orçamentais. Com raras exceções, notamos que na maior parte dos países submetidos à austeridade, o orçamento militar pouco ou nada é afetado pelos cortes nas despesas públicas. Já assim era com Reagan que, apesar duma retórica muito anti estado, manteve orçamentos militares faraónicos, financiados no essencial pelo défice. Como nota Harvey, "embora em desacordo com a teoria neoliberal, o aumento dos défices federais forneceu uma justificação cómoda para o projeto de demolição dos programas sociais". [18] A dupla explicação é sem dúvida, por um lado, a existência e o poderio do complexo militar-industrial e as suas ligações com a administração americana e, por outro lado, o imperialismo sempre omnipresente do poderio americano vis-à-vis o resto do mundo (Naomi Klein utiliza a expressão capitalismo do desastre para descrever o fenómeno que associa estes dois elementos). A gestão da dívida grega leva a uma análise semelhante visto que o orçamento do armamento do governo, um dos mais elevados da União Europeia, foi inicialmente poupado às medidas de austeridade, em prejuízo das despesas sociais, de saúde e de educação. O facto de a França e a Alemanha serem dois dos grandes vendedores de armas à Grécia sem dúvida não lhe é alheio.

Crises e tecnocratas

De resto, a crise serve quase sempre de pretexto para a imposição de medidas impopulares. Naomi Klein descreveu este fenómeno com o nome de estratégia de choque : resumindo, isso consiste em tirar partido da perturbação duma população face a um acontecimento brutal para impor medidas que seriam difíceis, ou mesmo impossíveis, de fazer aprovar em tempos normais. Mais uma vez, a crise da dívida, no terceiro mundo ou na Europa, ilustra perfeitamente este fenómeno. "A ameaça que as dívidas públicas apresentam para a estabilidade bancária tornou-se simultaneamente numa cortina de fumo para dissimular as responsabilidades dos bancos e um pretexto para impor políticas anti-sociais a fim de sanear as finanças públicas". [19] Além disso, o argumento da crise ou da insustentabilidade da dívida tem tendência para ir eliminando cada vez os mais processos democráticos. Prova disso "o gosto dos neoliberais pelas instituições não democráticas que não prestam contas a ninguém". Harvey resume a impostura neoliberal: "fortes intervenções do Estado e um governo das elites e dos 'especialistas' num mundo que supostamente não devia ser intervencionista". [20] Cinco anos depois de ter escrito estas linhas, a gestão da crise grega e europeia dá-lhe totalmente razão, visto que puseram no poder diversos "técnicos" diretamente provenientes do mundo da finança. Mario Draghi, o presidente do Banco Central Europeu, é de resto um ex-dirigente da Goldman Sachs. O que é lamentável é ver a inércia da esfera política em relação a isso. Assim, a famosa regra de ouro, que grava no mármore a austeridade e impõe opções orçamentais, desprezando as escolhas eleitorais da população, não encontrou, por assim dizer, protestos por parte dos governos em exercício e por parte da maioria dos partidos tradicionais. No entanto, é visível que enfrentamos um novo processo de acumulação das riquezas por uma minoria. [21] Evidentemente, nem todos os liberais são seres pérfidos e desprovidos de alma. Muitos deles sem dúvida têm boa vontade mas estão mergulhados num conjunto de crenças e mitos [22] associados – quase sempre incorretamente – ao ideal liberal ou capitalista. Apesar disso, a verdade é que existe uma elite, financeira, política, empresarial, que beneficia com as medidas neoliberais impostas quase sempre de modo não democrático. Reconhecer este estado de coisas deve levar-nos a denunciar e a lutar contra a dívida ilegítima e os planos de austeridade.

Notas

|1| Já no século XIX, o Império Otomano, a América latina ou a China assistiram à generalização dos empréstimos bancários provenientes das metrópoles do norte (bancos londrinos) se tornarem um meio de controlo das suas finanças públicas e das suas riquezas. Para este tema, ver TOUSSAINT Éric, cadtm.org/Retour-dans-le-passe-Mise-en

|2| HARVEY David, Brève histoire du néolibéralisme , Les Prairies Ordinaires, Paris, 2014, p76.

|3| Se o FMI e o seu co-irmão, o Banco Mundial, foram inicialmente criados para estabilizar a ordem económica mundial e financiar o desenvolvimento dos países mais pobres, estas duas instituições vão transformar-se rapidamente num instrumento de imposição do neoliberalismo, em especial pelas elites norte-americanas. A sua localização em Washington, assim como o seu sistema de funcionamento, dominados pelos países ocidentais (em especial os Estados Unidos) explicam perfeitamente este estado de coisas.

|4| HARVEY, op. cit., p80.

|5| Este modus operandi combinar-se-á rapidamente com os métodos imperialistas americanos que, contrastando com o colonialismo europeu, consistiam sobretudo na instituição de um poder "independente" mas totalmente submisso aos interesses americanos. O endividamento servirá assim simultaneamente para a corrupção desses governos fantoches e igualmente, dada a gestão pelo Banco Mundial e pelo FMI, para uma transferência de riquezas dos povos do Sul para as elites financeiras (americanas ou outras).

|6| Estas medidas serão também encorajadas pela adesão do México ao GATT, assim como ao ALENA em 1994

|7| HARVEY, op. cit. pp149-154

|8| VANDERMOTTEN Christian, La production des espaces économiques , Éditions de l'ULB, Bruxelles, 2010, p345 ; KLEIN Naomi, La stratégie du choc , Acte Sud, Paris, 2008, pp256-261.

|9| KLEIN Naomi, op. cit, p252.

|10| No final dos anos 70, a subida das taxas de juros seguida das viragens de Reagan e de Thatcher, vão fazer prever a liquidação, por diversas formas, da herança intervencionista omnipresente durante os gloriosos anos 30. Aliás, à semelhança de Nova Iorque uns anos antes, várias cidades servirão de laboratório por imposição da austeridade nos orçamentos públicos. Foi o caso da cidade de Liège nos anos 80. Esta política será alargada a toda a Bélgica, nomeadamente através do governo de Martens-Gol. Depois de uns anos de reformas progressistas, a França de Mitterrand afundar-se-á igualmente no fosso neoliberal, tal como os países de leste, depois do desmoronamento da União Soviética.

|11| HARVEY, op. cit., p223

|12| HARVEY, op. cit, p226.

|13| VANDERMOTTEN, op. cit., p339. Ver igualmente TOUSSAINT Éric, Bancocratie , Aden, Bruxelles, 2014. Este último escreve: "as políticas neoliberais generalizadas a partir dos anos 80 permitiram aos capitalistas aumentar a sua parte nas receitas nacionais enquanto diminuíam a parte relativa aos salários" (p56).

|14| HARVEY, op. cit., p115.

|15| STIGLITZ Joseph, La grande Désillusion , Fayard, Paris, 2002, pp321-322

|16| STIGLITZ Joseph, op. cit., p330.

|17| Evidentemente há outros. Um deles, que é interessante sublinhar, é o desfasamento entre o famoso princípio de concorrência livre e não falseada e a existência, em muitas áreas, de situações de oligopólios que controlam uma grande parte do mercado. A esfera financeira é, mais uma vez, emblemática visto que, segundo Éric Toussaint, "entre 1997 e 2010, os cinco maiores bancos passaram de 52% para 75% do mercado na Bélgica e de 50,9% para 86% em França" (op. cit., p153). A situação é semelhante em muitos dos domínios de atividade, desde o automóvel à aviação, passando pelo agroalimentar.

|18| HARVEY, op. cit., p136.

|19| TOUSSAINT Éric, Bancocratie , op. cit., p190. Mais uma vez, o objetivo é apenas teórico visto que os políticos da austeridade que contraem a procura e portanto diminuem as receitas fiscais, não resolvem minimamente a questão dos défices. O caso da Grécia é emblemático.

|20| HARVEY, op. cit. p111.

|21| Para ficar convencido, basta ver as estatísticas quanto ao número de multimilionários e milionários, que aumentam por todo o lado. No mesmo registo, o mercado de luxo (malas Vuitton, cigarros topo de gama, automóveis de luxo...) nunca esteve tão bem.

|22| Entre estes mitos, referimos a figura do trabalhador empresário, a eficácia do mercado, os benefícios do comércio livre e da liberdade económica, a recuperação económica dos países do Sul...


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