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africadosul1África do Sul - Le Monde Diplomatique - [Greg Marinovich] O choque provocado pelo massacre de Marikana se espalhou muito além das fronteiras da África do Sul. Dezoito anos após o renascimento democrático, a polícia atirou em mineiros em greve, com a intenção de matar.


Sob o olhar das câmeras, cercados por uma fita de aço e vigiados por unidades especiais de intervenção da polícia, milhares de homens em trajes tradicionais estavam reunidos para ocupar a mina laranja de rocha vulcânica que se derramava sobre a savana ressequida no pé da colina. Eles entoavam antigos cantos de guerra. Oito homens e duas mulheres já estavam mortos perto desse refúgio geológico. O violento confronto entre mineiros e o gigante britânico Lonmin não parecia querer parar. A morte de dois policiais durante uma altercação iria precipitar os acontecimentos.

Nesse dia 16 de agosto, a Wonderkop – a colina das maravilhas – estava cercada por policiais antitumulto e uma dezena de veículos blindados. Um pouco mais abaixo, na estrada esburacada que leva ao vilarejo mineiro de Marikana, mais de duzentos outros, além de agentes de segurança privada, faziam sua refeição em marmitas de plástico. Alguns jogaram os recipientes vazios no chão e urinaram tranquilamente sobre a grama seca da savana, um gesto ritual, fundamental antes do assalto, que os coletes à prova de balas e as armas tornam difícil.

Na colina, os mineiros se deslocavam com cartazes que mal se conseguia decifrar. Eles são perfuradores, malaishas (os que retiram os escombros) e chisaboys (assistentes do responsável pelos explosivos); saem das entranhas da terra, onde extraem, da rocha fumegante, alguns preciosos gramas de platina.

Desde 10 de agosto, os empregados do poço de Marikana tinham entrado em greve para apoiar os que entre eles recebiam salários mais baixos. Sua reivindicação: aumentar o salário mínimo para 12.500 rands por mês (cerca de R$ 3 mil). O de um perfurador está entre 4.350 e 5.100 rands, bonificações e deduções incluídas. Como esperado, a direção recusou, posto que o contrato salarial assinado com o Sindicato Nacional dos Mineiros (NUM, na sigla em inglês) – o mais importante dos sindicatos do Congress of South African Trade Unions (Cosatu) – só deveria terminar em 2013.

Foram os operadores de perfuração que convocaram a greve. Esses homens trabalham em contato com a parede, oito horas por dia, com uma broca de 25 quilos que vibra loucamente, sem nunca conseguirem ficar em pé. Em caso de deslizamento de terra, eles podem perder os dedos ou até mesmo a vida. Esse é o trabalho mais perigoso na mina. No entanto, eles só ganham 4 mil rands por mês.

Os mineiros se sentem insultados e denegridos pela administração, que os ignora, e por seus representantes sindicais, que não os defendem. “Mesmo que eu pertença a um sindicato”, explica um perfurador, “não me sinto representado. Quando expresso minhas preocupações, elas não são repassadas, e não tenho nenhuma influência. Nunca me beneficio com as decisões tomadas. Sinto-me o tempo todo violado e tenho de trabalhar submetendo-me a uma violência pessoal. Apesar da minha força, sou impotente. [...] Se nós não fizéssemos nosso horrível trabalho, será que os outros trabalhadores mais bem remunerados da mina poderiam fazê-lo? Vamos obrigar nosso sindicato e nosso empregador a nos ouvir. Vamos aplicar uma violência objetiva até que ouçam nossas reivindicações”. Daí a greve, a marcha e os assassinatos.

Dispostos a suportar a violência, os grevistas, nesse 16 de agosto, esperavam em frente à mina, como diante de um altar, que sua humanidade lhes fosse devolvida. Eles se voltaram para as tradições. Em uma cavidade na parte inferior da colina, longe da vista, participavam de antigos rituais secretos para obter imunidade contra seus inimigos, para que as balas das forças da ordem se transformassem em água.

Na parte da tarde, a polícia apertou o cerco ao redor dos mineiros, os quais perceberam que um espaço permanecia livre entre o círculo e os blindados. Quando os líderes se aproximaram dessa única porta de saída, a polícia começou a dar tiros de gás lacrimogêneo e balas de borracha. Um mineiro respondeu com uma pistola; uma dúzia de policiais sacou então suas armas automáticas e abriu fogo.

Diante das câmeras, pelo menos doze homens caíram. De acordo com depoimentos e provas coletadas na cena do crime, eles seriam ainda mais numerosos, mortos fora da vista dos jornalistas. Catorze mineiros perderam dessa forma a vida em um lugar chamado Small Koppie (pequena colina), a maior parte quando tentava se render às forças de segurança. “Lembro que um dos nossos disse ‘nós nos rendemos’, levantando os braços para o alto”, declarou uma testemunha. “Os policiais o atingiram nos dedos. Ele se abaixou. Depois, levantou-se de novo e disse: ‘Senhores, nós nos rendemos’. Na segunda vez, a bala o atingiu no peito e ele caiu de joelhos. Ele tentou se levantar ainda uma vez, e a terceira bala o atingiu na lateral. Então, ele caiu, mas ainda estava tentando se mover... O homem atrás dele, que também tentava se render, levou um tiro bem na cabeça e caiu ao seu lado”.

Várias testemunhas disseram ter ouvido a polícia dizer que aquilo era a justiça para aqueles “assassinos de policiais”. Como tal execução extrajudicial em grande escala pôde acontecer? Em algum lugar nos altos escalões da polícia, e certamente na política, alguém decidiu que os mineiros não podiam ganhar. A grande maioria dos policiais tinha sido equipada com rifles de assalto, e não com o equipamento utilizado em caso de tumultos. Ainda ignoramos quais eram suas ordens.

Em Marikana, 34 mineiros foram mortos, 78 feridos. Nenhum policial foi processado até o momento, mas, por uma aberração jurídica com base em uma lei da era do apartheid, mais de duzentos mineiros foram acusados de matar seus próprios companheiros. Apesar de o processo ter sido rapidamente retirado, as operações policiais continuaram, com devassas nos alojamentos dos trabalhadores. E, embora a escalada da violência pareça ter diminuído, a Lonmin anunciou planos para demitir 1,2 mil funcionários. Intensas discussões entre a indústria, os sindicatos e o poder deveriam permitir salvaguardar as aparências e retomar a atividade mineradora, vital para o país; mas os mineiros temem ser os grandes perdedores nesse episódio.


Greg Marinovich é jornalista e fotógrafo em Johannesburgo

Ilustração: Siphiwe Sibeki / Reuters. Mineiros exibem retrato de colega assassinado em Marikana


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