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Trump déspotaEstados Unidos - Laboratório Filosófico - [Rafael Silva] Donald Trump é politicamente incorreto? Ou dizer isso dele seria um elogio que ele sequer merece?


O filósofo Slavoj Žižek, no texto “Trump e o retorno do politicamente incorreto”, usa o patético bilionário candidato à candidato à presidência dos EUA para exemplificar a “tendência de aviltamento de nossa vida pública”. Realmente, ninguém melhor –ou pior- do que Trump para, publicamente, fazer com que os aviltamentos envolvidos no racismo, na xenofobia e no machismo, só para citar alguns, tomem novo fôlego e ameacem a sociedade americana e, por consequência, espreitem o resto do mundo. Para Žižek, no entanto, os “estouros vulgares” de Trump servem apenas para “mascarar a incontornável ordinariedade de seu programa”. Só que a vulgaridade explosiva de Trump não para por aí.

O problema do texto de Žižek é dizer que Trump é politicamente incorreto, pois isso pressupõe que o bilionário de fato age politicamente, para só então, a posteriori, sua atuação política poder ser consideradaincorreta. Ao assumirmos peremptoriamente que Trump é politicamente incorreto podemos estar nos alienando de uma verdade muito mais profunda e radical, qual seja, que Trump não age politicamente, muito embora esteja agindo na ágora política. Para não sermos enganados pelos jargões de efeito, é melhor esclarecer a diferença entre agirpoliticamente e agir não-politicamente, ou o que é o mesmo, despoticamente.

Aqui é preciso lembrar, todavia com a ajuda de outro filósofo, Baruch Spinoza, que na natureza não há certo nem errado, bem nem mal, mas só coisas e ações que em si mesmas são somente verdadeiras porque reais, e que certo e errado, bom e ruim, são apenas atribuições posteriores, dadas de acordo com os valores de cada um. Essa lembrança spinozana deve servir para esclarecer-nos de que a ação não-política não é má nem errada por natureza, assim como o acerto ou o bem não estão necessariamente presentes na ação política.

É fundamental também lembrarmos que a política foi uma invenção grega do século VI a.C. alternativa às relações despóticas entre os homens. O homem político, isto é, o “polites”, era aquele que não mais resolvia os seus problemas valendo-se da força bruta. O “polites”, isto é, o político substitui o “despotes”, ou seja o déspota. Discurso no lugar de violência, ou, em outras palavras, civilidade no lugar de barbárie, eis o movimento que fez surgir a política na antiguidade mediterrânea. Infelizmente, aqueles virtuosos políticos gregos não deixaram de ser viciosamente despóticos na esfera doméstica, com seus escravos ou com os estrangeiros, coisa que, infelizmente, tampouco a nossa contemporaneidade conseguiu transformar em passado.

Para a pergunta que Žižek, no seu texto, coloca na boca dos politicamente incorretos, qual seja, “mas por que falar de educação, polidez e modos em público hoje, num momento em que estaríamos diante de problemas muito mais urgentes e ‘reais’?”, os gregos antigos já tinham a resposta certa que o filósofo contemporâneo faz parecer ser nova e sua, qual seja: “bem, porque os modos importam sim – em situações tensas, são uma questão de vida ou morte, uma linha tênue que separa a barbárie da civilização”. Agora, se a polidez e os bons modos são sempre necessários à civilização, é porque as suas ausências são sempiterna e resistentemente presentes: é porque não conseguimos deixar de ser bárbaros, despóticos e grosseiros que precisamos tanto exercitar civilidade, política e polidez. É uma questão de vida ou morte!, dizem-nos os políticos antigos e o filósofo contemporâneo.

A relembrança da gênese da política deve ajudar na recolocação da pergunta: Trump age politicamente –para então poder fazê-lo de modo incorreto? Agora podemos responder com mais propriedade se ele agepoliticamente, ou, em troca, apenas age despoticamente. Entretanto, no caso de ser genuinamente despótico, faz sentido perguntar se tal despotismo é correta ou incorreto? Ou, antes, quando um déspota age incorretamente, isto é, da perspectiva do despotismo não é absolutamente despótico, e a sua natureza bruta deixa de se impor sobre os demais, não estaria ele automaticamente sendo político? Os gregos pré-políticos não teriam sido déspotas incompetentes pelo fato de terem começado a resolver as suas diferenças mediante o verbo e não mais por meio da violência? Se sim, bendita incompetência!

Trump, mediante os seus racismo, xenofobia e machismo outra coisa não faz que agir violentamente e sem polidez alguma contra hispânicos, negros, muçulmanos, gays e mulheres. Não é o caso, portanto, de dizer que o bilionário americano é politicamente incorreto, visto que sequer é político, mas totalmente despótico. É de sua grande e brutal força econômica e midiática que ele se vale para tentar impor, despótica e verticalmente, os seus anacrônicos valores individuais sobre os valores que, contemporânea e horizontalmente, a sociedade americana –mas não só ela- tenta construir para si mesma.

Desculpe-me, Žižek, mas Donald Trump é politicamente incorreto apenas metaforicamente, pois, literalmente, é absolutamente despótico. Melhor dizendo, corretamente despótico ao forçar seus propósitos pessoais contra uma sociedade inteira, ignorando deliberadamente os contradiscursos mais racionais. Chamar Trump de politicamente incorreto é impróprio em se tratando de alguém que sequer consegue ser político. Na verdade, ele é um déspota corretíssimo que, hoje, usucapia o parlatório político para, ao contrário dos gregos “politikos”, afirmar a violência, a estupidez e a miséria retórica no lugar da civilidade, da polidez e da virtude do diálogo político.


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