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iemen arabiaIémen - O Diário - [Lara Aryani] Já vai em mais de dois meses a guerra de agressão ao Iémen desencadeada pela Arábia Saudita.


Também aqui, a guerra é a continuação da política por outros meios. Muito antes de ter caído a primeira bomba no Iémen havia já uma crise insanável, a economia estava paralisada, o governo central estava na bancarrota e a fome surgira. O papel da Arábia Saudita devastando a economia e mantendo um regime político corrupto e ineficaz não foi pequeno. Que a campanha unilateral da Arábia Saudita pretenda estar a ajudar o povo iemenita, protegendo a soberania do seu país e combatendo a «intervenção estrangeira» nos seus assuntos é, se não irónica, pelo menos trágica.

A 21 de Abril de 2015, a coligação bélica dos estados árabes com a Arábia Saudita à frente anunciou que a «Operação Tormenta Decisiva», a campanha militar contra o Iémen iniciada a 25 de Março, tinha passado a uma nova fase, mais pacífica, denominada «Operação Restaurar a Esperança». Pouco depois, o presidente iemenita Abd Rabbu Mansur Hadi pronunciou o seu primeiro discurso à nação a partir do exílio na Arábia Saudita, repetindo muitas das acusações anteriores e ultimatos aos huties. Os bombardeamentos recomeçaram horas depois desse anúncio da coligação, e mais de uma semana depois não mostram sinais de desacelerar. Parece que pouco mudou excepto a denominação da guerra. Mas o que esta nova fase confirmou é que nenhuma das tentativas a favor da «paz» da Arábia Saudita no Iémen — quer sob o pretexto da «Operação Restaurar a Esperança» ou qualquer outra será provavelmente mais violenta e permanente que a sua guerra actual.

A Arábia Saudita utilizou a «Operação Tormenta Decisiva» (e agora a «Operação Restaurar a Esperança») para marcar um novo capítulo na sua própria história como potência política e militar. Há poucas dúvidas de que o reino procura assegurar uma posição hegemónica regional semelhante à dos Estados Unidos, ou até em sua substituição. Desde que se formou velozmente a «coligação dos dispostos» (e dos subornados) e se iniciaram as campanhas bélicas hiperbolicamente anunciadas nas conferências de Imprensa diárias, que podem confundir-se com as informações da NATO sobre o Afeganistão, está claro que a Arábia Saudita modelou a sua personalidade militar pelos Estados Unidos. Talvez o que melhor manifeste a sua intenção de apropriar-se da voz hegemónica dos Estados Unidos na região é que mascarou o seu militarismo agressivo e unilateral com a linguagem da rectidão. Do mesmo modo que o presidente George W. Bush iniciou a sua guerra contra o Iraque em nome da «democracia» e da «liberdade», também o rei Salman e o seu filho Muhammad, de 28 anos de idade, ministro da Defesa e príncipe herdeiro adjunto, empregaram a linguagem da «legitimidade» para justificar as suas acções brutais no Iémen.

A mesma noção de «legitimidade» transformou-se de tal modo no tropo central da guerra que no dia em que se iniciaram os bombardeamentos o porta-voz da coligação dirigida pelos sauditas proclamou num tom cheio de confiança e um tanto críptico que a Arábia Saudita continua a coordenar com legitimidade. Com a estupidez de tal declaração em grande medida aceite, o absurdo da propaganda não pareceu solapar as suas afirmações. A poucas horas de ter lançado a «Operação Tormenta Decisiva», ficara claro que a Arábia Saudita tinha poder para ditar a narrativa de guerra. O Reino saudita utilizava a linguagem da «legitimidade» para ocultar a política do poder e impor binários que resultam já demasiado familiares desde que se iniciou a «guerra global contra o «terror» legítimo contra o ilegítimo, Estado contra terroristas, justo contra injusto. Arábia Saudita/Árabes contra o Irão, sunitas contra shiitas e nós contra eles. Ao agir assim os governantes sauditas frustraram qualquer possibilidade de discurso político alternativo que rechaçasse tanto Hadi, com os seus associados sauditas, como a aliança huties/Saleh, e que pudesse supor a recuperação do projecto de estabelecer um Estado que seja mais justo e representativo.

Embora a Arábia Saudita tivesse proclamado a sua liderança e legitimidade na esfera internacional, o regime investiu também muitos esforços em justificar a guerra a nível interno. Como outros países da coligação bélica, o regime saudita utilizou mão dura para proteger o seu manto interno de rectidão impondo muitas sentenças de vinte anos de prisão a qualquer saudita que critique a guerra. O Bahrein, o Kuwait, a Jordânia e potencialmente outros estados da coligação seguiram rapidamente o exemplo.

Mas os países da coligação não estão sós na sua tentativa de conseguir o apoio, ou pelo menos a aquiescência, das suas populações. Hadi e o seu governo no exílio, os huties e os seus partidários e o resto de facções com interesses na política iemenita têm sido actores importantes na mais longa guerra pela legitimidade que se tem desenrolado no Iémen. Uma guerra anterior à Operação Tormenta Decisiva que foi criando as condições políticas que tornaram possível a guerra actual.

O movimento hutie de Saada a Sanaa

Ansar Allah, o movimento que é mais conhecido como o dos huties, tem as suas próprias afirmações sobre a legitimidade. Quando em 2010 se iniciou a revolução já levavam quase uma década implicados numa rebelião activa no norte contra o regime do então presidente Ali Abdullah Saleh. No entanto, depuseram de boa vontade as armas e correram para Sanaa em camiões carregados de homens e mulheres para incorporar o movimento não violento na Praça da Mudança. Eles, e outros manifestantes, exigiram a demissão de Saleh e a reconfiguração do Estado de forma mais equitativa. O período pós-revolucionário incluiu a eleição do então vice-presidente de Saleh, Hadi, como candidato único — que continuou a governar uma vez terminado o seu mandato de dois anos em Fevereiro de 2014 — eleição que foi seguida pela Conferência pelo Dialogo Nacional (CDN). A CDN representava um processo de transição auspiciado pelo Conselho de Cooperação do Golfo (CCG), e convidou-se a participarem nela as principais facções do Iémen embora vários dirigentes do movimento secessionista do Sul Hirak a boicotassem, desde o início.

Quando a CDN terminou, dois representantes huties na conferência tinham sido assassinados e o movimento de jovens que iniciou a revolução estava praticamente silenciado. Tanto os huties como os secessionistas do sul denunciaram os resultados da Conferencia. A abertura politica criada durante a revolução de 2012 para transformar o governo e torná-lo mais justo e representativo parecia pertencer ao passado. As instituições políticas que Saleh criou para perpetuar o seu domínio autoritário voltaram a reaparecer e o próprio Hadi parecia ter passado a maior parte do tempo que esteve no poder a acumular quantidades maciças de riqueza. Os huties, que tinham investido profundamente nos resultados da revolução, estavam com toda a razão preocupados com a restauração de um statu quo em que ficavam marginalizados a nível político, económico e cultural.

A revolução de 2011 e a sua recusa ao governo de Saleh criaram as condições pelas quais a população iemenita se sentiu justificada e capaz de desafiar um sistema político autoritário. A destituição de Saleh e as promessas da revolução de estabelecer um Estado verdadeiramente democrático deram aos iemenitas de todas as classes sociais — não só à elite política tradicional — um sentimento de propriedade do seu país e muitas expectativas no seu sistema político. Tinha-se criado uma oportunidade crucial para quebrar o statu quo para o bem de todos. Mas o período pós-revolucionário viu como os resíduos do regime de Saleh — incluídos os agentes da Arábia Saudita — geriam um processo de transição que obstava intencionalmente aos objectivos da revolução e reforçava as estruturas de poder do antigo regime. Não é surpreendente pois que os huties, entre outros, proclamassem que o processo de transição, a presidência de Hadi e o seu governo eram legítimos.

A experiência dos huties como grupo marginalizado e a sua disposição inicial para negociar compromissos e forjar alianças políticas durante a revolução e no imediato período pós revolucionário deveriam ter-lhes trazido credibilidade e afirmado a liderança política. Mas qualquer aparência de abertura política se dissipou imediatamente logo que chegaram ao poder. O facto de os huties terem governado utilizando bastante a violência e a repressão desde que iniciaram a sua marcha para Sanaa em Setembro de 2014, supôs uma espécie de bênção para a legitimidade e apoios à Operação Tormenta Decisiva e ao presidente iemenita. Hadi, embora tenha sido larga e universalmente vilipendiado como dirigente corrupto e ineficaz, ocupa no entanto um cargo público que as pessoas respeitam. Por outro lado, considera-se a amplos níveis que os huties se apoderaram ilegalmente do controlo do estado através da sua milícia, com o apoio de facções do exército que ainda se mantêm leais a Saleh. Desde aí, adoptaram duras medidas contra os meios de comunicação críticos: prenderam, sequestraram e torturaram activistas políticos, disparam sobre manifestantes pacíficos, executam opositores políticos e militares; encarceraram quase metade da liderança do partido Islah e dezenas de jovens activistas e iniciaram uma guerra sem piedade em Áden que massacrou a população civil e reduziu a cidade a escombros. Paralisou os ministérios estatais e desmantelou outras instituições do estado numa resposta feroz à corrupção do governo. Criaram um clima de exclusividade politica aos caprichos de determinados dirigentes huties. E, mais inquietante para muitos iemenitas, os huties defendem também a ideia de uma liderança política justa que governe em nome de Deus e a religião e peça o regresso do imanato. Se isso, assim como o slogan dos huties «Morte aos Estados Unidos, morte a Israel, maldição para os judeus, vitória para o Islão» reflecte um objectivo político real ou é um mero estilo retórico é algo sujeito a debate, mas os seus efeitos não são menos reais.

O delito de que mais consistentemente são acusados os huties é o de ter fundamentado a sua teórica sectária, marginalizando os sunitas e colocando os zaidies em todas as esferas dos aparelhos estatais e militares. Não há dúvida de que atacaram os seus opositores políticos, que são predominantemente sunitas, incluindo Hadi o seu governo, o partido Islamita Islah e a Al-Qaeda na Península Arábica (AQPA). Está também claro que promoveram o poder aos próprios homens que, como era de esperar, são zaidies. Mas a história do movimento huti é a história das tribos da governação de Saada e não a dos zaidies do Iémen. É uma história de opressão política, económica e cultural não muito diferente das histórias que emanam de outras periferias regionais do Iémen, incluindo o Iémen do Sul, Hadramawt e a Tihama. Saleh desenvolveu formas únicas de repressão para cada uma dessas populações, especializando-se a lançar cada região ou grupo social contra o outro, assim como a calar as suas queixas. O regime de Saleh acusou os huties de serem «agentes do Irão» e recusou as suas queixas legítimas alegando que só procuravam ligar-se ao poder para instaurar o imanato. Os milhões de dólares que vinham da Arábia Saudita e que gastaram a apoiar os esforços proselitistas salafitas por todo o Iémen — especialmente no longínquo norte — sentiram-se de forma aguda entre os zaides de Saada, especialmente no contexto de uma campanha militar brutal contra eles e do recente poder político do Partido Islamita Islah e da AQPA. Assim, embora não se possa duvidar do aumento agudo do sectarismo no Iémen durante os últimos anos, sobretudo desde que os huties marcharam para Sanaa, torna-se assombroso o alcance de que os huties consideram as suas acções como uma consolidação do poder em mãos das famílias e tribos dos seus partidários acima de uma campanha sectária ideologicamente impulsionada. Ao converterem o favoritismo tribal numa forma banal de corrupção que quase todas as elites dominantes do Iémen utilizaram, o desafio discursivo perante o statu quo sunita que os iemenitas acharam tão alienante e inflamatório torna-se mais credível.

O governo iemenita no exílio

Entretanto, grande parte do resto do mundo, assim como os cidadãos dos países que fazem parte da «Operação Tormenta Decisiva» mal podem entender a complicada e cambiante teia da política iemenita. Mas demonstram ser uma audiência receptiva perante a narrativa de que os huties podem ser substituídos pelo Irão e de que a guerra é apenas uma luta pelo poder regional entre a Arábia Saudita e o Irão, ou pior ainda, que é uma renovação da disputa medieval entre sunitas e shiitas. Hadi e o seu governo, ou o que resta dele, têm sido os defensores mais entusiastas desta narrativa de «guerra por poderes». A 12 de Abril de 2015, Hadi publicou um artigo de opinião no New York Times pondo toda a culpa da crise do Iémen no Irão. A história que vale, e que o regime saudita apoia, é que ele é o presidente «legítimo», democraticamente eleito, do Iémen. Segundo a sua história os iranianos, assim com os palhaços dos huties, derrubaram o governo de Hadi numa tentativa de ficar com o controlo do Iémen, um país que divide uma fronteira longa e insegura com a Arábia Saudita e cuja situação estratégica no estreito de Bab-al-Mandab lhe proporciona o controlo sobre todo o tráfego para o canal do Suez. De resto, garante, a «Operação Tormenta Decisiva» é uma campanha legal e moralmente justificada que teve início apenas a convite do governo legítimo do Iémen. Que o presidente destituído Ali Abdulah Saleh e as dezenas de milhares de soldados iemenitas que lhe são leais tivessem proporcionado um apoio crucial aos huties — numa recente e inesperada aliança — não encaixa na narrativa da «marioneta» do Irão, mas serve para alimentar o argumento da legitimidade dos huties.

No momento de escrever estas linhas, Hadi continua a governar a partir de Riad com éditos para o povo através do facebook e do débil poder presidencial que ostenta reorganizando entre os seus seguidores — que também encontraram o seu caminho para o exílio na capital saudita — as nomeações de gabinete, enquanto o povo iemenita ri e chora perante a impotência e inaptidão do presidente legítimo do Iémen. Hadi e os seus deputados desempenharam sem dúvida um papel destacado (pelo menos no início) no desenvolvimento da estratégia politica e militar da «Operação Tormenta Decisiva». É aliás curioso que a Arábia Saudita e o governo de Hadi não se tenham manifestado mais fortemente contra o apoio prestado pelos militares iemenitas presentes em Riad, entre os quais se destaca o general Al Mohsen. Levando em conta a campanha militar que tanto dependeu do convite e da implicação do governo do Iémen para evitar acusações de unilateralismo ilegal, essa omissão poderia explicar-se melhor pela medida em que a Arábia Saudita se sente tão pronta a demonstrar que pode empreender guerras de motu próprio.

A violência da guerra e a paz

A campanha militar está já no segundo mês e causou uma catastrófica crise humanitária no Iémen. A Arábia Saudita atacou infra-estruturas essenciais — aeroportos, estradas, fábricas e centrais eléctricas — num país que mal pode permitir-se manter essas infra-estruturas, quanto mais reconstruí-las. Atacaram-se objectivos civis, incluindo um campo de refugiados, um armazém de produtos humanitários da Oxfam, postos de gasolina, escolas e edifícios residenciais, provocando numerosas vítimas. A campanha impôs um bloqueio marítimo e aéreo num país onde mais da metade da sua população padece de insegurança alimentar e importa a maior parte dos alimentos, e até quase todo o arroz e trigo. O embargo causou uma escassez de combustível que chegou a paralisar praticamente todo o tipo de transporte. Está também cortado o acesso à água e há risco de paragem total das telecomunicações.

Apesar do crescente número de vítimas civis e de uma vida diária praticamente insuportável, um número surpreendente de iemenitas apoia a «Operação Tormenta Decisiva». Muita gente, especialmente aqueles que experimentaram a guerra com os huties no sul, mostram-se politicamente pragmáticos no seu apoio a uma campanha militar que ataca os seus rivais políticos. Mas há muitos outros que têm uma visão menos cínica do papel da Arábia Saudita no Iémen. Alguns vêem os sauditas como «irmãos» numa longa história de intercâmbios culturais, religiosos e económicos e a Arábia Saudita como o «bastião árabe» contra a influência iraniana. Os menos sentimentais garantem que a intervenção saudita é benigna em comparação com outras intervenções estrangeiras (especialmente do Irão), porque pelo menos a Arábia Saudita está interessada na paz e estabilidade regionais embora seja só em função dos seus próprios interesses políticos.

O grau de implicação do Irão no Iémen em geral e a sua influência sobre os huties em particular tem sido objecto de muitos debates. Embora os governantes sauditas tenham dependido em grande parte de histórias de que os huties são marionetas nas mãos do Irão, os jornalistas e representantes de outros governos, incluindo os Estados Unidos, manifestaram uma perspectiva mais céptica sobre o verdadeiro nível do peso do Irão em Saana. Porém, o debate sobre o grau e efeito da implicação iraniana no Iémen continua a ser irrelevante perante as criticas à campanha militar saudita. Ou, pior ainda, serve intencionalmente para desviar a atenção de mais de meio século de influência saudita no Iémen com efeitos muito mais prejudiciais que a intervenção de qualquer outra potência estrangeira. Até a Conferência para o Diálogo Nacional, que devia ter sido o compendio de uma revolução que captou os corações e esperanças dos povos do Iémen, foi apenas utilizada como ferramenta para atrasar o processo de mudança enquanto a Arábia Saudita e os seus aliados no Iémen consolidavam o seu poder e apunhalavam as instituições autoritárias erigidas sob Saleh. Mas não existe qualquer debate sobre as longas décadas de intervenção da Arábia Saudita nos assuntos iemenitas e o seu financiamento de políticos iemenitas de todos os partidos, incluindo os que ocupavam os níveis mais altos do poder.

A crise humanitária hoje existente não se originou na campanha militar mas é fruto de um regime político e económico que Saleh criou e a Arábia Saudita e os Estados Unidos patrocinaram, Hadi perpetuou e os huties exacerbaram. Muito antes de ter caído a primeira bomba no Iémen havia já uma crise insanável, a economia estava paralisada, o governo central estava na bancarrota e a fome surgira. O papel da Arábia Saudita devastando a economia e mantendo um regime político corrupto e ineficaz não foi pequeno. Que a campanha unilateral da Arábia Saudita pretenda estar a ajudar o povo iemenita, protegendo a soberania do seu país e combatendo a «intervenção estrangeira» nos seus assuntos é se não irónica pelo menos trágica.

Vitória saudita, perda iemenita

Embora a Arábia Saudita começasse a «Operação Tormenta Decisiva» com a expectativa de que a sua campanha de bombardeamentos estilo «comoção e pavor» conseguisse a rendição rápida e decisiva dos huties e do seu aliado Saleh, a campanha experimentou a sua primeira mudança de imagem. Entretanto, os huties mantêm-se inquebrantáveis. Ainda não está claro se a Arábia Saudita sairá «vitoriosa» do Iémen, não obstante a sua proclamação da vitória no contexto da «Operação Restaurar a Esperança». Mas existe também a possibilidade de que a Arábia Saudita acabe esgotada e se retire. Ou talvez, de forma mais ominosa, a campanha da Arábia Saudita poderá continuar depois dos passos de espreita da «Operação Restaurar a Esperança» original, uma campanha militar norte-americana na Somália, disfarçada com a desculpa de «intervenção humanitária». Tal como hoje a Arábia Saudita, o governo dos Estados Unidos utilizou essa operação como «exemplo» da sua agressiva liderança militar, mas as tropas norte-americanas imiscuíram-se no conflito e a campanha acabou mal, deixando a Somália em ruínas e os Estados Unidos com outro fiasco militar.

Passaram-se aproximadamente cinquenta anos desde que a Arábia Saudita e o Egipto invadiram o Iémen para (re)instalar um regime a gosto deles. Essa guerra da década de 1960 culminou com a derrota do imanato zaidi apoiado pelos sauditas, o triunfo de um regime republicano no norte do Iémen e a reafirmação da supremacia militar e política do nacionalismo árabe nasserista (embora essa vitória fosse efémera) O poder e as alianças têm vindo a mudar com o passar do tempo mas o ímpeto da intervenção continua a ser o mesmo. Depois de décadas a impulsionar o Islão politico como bastião contra o nacionalismo árabe nasserista e outras ideologias da esquerda, a Arábia Saudita surgiu como vencedor poderoso. Em vez de tramar em segredo acordos políticos à porta fechada, financiar apoderados locais ou despachar exércitos de missionários e emissários religiosos e culturais, a Arábia Saudita declara hoje ao mundo que está a afirmar o seu poder de forma inequívoca e com a autoridade que só a «legitimidade» pode conferir.

Se a Arábia Saudita chega a proclamar a «vitória» na campanha actual, o controlo que tem exercido sobre o Iémen nas últimas décadas e que tratou de manter durante o período revolucionário posterior a 2011 ver-se-á reforçado com uma beligerância, prerrogativas e «legitimidade» nunca antes conhecidas. A Arábia Saudita está já a adiantar um plano Marshall para o Iémen, e há perspectivas que permitem que o país entre no CCG como retribuição da destruição causada pelas suas actuais incursões militares. O sistema autoritário que a Arábia Saudita tem apoiado há tanto tempo, e que tratou de salvar quando surgiu o processo de transição, entrincheirar-se-á muito mais que na época do regime de Saleh. Embora a perspectiva dos petrodólares e dos empregos na CCG possa parecer atractivo para um pais atingido pela guerra e que está a morrer à fome, a «Operação Restaurar a Esperança» representa sem duvida uma afirmação de que a Arábia Saudita nunca foi um intermediário honesto da paz e da prosperidade no Iémen, e tem pelo contrário estado à espreita na sombra desencadeando as lutas mais fracturantes para o país. Na melhor das expectativas quando parar o lançamento de mísseis e as negociações para calar o fogo em Omã ou qualquer outro lugar «neutro» tenham acabado o Iémen terá de lidar com as consequências de negociar com uma milícia rebelde impopular que está incontrolável devido à mão dura de uma potência imperial que sempre fez tudo o que estava ao seu alcance para subordinar e debilitar o estado iemenita. E como sempre o preço desse poder vai ser pago pelo povo com as suas esperanças e as suas vidas.


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