Embora as conclusões do “Time B” fossem gravemente distorcidas, tiveram um bem previsível impacto sobre os analistas da CIA, que rapidamente perceberam que suas carreiras estariam ameaçadas se insistissem em constatar que a economia soviética aproximava-se de crise econômica profunda e que, correspondentemente, o poder militar de Moscou também decaía.
As consequências desses exageros e distorções seriam profundas e duradouras. Depois de deixar o posto de diretor da CIA em 1977, Bush abraçou ideias super infladas-distorcidas do que seria o poderio bélico soviético e todas as previsões alarmistas construídas para serem usadas contra os esforços do presidente Jimmy Carter para conter o orçamento militar e impor algum tipo de controle sobre armas.
Depois que Reagan esmagou Carter na eleição de 1980, aqueles relatórios e previsões infladas-distorcidas passaram a servir como base para grande ampliação nos projetos de produção de armas nos EUA. Uma nova geração de carreiristas também já concluíra que a carreira só avançaria se se pusessem a repetir e endossar qualquer ideia que lhes chegasse do Time B.
Por exemplo, Goodman observa que um então ambicioso jovem vice-diretor da CIA,
Robert Gates,
“usou aquelas análises completamente inflado-distorcidas numa série de discursos que pronunciou para se autopromover no governo Reagan” (...) (p. 247).
“Nos anos 1980s (...), o diretor [William] Casey, da CIA, e o vice-diretor Gates (...) fizeram sua própria campanha pública para exagerar as capacidades soviéticas e justificar que os EUA fizesse investimentos gigantescos de dinheiro no programa “Guerra nas Estrelas” do presidente Reagan (...)” (p. 253).
“A CIA precisou de quase uma década para corrigir os registros e devolver a patamar real e confiável as estimativas e previsões. Mas o dano estava feito. O governo Reagan usou todos aqueles dados inflado-distorcidos sobre o poderio militar soviético para enterrar um trilhão e meio de dólares nos gastos ‘de defesa’ nos anos 1980s. Foram gastos altíssimos, para fazer face a uma ameaça soviética enormemente exagerada, e a uma URSS já em declínio” (p. 248).
Quando o bloco soviético começou a partir-se, no final dos anos 1980s, Gates e outros figurões na CIA continuavam a ignorar esse desenvolvimento histórico, porque continuavam programados para ignorar qualquer informação de inteligência que sugerisse alguma fragilidade em Moscou. Sim, mas... Quando já não era possível continuar a ignorar a realidade, esses e outros direitistas ativos simplesmente “acomodaram” a narrativa: passaram a dizer que a grande força militar que Reagan construíra e suas outras estratégias agressivas haviam derrotado os soviéticos que, afinal, haviam sido postos de joelhos.
E assim se inventou o Legado de Reagan. Em vez de aceitar os fatos, que os soviéticos estavam numa longa trajetória de declínio – que se poderia explicar em parte pelo sistema econômico e pelos avanços tecnológicos dos EUA para o programa espacial nos anos 1960s – e que a equipe de Reagan mentira sempre sobre a realidade soviética para justificar seus novos gastos militares, a Direita agarrou-se a um roteiro inventado. Reagan teria ordenado ao presidente Mikhail Gorbachev: “derrube esse muro”. E assim, presto, acabou-se a Guerra Fria!
Até hoje, reza a “sabedoria” convencional nos círculos do poder em Washington, que “Reagan venceu a Guerra Fria”. Mas, como Goodman escreve:
“Reagan é frequentemente coroado com os louros de ter derrotado a União Soviética e posto fim à Guerra Fria. A verdade é outra: o governo Reagan, apoiado na desinformação que lhe era fornecida por Casey e Gates, inflou a ameaça soviética; na sequência, reivindicou os créditos por ter superado a ‘ameaça’” [p. 285].
Começa a confusão afegã
A politização/partidarização da inteligência na era Reagan teve outras consequências negativas. Por exemplo, por causa do alarme inflado no governo Reagan contra a União Soviética, os EUA e a Arábia Saudita direcionaram bilhões de dólares em ajuda militar para fundamentalistas islamistas que combatiam contra o governo apoiado pelos soviéticos no Afeganistão.
Para que os suprimentos chegassem ao Afeganistão, o governo Reagan teve também de articular-se com a ditadura islamista no Paquistão; parte disso foi feito com ordens para que a CIA desviasse os olhos e “não visse” que os paquistaneses estavam construindo sua bomba atômica; e para que a Agência mantivesse bem longe dos olhos e ouvidos dos membros do Congresso qualquer informação que tivesse sobre isso. Escreveu Goodman:
“Em 1986 o vice-diretor da CIA, Gates, lançou um ultimato: não haveria qualquer referência sobre atividades nucleares no Paquistão, no Diário da Inteligência Nacional [orig. National Intelligence Daily], produto da CIA que era enviado às comissões de inteligência do Senado e da Câmara de Representantes” (p. 255).
Um dos efeitos da operação Reagan no Afeganistão foi o Paquistão ter-se convertido em estado armado com bombas atômicas (fato que, para muitos, configura a mais grave ameaça para todo o mundo contemporâneo); e o Afeganistão ter caído sob controle dos Talibã (os quais deram abrigo a Osama bin Laden e à al-Qaeda).
Mas o culto a Reagan que veio depois da Guerra Fria foi força determinante na condução dos eventos das duas últimas décadas, no governo Republicano e também no governo Democrata. Por exemplo, Goodman critica fortemente, em seu National Insecurity, a falta de visão estratégica do presidente Bill Clinton, que poderia ter afastado os EUA da paranoia da Guerra Fria e conduzido o país para posição muito menos militarista em todo o mundo. Escreveu Goodman:
“O presidente Clinton simplesmente não deu atenção suficiente à política externa, sempre mais interessado em, antes de agir, ler os resultados das pesquisas de opinião (...) Efeito disso, o presidente Clinton não deixou qualquer legado nem no campo da política externa, nem no campo de algum projeto de segurança nacional” (p. 141).
Em vez de projetar um caminho que conduzisse o país rumo a futuro de mais paz, Clinton curvou-se aos militares mais linha-dura.
“Clinton foi o primeiro presidente que não conseguiu fazer frente ao Pentágono e impor um grande tratado de controle de armas, quando se recusou a enfrentar a oposição que o Pentágono fez ao Comprehensive Test Ban Treaty (CTBT)”, escreveu Goodman (p. 128).
O retorno dos neoconservadores
Depois dos oito anos de Clinton, voltaram os neoconservadores, com George W. Bush; e – depois do 11/9 – foi uma nova grande “avançada” nos gastos militares para guerrear a “Guerra Global ao Terror” de Bush e dar fim a antigos adversários, como Saddam Hussein do Iraque.
Os neoconservadores, que já tinham afiado os dentes políticos ao exagerar a ameaça soviética nos anos 1970s e 1980s, voltaram aos velhos truques e golpes, outra vez inflando ameaças, dessa vez a ameaça que viria do Iraque, em 2002-2003. Outra vez foram ajudados e apoiados por funcionários carreiristas da CIA, dentre os quais o ultra maleável diretor George Tenet, que não ofereceu qualquer resistência a mais politização/partidarização da agência.
Diz Goodman:
“Quando George Tenet, diretor da CIA, fez aquele comentário infame [em dezembro de 2002], de que apresentar inteligência para justificar a guerra contra o Iraque seria “super fácil” [orig. slam dunk, aprox. “fácil como enterrar a bola na cesta de basquete”], não falava sobre apoiar a decisão do governo Bush de invadir militarmente o Iraque; referia-se, isso sim, ao que o presidente lhe ordenara, que apresentasse inteligência que convencesse o povo dos EUA e a comunidade internacional de que a guerra era necessária. De fato, a decisão de invadir o Iraque já estava tomada, sem qualquer consulta aos serviços de inteligência. Bush só precisava da contribuição dos serviços de inteligência para dar alguma ‘racionalidade’ ao caso, já decidido, da guerra ao Iraque” (p. 151).
Até funcionários da CIA muito mais íntegros – como o analista sênior,
Paul. R. Pillar – cederam às ordens da Casa Branca. Goodman escreveu que:
“Pillar afinal disse, num documentário para o programa Frontline da rede PBS, que fora diretamente responsável por militarizar a inteligência para o governo Bush. No documentário, que foi ao ar em junho de 2006, Pillar disse que o documento de inteligência [orig. “White Paper”] para justificar a invasão ao Iraque fora ‘diretamente solicitado, encomendado e publicado com objetivos bem claros (...) de reforçar o argumento a favor da guerra, para a opinião pública norte-americana” (p. 173).
E Goodman acrescentou:
“O fundo do poço da militarização da inteligência aconteceu quando o governo Buch pôs-se a selecionar a inteligência que desejava, ainda que não passasse de falsa inteligência sobre a indústria do urânio no Niger ou sobre laços que haveria entre Saddam e bin Laden” (p. 179).
O fracasso de Obama
Nem as violações, por Bush, da lei internacional, nem a corrupção política que brota do militarismo excessivo parecem ser problemas para o presidente Barack Obama, que assumiu em 2009.
Obama fracassou, ao “não dar qualquer importância às questões imorais que herdou do governo Bush”, escreve Goodman. E acrescenta:
“...a nenhuma vontade que Obama manifesta de atacar a questão da tortura e outros abusos é, talvez se possa dizer, o maior fracasso de seu primeiro governo, porque assim ignorou os crimes cometidos em passado recente e violações à lei nacional e à lei internacional. Assim deixa a porta aberta para que o próximo presidente recorra, novamente, às mesmas práticas” (p. 231).
Obama manteve, inclusive o alto comando militar de Bush, inclusive o Secretário de Defesa, Robert Gates, que ressuscitara da aposentadoria em 2006; e praticamente todos em Washington esqueceram seu passado muito comprometedor.
Para Goodman
“O Departamento de Defesa nas mãos de Bob Gates tornou-se ferramenta de ainda mais autopromoção, para que Gates acumulasse mais poder e influência. Quando Obama, sem sinal de alguma disposição para promover mudança significativa, tomou a decisão sem precedentes de manter o Secretário de Defesa do governo anterior, foi fácil entender que o país, tão cedo, não superará essa década de governança irresponsável” (p. 191).
Gates várias vezes cortou as asas do inexperiente Obama, como quando Gates recusou-se a atender o presidente, que lhe pedia opções para sair da guerra do Afeganistão, e só trouxe propostas para escalar o conflito e adotar uma estratégia de contrainsurgência de longo prazo. A insubordinação de Gates continuou até durante sua viagem de despedida, em 2011.
Como Goodman observou:
“Gates assumiu as posições da linha dura contra qualquer plena retirada do Iraque; contra a retirada do Afeganistão; contra qualquer redução significativa no orçamento da defesa; e contra qualquer reforma no processo pelo qual o Pentágono compra armamento. Em sua última semana, viajou a Bagdá e Kabul, onde contradisse o que o presidente Obama dissera e suas posições sobre o Iraque e o Afeganistão” (p. 201).
Tudo isso implica que, mais de duas décadas depois de a União Soviética ter sido extinta – e uma década depois de George W. Bush invadir o Iraque, sem que os EUA tivessem sofrido qualquer provocação – o complexo industrial-militar continua vivo e ativo, ainda operando, em grande parte, como Eisenhower alertou:
“Essa conjunção de um imenso establishment militar e uma imensa indústria de armas é novidade, na experiência dos EUA. A influência total – econômica, política, até espiritual – sente-se em todas as cidades, em todos os prédios dos governos estaduais, em todos os gabinetes do governo federal (...) Nos conselhos de governo, temos de nos precaver contra a influência que o complexo industrial-militar venha a ter, sem qualquer embasamento, deliberadamente buscada ou não. O potencial de ascensão desastrosa desse poder mal posto existe e persistirá”.
O livro de Goodman, National Insecurity, oferece resumo valioso de como esse “poder mal posto” realmente persiste. Além do que recomenda, para que se consiga afinal controlar o dinheiro que alimenta o complexo industrial-militar, Goodman também sugere que os EUA comecem, afinal, a se autoidentificar realistamente como parte da comunidade de nações, não como alguma espécie de policial planetário que se autocomanda.
“Os EUA têm de abandonar qualquer noção de “excepcionalismo”, que já levou o país a descolar contingentes militares para várias partes do mundo, como se assim promovessem valores norte-americanos” – escreveu Goodman (p.367).
Essa recomendação – além de outras observações ao longo do livro – ganham peso especial, porque vêm de um analista sênior da CIA, homem que viu acontecer, de primeira mão, o processo pelo qual o complexo militar-industrial corrompeu a república.