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1Akerman NYOpera Mundi - [Márcia Bechara] Com depoimentos de Akerman e de amigos e colaboradores, I don’t belong anywhere ressalta vocação para nomadismo da artista, morta em outubro.


Em 1975, uma jovem cineasta belga roubou a cena durante a Quinzena dos Diretores do Festival de Cinema de Cannes, na França. Seu filme, Jeanne Dielman, 23, Quai du commerce, 1080 Bruxelles, dividia, no entanto, os espectadores presentes na sala. Entre eles a escritora francesa Marguerite Duras, que não se conteve e deixou o cinema aos gritos de “Essa mulher é louca!”. “Louca é você”, retrucou Chantal Akerman, então com 25 anos e diretora da obra cinematográfica que, a partir da manhã seguinte à sua estreia em Cannes, começaria uma trajetória de consagração até se tornar um divisor de águas do cinema europeu e mundial.

Pérolas memoriais narradas em primeira pessoa como essa povoam o documentário I don’t belong anywhere – Le cinéma de Chantal Akerman (Eu não pertenço a lugar nenhum – O cinema de Chantal Akerman, em tradução livre), que ganhou projeção especial para uma plateia de convidados no último dia 7 de novembro no Centro Wallonie-Bruxelles, em Paris, antes de sair em turnê por festivais internacionais. A direção leva a assinatura da também belga Marianne Lambert, uma das mais profícuas colaboradoras de Akerman desde meados da década de 1990. O filme ganhou recentemente o status de corolário da artista: Chantal Akerman se suicidou aos 65 anos no último dia 5 de outubro, em Paris, 18 meses após a morte de sua mãe, Natalia, uma presença central em sua trajetória cinematográfica.

A direção de Marianne Lambert em I don’t belong anywhere opta por um recorte sobre o presente, abrindo a tela de cinema em grandes planos sobre as paisagens preferidas de peregrinação de Akerman, como Tel-Aviv, Paris, Nova York e Bruxelas. Confortável nesta moldura que enfatiza sua vocação para o nomadismo, Chantal se abre numa conversa íntima com seus interlocutores. “Quem a conheceu sabe como isso era difícil para ela. Somente ume equipe como a reunida por Marianne, com antigos colaboradores e gente em quem ela realmente confiava poderia resultar neste tipo de troca, de revelação”, afirmou Patrick Quinet, produtor de vários de seus filmes desde La Folie Almayer, filmado no Camboja em 2010 e lançado em Paris em 2012.

Foi também durante as filmagens de La Folie Almayer que Marianne Lambert começou a engendrar a ideia de documentar Chantal Akerman para a coleção “Cinéastes d’aujourd’hui” da Cinemateca da Federação de Valonia-Bruxelas. “Comecei a perceber claramente, quando me tornei sua diretora de produção, estando todos os dias no set com ela, que Chantal não correspondia nem um pouco ao perfil intelectualizado que sempre lhe foi atribuído. Pensei que era chegado um momento de fazer um documentário sobre ela, um convite que ela aceitou casualmente, em menos de cinco minutos, no fim de um jantar informal em Paris”, conta Lambert.

I don’t belong anywhere – le cinéma de Chantal Akerman, rodado em apenas duas semanas, resgata os trechos mais significativos dos mais de 40 filmes da artista belga, além de suas inúmeras instalações em vídeo, em pouco mais de uma hora de documentário. A direção de Marianne Lambert é leve e precisa, deixando o público descobrir a intensidade, a sensibilidade, a fragilidade e o talento de Chantal. Uma direção que encontra paralelo na visão da própria retratada, que afirma num de seus diversos testemunhos durante o filme: “Existem diretores como Hitchcock, que aliás eu adoro, que impõem ao espectador o seu recorte da cena, seja com um close de um objeto, um corte, existe sempre um direcionamento preciso do olhar do público, o público olha para o que o diretor quer. (...) Eu prefiro deixar os espectadores livres para descobrirem sozinhos o filme. Por isso a minha câmera é sempre desse jeito, parada, frontal”, afirma Chantal durante o filme.

Essa mesma câmera “parada e frontal” foi notoriamente uma das influências estéticas cruciais de Gus Van Sant em Last Days, produção norte-americana de 2005, que conta os últimos dias de um astro do rock enclausurado em sua casa de campo, filme inspirado pela trajetória de Kurt Cobain. “Last Days foi influenciado diretamente pelo impacto que tive quando vi Jeanne Dielman, 23, Quai du commerce, 1080 Bruxelles, de Chantal Akerman. (...) Chantal tem uma construção de imagem que eu chamo de arquitetural e que me marcou imensamente”, afirma Gus Van Sant em depoimento no documentário. 

Além de Van Sant, o filme de Marianne Lambert coloca em cena outros personagens da mitologia akermaniana, como a editora de imagens Claire Atherton, parceira essencial em seus filmes, e a atriz Aurore Clément, protagonista de Les rendez-vous d’Anna, de 1978. Sentada num quarto de hotel de Bruxelas, num cenário que reproduz um ambiente típico da década de 1980, Aurore afirma que o cinema da diretora belga sempre mostrou coisas “insuportáveis”, coisas que não poderiam ser mostradas. “Seus filmes incomodavam o público, e continuam incomodando”, pontua.

“Todo documentário deve ter algo de ficção, e toda ficção deve ter algo de documentário”, afirma Chantal Akerman com sua voz rouca e seu timbre metálico característico em I don’t belong anywhere. Esta afirmação da diretora belga encontra eco em toda a sua obra. Chantal não foi uma artista de meia palavras nem de concessões. Adolescente, decidiu que seria diretora de cinema aos 15 anos após assistir “por acaso” ao filme Pierrot le Fou (1965), de Jean-Luc Godard, um dos cânones da Nouvelle Vague francesa. “Tinha ido ver o filme porque tinha gostado do título, nessa época a gente ia com a turma ver os filmes simplesmente, para tomar um sorvete, se divertir. Eu estava com a minha namorada da época e, depois daquela sessão de cinema, eu disse pra ela: é isso que eu quero fazer da minha vida. (...) Pensei: mas então cinema também pode ser isso, também pode ser poesia, pode ser outra coisa?”, conta Akerman num relato apaixonado e divertido, que parece entrar em oposição direta com sua personalidade assumidamente bipolar, entre períodos difíceis e internações, sobretudo após a morte de sua mãe em 2014.

Sobrevivente da Shoah, o nome judeu para a catástrofe do Holocausto, Natalia, de origem polonesa, foi enviada ainda jovem com seus pais para o campo de concentração de Auschwitz, de onde retornou sozinha e nunca mais falou sobre o assunto. “Eu, no entanto, sempre senti o sofrimento de minha mãe, completamente, inteiramente, mesmo ela tendo se recusado a comentar depois”, declara Chantal em I don’t belong anywhere. A presença materna será referência central e recorrente até seu último filme, No Home Movie, lançado durante o Festival de Locarno (Suíça) de 2015.

Quando vida e obra se misturam, tudo vira celebração e referência, mesmo se a morte ronda a festa. O transtorno bipolar da artista foi amplamente utilizado por ela, inclusive em algumas de suas instalações mais famosas como Maniac Summer e Maniac Shadows. “As pessoas perguntavam: ‘quem é essa nova videoartista?’”, diverte-se Chantal em depoimento durante o documentário. “Uma prova de que as pessoas de cinema não vão ao museu, e as pessoas de museu não vão ao cinema, uma pena”, lamenta.

Baixinha, direta e com seu andar clownesco e decidido, Chantal não poupa críticas a eventuais desafetos. O fracasso do filme que pode ser considerado o único empreendimento assumidamente comercial da diretora, a produção hoolywoodiana Um divã em Nova York, de 1996, é um desses momentos. “Juliette (Binoche) queria fazer um filme comigo, evidentemente porque eu estava nos Estados Unidos e ela estava interessada em filmar por lá”, ironiza Chantal. “Se eu tivesse assinado qualquer outro nome neste filme, sei lá Sylvie alguma coisa, todos teriam amado. Mas como eu sou Chantal Akerman, todos se decepcionaram. Meu público esperava outra coisa e quem não era meu público desistiu de ver quando a imprensa foi negativa. (...) Os atores abandonaram a divulgação do filme no meio, quando a imprensa criticou, nem Juliette nem William (Hurt) ficaram para defender o filme e dar prosseguimento... Uma pena”, diz a diretora.

Jeanne Dielman, 23, Quai du commerce, 1080 Bruxelles, sensação de Cannes de 1975, marcou a diretora para sempre. “No dia seguinte da projeção em Cannes, o filme já estava programado para mais de 50 festivais. (...) De um dia para o outro me fizeram compreender que eu era uma diretora extraordinária. Eu tinha 25 anos (...) Ficava angustiada, passei muito tempo pensando no que faria depois de Jeanne Dielman”. Não era para menos. O filme ficou conhecido como a primeira vez na história do cinema mundial em que o cotidiano banal e repetitivo de uma dona de casa foi mostrado em tempo real, em câmera parada e frontal, uma repetição que sublinha a alienação das mulheres no cotidiano doméstico. Akerman provou aos 25 anos que é possível criar uma narrativa de efeito altamente dramático mesmo durante longos silêncios, que habitam e assombram o espectador.

De cores feministas e com apuro técnico milimétrico, Jeanne Dielman, 23, Quai du commerce, 1080 Bruxelles continua impactante como em 1975. O filme conta a história de uma dona de casa de Bruxelas que se prostitui ocasionalmente, toma conta de seu filho com uma dedicação obsessiva e tenta ocupar ordenadamente todos os minutos de seu dia, até o momento em que ela acorda mais cedo, e toda a sua tentativa de alienação do vazio vai por água abaixo, por causa do tempo livre não organizado. “É claro que me inspirei em todas as figuras femininas da minha vida, minha mãe, minhas tias. (...) Passei minha vida vendo essas mulheres repetirem esses gestos”, afirma Akerman.

O documentário I don’t belong anywhere tem a qualidade de nos fazer sentir interlocutores privilegiados de Akerman, em planos que ora dão closes em ambientes intimistas, ora nos projetam em cenários urbanos de megalópoles ou de estradas solitárias no meio do deserto. Akerman está inteira lá, em discurso direto, incisivo, iconoclasta, uma espécie de afirmação polifônica de seu cinema e de suas próprias fragilidades e delicadezas. O filme, lançado mundialmente no Festival de Locarno em 7 de agosto, ainda não tem previsão de exibição no Brasil e deve iniciar agora uma turnê por festivais europeus.

“Sempre desconfiei quando alguém diz que um filme é tão bom que não se vê o tempo passar. Nos meus filmes, quero que o espectador tenha a noção de cada instante, do tempo passando, o tempo inteiro”, diz Akerman no documentário. “Assim ele não terá a sensação que roubei duas horas da vida dele, porque ele as viveu a cada minuto durante o filme.”


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