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020913 costa gavras amemCarta Maior - [Flávio Ricardo Vassoler] Kurt Gerstein era um profissional exemplar. Seu trabalho? Durante o III Reich, o oficial da temível SS era um especialista em purificação do Instituto de Higiene. A princípio, o diligente protestante – chefe de uma típica família ariana – não vê contradições insuperáveis entre sua função bem qualificada e a Blitzkrieg que espraia a servidão pela Europa. Afinal, as cartilhas pedagógicas de Joseph Goebbels, o onipresente ministro da propaganda, não reiteravam o mantra da decadência das democracias liberais para conter o avanço irresistível da horda bolchevique? Quem mais poderia salvar a civilização ocidental das garras da conspiração judaica, ateia e comunista senão a Grande Alemanha?


No princípio, o verbo da propaganda consegue asfixiar a consciência do doutor Gerstein. Mas, em pouco tempo, o filme do diretor Constantin Costa-Gravas tornará cada vez mais estreito o corredor polonês do cristão Kurt Gerstein; o lobo em pele de cordeiro já não conseguirá rezar que assim seja, Amém (2002). 

Furgões estatais começam a circular pelas ruas de Berlim. Em suas carrocerias, uma carga inusitada: ratos bípedes, cobaias que falam, retardados mentais – os nazistas chamam todos e cada um dos seres humanos ali encarcerados de “unidades”. É chegado o momento de a higiene dar lugar à eugenia. Afinal, as cartilhas pedagógicas de Joseph Goebbels não reiteravam o mantra de que o Espaço Vital alemão, em seu irresistível processo de expansão, precisava se ver livre de todos os bacilos? Os nazistas, nesse sentido, tornaram-se a ponta de lança do etnocentrismo europeu e de seu darwinismo social. Se o capitalismo salvaguardado pelas tropas de Adolf Hitler considerava inúteis as vidas das “unidades” que não poderiam empunhar armas nos fronts, era preciso viabilizar a Solução Final. Os furgões hermeticamente vedados eram inoculados, nos primórdios das experiências, com monóxido de carbono. O princípio administrativo de liquidez e eficiência era cartesiano. Calculava-se a quantidade de gás letal em correlação com (1) o volume das carrocerias, (2) o tempo para a asfixia e (3) o número de unidades erradicadas. Assim, a SS determinava, diariamente, a produtividade dos furgões e o custo da higiene. Logo, a mesma racionalidade administrativa que deveria estar a serviço da erradicação das doenças, e não dos (supostos) doentes, chegou à conclusão de que a política dos furgões letais era altamente custosa e muito pouco produtiva. Os conhecimentos do doutor Gerstein deveriam otimizar, científica e logisticamente, a política de extermínio.

Quando Kurt Gerstein se dá conta de que sua assepsia técnica não será engatilhada apenas contra bactérias, fungos e vírus, seu sono cristão não mais consegue vedar as pálpebras. “Uma vez informados, os alemães se sublevarão, ninguém aceitará isso!”

− Papai, papai, me ajuda a resolver este problema de matemática, papai!

O cada vez mais tenso pater familias relê para a filhinha o enunciado do exercício:

“Tendo em vista que as casas das famílias trabalhadoras alcançam um valor unitário de 15.000 marcos, quantas casas o Führer Adolf Hitler não precisará fornecer se empregar 6.000.000 de marcos para a construção de novos manicômios?”

− Qual é a resposta, papai, qual é a resposta?!

O problema de aritmética elementar é reformulado pelos superiores hierárquicos do doutor Gerstein. Seus chefes querem otimizar a erradicação das “unidades”, eles tateiam em busca das câmaras de gás. “O Führer deseja atingir a meta de 10 mil unidades diárias. 1949 deverá sacramentar a Solução Final. O Führer quer fazer de 1950 um ano sabático”. As hienas nazistas riem do chiste que utiliza o descanso judaico, o shabat, como sinônimo para o descanso eterno – tanto para as vítimas erradicadas que já não precisarão morrer quanto para os carrascos da SS que se aposentarão por tempo de serviço. “Como podemos maximizar a produção? É possível fazer com que os cristais do gás Zyklon B se sublimem mais rapidamente em contato com o ar? Depois de quanto tempo os funcionários podem entrar nas câmaras de gás para remover as unidades? Como é possível reduzir esse tempo de espera para tornar a produção das câmaras mais eficiente?” Em meio à Blitzkrieg de perguntas dos oficiais da eugenia, o doutor Gerstein começa a suar e a desfalecer, sua consciência o atormenta, mas ainda há tempo para um último dedo em riste:

− Doutor Gerstein, o senhor cumprirá estritamente seus deveres como oficial da SS. E, como cristão, o senhor tem a obrigação moral de diminuir a agonia dos condenados a, no máximo, 5 minutos.

Se a Alemanha tivesse vencido a Segunda Guerra e se o doutor Gerstein e seu superior hierárquico ainda estivessem vivos, os mais prestigiados cursos de MBA Espaço Vital afora certamente os convidariam para aulas magnas sobre como racionalizar e otimizar a liquidez administrativa. O modelo Gerstein se tornaria um estudo de caso.

Mas já não é possível, não, Kurt Gerstein não consegue mais fazer amor com a esposa, os filhos são repelidos quando tentam abraçar o pai, “esta não é a oração que Cristo nos ensinou, eu preciso fazer alguma coisa, eu tenho que denunciar tudo isso! Eu serei os olhos de Deus neste inferno. Eu serei a testemunha”. Para tentar barrar a Solução Final, o doutor Gerstein já entrevê que terá que se oferecer em holocausto.

Gerstein tenta falar com os líderes católicos e protestantes em Berlim. Já não se trata apenas de discriminar os judeus, “isso nós até poderíamos tolerar”, isso já fazia parte do proselitismo inquisitorial por séculos e séculos, amém. Gerstein chega ao Vaticano. “Agora os judeus estão sendo exterminados, é preciso que o papa se pronuncie contra essa barbárie, é obrigatório que a Igreja denuncie o holocausto!” Mas o desespero moral do especialista em purificação não se dá conta de que há uma profunda afinidade eletiva entre a lógica religiosa da verdade única e o princípio nazista de eliminação dos não-arianos – ou pior, de erradicação das “unidades”. Ora, que teria feito o pavoroso Tribunal da Santa Inquisição se possuísse os mesmos recursos tecnológicos de que os nazistas dispunham? Os exorcismos, os refinados e múltiplos instrumentos de tortura e as fogueiras não rezavam e atestavam para os devidos fins que eram hereges aqueles e aquelas que, segundo a onipresença da delação e do perjúrio, não reproduziam os dogmas clericais em todos e cada um dos momentos do cotidiano vigiado? Hereges tinham que ser varridos da cristandade. Os jargões mais técnicos – mas não menos fanáticos – da doutrinação nazista substituíram o resíduo católico pela terminologia laboratorial. Bacilos precisam ser erradicados do Reich. O chefe do doutor Gerstein ainda tem tempo de proferir uma nova bula papal para atualizar a catequese:

− Se Deus está em todas as partes, doutor Gerstein, o senhor certamente terá a oportunidade de encontrá-Lo nos fornos crematórios.

Quando a vitória iminente dos Aliados começou a encarcerar os oficiais nazistas, Kurt Gerstein se enforcou em sua cela diante do mais tenro prenúncio de ser apontado como um dos viabilizadores da Solução Final. Sua consciência ainda não fora de todo esterilizada. Oferecer-se como bode expiatório talvez tenha sido o pedido de perdão às “unidades” higienizadas pela assepsia do Führer. Eis a coerência cristã do martírio.

Diferentemente do desespero do doutor Gerstein, a indiferença moral de Adolf Eichmann, o burocrata que viabilizou o sistema logístico para o transporte das “unidades” rumo aos campos de extermínio, parece mais factível para o funcionamento do profissionalismo que só busca novos e mais competitivos parâmetros de produtividade. Assim falaram os defensores do réu:

− O doutor Eichmann havia prestado um juramento de lealdade ao Führer. Não seria ético rompê-lo. E, ainda que o fizesse, o preço pela deslealdade poderia ser sua vida. No mais, o doutor Eichmann não passava de uma peça da engrenagem. Ele nunca chegou a visitar um único campo sequer. Cumprir ordens era o que ele fazia. E, naquele momento, o “não matarás” deixou de ser a lei e os profetas. Matarás o teu próximo para salvar a ti mesmo, eis a máxima do novo Sermão da Estepe. E, se Eichmann é culpado, o revólver também deve ser levado a julgamento. Mas vocês pensam que erradicarão a violência enraizada historicamente na sociedade apenas cortando a cabeça dos perdedores, não é mesmo? Ora, o ódio não se deixa quantificar. Quando se corta a planária ao meio, cada uma das metades se regenera. A vingança gera dois novos animais.

O suicídio do doutor Kurt Gerstein facilitou a missão punitiva de Nuremberg. Mas ao se oferecer em holocausto, sua consciência demonstrou que não lhe era possível desvincular sua atuação específica do movimento global das engrenagens. Gerstein reavivou a responsabilidade moral ao se matar. Nesse sentido, o especialista em purificação é um anacrônico para os nossos dias. A indiferença de Adolf Eichmann é que fecha o vidro do carro contra mais um pedinte faminto; a indiferença de Adolf Eichmann é que cruza com o enésimo mendigo como se ele fosse mais uma nódoa na calçada; a indiferença de Adolf Eichmann aparta o indivíduo do todo para que o hedonismo – a sombra do Führer – possa suplantar o próximo e salvar a si mesmo. Kurt Gerstein ensina que sobreviver é pura cumplicidade. Adolf Eichmann sentencia que vencer atesta a mais completa imunidade.



Flávio Ricardo Vassoler é escritor e professor universitário. Mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP, é autor de O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos) e organizador de Dostoiévski e Bergman: o niilismo da modernidade (Editora Intermeios). Nesta segunda-feira, dia 02 de setembro, às 19h, começa a apresentar, ao vivo, o Espaço Heráclito, um programa de debates políticos, sociais, artísticos e filosóficos com o espírito da contradição entre as mais variadas teses e antíteses – segundas-feiras, às 19h, na TV Geração Z: www.tvgeracaoz.com.br. Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, www.subsolodasmemorias.blogspot.com, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo.


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