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250813 ballet cairoEgito - Le Monde Diplomatique - [Mona Abouissa] Criado segundo o modelo do Bolshoi graças à intensificação das relações entre o Egito e a União Soviética nos anos 1950, o balé da Ópera do Cairo luta para sobreviver e se adaptar a uma paisagem política movediça.


"Em nome do Pai, do Filho e do Espírito Santo”, murmura o cisne branco antes de abrir suas asas imaginárias e surgir sob os holofotes. Esquecida, Ekaterina Ivanovna fugiu da União Soviética na época do colapso do bloco oriental e encontrou refúgio no Egito. Agora ela é a rainha dos cisnes e vive às margens do lago formado pelas lágrimas de sua mãe. Nas sombras se esconde Hany, o bailarino principal, na pele do feiticeiro Rothbart, a encarnação do mal absoluto. Na coxia, ele forma um círculo com seus cisnes para alguns passos de dança ao som da música de Tchaikovsky e então se lança ao palco para a batalha final contra o príncipe. Sob os holofotes, o palco é seu; mas por trás da cortina vermelha é a ex-rainha dos cisnes, a italiana Erminia, quem lidera a dança.

Um homem contempla em silêncio a tragédia russa do século XIX. Essa última apresentação é para ele. Outrora ele representou o príncipe Siegfried e tantos outros, aqui mesmo, mas também no Bolshoi, em Moscou, no teatro NHK de Tóquio, no Scala de Milão. Abdel Moneim Kamel lutou pelo balé egípcio durante os sombrios anos 1980, quando os especialistas soviéticos fizeram as malas; agora, luta contra o câncer. A seu lado está a diretora artística, Erminia Kamel, também sua esposa e parceira de dança. Aperformance que ele está prestes a colocar em cena será sua última: uma semana depois, Kamel morreria em decorrência de uma parada cardíaca.

Na entrada da academia de dança, reina uma enorme boneca russa. Os professores egípcios falam uma curiosa mistura de russo e francês: “assemblé, e plié, e jeté”. Os pianistas, também ex-soviéticos, dizem que o lugar é como a URSS em miniatura. O fantasma nunca deixou a academia.

“Você vai pensar que sou louca”, lança Aleya Abdel Razek rindo, enquanto apanha suas sapatilhas de ponta, tão antigas quanto a história da dança egípcia. “Eu já as calçava quando fui aprovada no palco do Bolshoi.” Aleya passava noites inteiras imaginando seus papéis e figurinos. O balé nunca a traiu, nem quando ela se tornou sexagenária. Seu pai foi um dos primeiros pilotos da aeronáutica egípcia; ela esteve entre as primeiras bailarinas a atravessar a cortina de ferro: “Cinco borboletas voam rumo à União Soviética”, anunciava orgulhosamente a imprensa local. Cinco bailarinas adolescentes dançaram então sob a neve, pela primeira vez na vida, enquanto na coxia se negociavam entregas de armas com os soviéticos. Assim nasceu o balé egípcio: graças aos militares.

O general Gamal Abdel Nasser voltou de Moscou condecorado com a medalha da Ordem de Lenin, em 1958. O Egito recebia de bom grado a ajuda econômica e militar da URSS, que se empenhava em estender sua influência ao Oriente Médio. Muitos jovens egípcios estudavam nas universidades e escolas militares soviéticas, enquanto os instrutores de Moscou faziam a viagem inversa.

Foi nesse contexto que o ministro da Cultura egípcio, Sarwat Okasha, convidou vários grandes nomes do balé russo, destacando-se o ex-diretor do Bolshoi, Leonid Labrovsky, para montar uma academia de dança no Cairo. Em 1963, cinco meninas e três meninos foram selecionados para participar de um curso de dança de dois anos em Moscou e entrar para a história como os pioneiros do balé egípcio. Aleya, Kamel e seus seis companheiros ficaram isolados dos outros estudantes e sob vigilância constante da KGB − inconvenientes que não pesavam muito diante do deslumbramento de estar no Bolshoi.

Em 1966, a Royal Opera do Cairo apresentava seu primeiro espetáculo de dança, A Fonte de Bakhchisarai. Aleya ficou com o papel principal, o de Zarima, que se tornou seu favorito. Impressionado, Sarwat Okasha convenceu o presidente Nasser a assistir à apresentação. O entusiasmo do rais foi tanto que ele não esperou 24 horas para conceder a ordem de mérito aos solistas do balé. As distinções recebidas por Aleya ao longo de sua longa carreira estão expostas na parede, logo abaixo das medalhas militares de seu pai.

Até hoje, a Companhia de Balé do Cairo é o único curso de balé sediado no Oriente Médio. Seus bailarinos interpretaram todas as grandes obras do repertório, como GiselleO Quebra-NozesDon JuanDon QuixoteA grande valsa e O lago dos cisnes. Turnês triunfais, pedidos de entrevistas, prêmios, visitas de especialistas do Bolshoi: o mundo estava a seus pés.

Então, numa manhã de 1971, a Royal Opera foi destruída por um incêndio. Há quem diga que foi um ataque político contra o novo presidente Anwar Sadat. Aproveitaram para construir um estacionamento pago no lugar da Ópera. No ano seguinte, Sadat rompeu os laços com Moscou. Duramente atingido pelo fim da ajuda soviética, o balé do Cairo viu parte de seus virtuoses se dispersarem entre a Alemanha, a URSS e os Estados Unidos.

Nessa época, Ala Shivela estudava Artes Cênicas na Universidade de Moscou: “Quando souberam que Sadat tinha expulsado os soviéticos, nossos colegas egípcios literalmente foram correndo fazer as malas, esperando ser expulsos também”. Mas eles foram poupados desse destino e conseguiram terminar os estudos. Quarenta anos depois, Ala Shivela e seus antigos colegas voltaram a se encontrar sob o mesmo teto, o da nova Ópera do Cairo, preparando a próxima geração de bailarinos.

Kamel voltou da Itália com Erminia para participar do renascimento do balé egípcio. Eles aguardaram em estúdios vazios, deram a mão a bailarinos desanimados, percorreram palcos que poderiam recebê-los, pequenos teatros, tendas de circo. Aleya não esqueceu os alojamentos improvisados onde vestia seu tutu ao lado de canos vazando: “Pouco a pouco, conseguimos montar uma trupe”, observa Erminia, ex-solista do Scala.

Quando, em 1988, a nova Ópera saiu do chão, Kamel e seus companheiros exigiram instalar-se em residência oficial. Para isso, organizaram um longo piquete na porta do Ministério da Cultura, que, cansado, acabou dando-lhes uma satisfação. E 23 anos depois eles estavam novamente ali, engrossando o movimento de revolta contra o regime de Hosni Mubarak. Kamel acabava de ser nomeado diretor artístico da Ópera, o que não impediu que ele e sua trupe se unissem às manifestações contra os burocratas da cultura. Mas a revolução não os afastou do palco, e O lago dos cisnescomemorou seu retorno à Ópera, após quase duas décadas de ausência. Os russos também voltaram, cansados das dificuldades da vida cotidiana em seu país.

Ofegante e com os pulmões chiando, o cisne negro aproveita cada instante na coxia. O suor escorre por suas costas. A bailarina tem apenas alguns segundos para recuperar o fôlego antes de voltar ao palco e realizar seu movimento final: uma série de 32 giros cujo aprendizado vem torturando muitas gerações de cisnes.

Amanhã, a apresentação será em público, mas não estamos autorizados a assistir. O Exército, que assinou o ato de nascimento do balé egípcio, não pretende renunciar a seus direitos parentais. Assim como o ex-oficial Sarwat Okasha supervisionava os ensaios quando Aleya era ainda uma estudante, o ex-oficial encarregado das relações públicas da Ópera, Mohamed Hosni, exerce suas prerrogativas com rigidez marcial: “Eles são artistas, criam arte para o público, então à imprensa cabe apenas ir atrás deles”. O que seria até compreensível, se ele não distribuísse convites a seus protegidos.

Enquanto no palco se desenrola o hedonismo gracioso do primeiro ato, na coxia jornalistas e fotógrafos fazem o que podem para escapar da vigilância da comunicação da Ópera. Para Hosni, os jornalistas se dividem em duas categorias: abutres com fome de escândalo e conspiradores sionistas. No terceiro ato, quando Ekaterina realiza seus maravilhosos chicoteados, procuro no rosto do militar o traço de uma possível emoção artística; é em vão.

O palco é do feiticeiro Rothbart, cuja aura maléfica perturba a vida de todos os outros personagens. Mas, na coxia, seu intérprete já não lhe pertence: “Eles precisam de um papel, você encontra um papel. Dizem para você falar, você fala. Querem que você interprete seu personagem e você interpreta”, diz com um sorriso. Quando deixa de espalhar o terror no palco, Hany aciona a maquinaria, ajuda as mulheres a se transformarem em cisnes ou se diverte fazendo graça.

Na coxia, é um velho cisne branco, Erminia, quem comanda as operações. Talvez o antagonismo entre os dois personagens se prolongue aqui de outras formas. De acordo com Hany, Erminia colocou obstáculos em seu caminho quando ele começou a trabalhar em sua primeira performance coreografada, Rasputin. Ela lhe recusou o apoio dos bailarinos da companhia, pois o personagem do infame barbudo, padre e conselheiro do czar representava um ataque muito direto à Irmandade Muçulmana. Finalmente, um acordo permitiu a Hany interpretar Rasputin por um ano. Embora seu nome figure no cartaz, ele não recebe um tostão do faturamento.

Promovida a diretora artística em 2004, Erminia Kamel não fez só amigos. Apesar da presença significativa de estrangeiros na Ópera e da sensibilidade artística da maioria dos funcionários administrativos, o patriotismo, reflexo herdado da era colonial e atiçado pela revolução de 2011, não desapareceu. Mas, com o apoio de seu marido e vários políticos de alto escalão, incluindo o ex-ministro da Cultura, Farouk Hosni, ela conseguiu garantir seu lugar. Erminia, com suas maneiras firmes, mas calmas, trouxe à academia a disciplina que lhe faltava.

A principal dificuldade era não despertar a ira do governo da Irmandade Muçulmana, cujas intenções preocupavam os meios artísticos. As pressões não eram oficiais, apenas comentários sutis, mas suficientes para fazê-la repensar o repertório. Na berlinda estão sobretudo os balés contemporâneos e seus figurinos leves. Também pesavam ameaças sobre a cena de amor entre Romeu e Julieta: “Se a cortarmos, como o público vai entender?”, interroga Erminia com uma pitada de ironia, para então concluir diplomaticamente que “as pessoas escolheram essa forma de pensar” e que “devemos aceitá-la”, esperando para ver como as coisas vão evoluir.

Também ex-bailarina, Inas Yunes lança um ou dois ganchos contra um adversário imaginário: “Na dança moderna, não lutamos para fazer sorrir, há agressividade, enquanto na dança clássica as lutas são estilizadas”, explica a ex-aluna de Aleya, agora reitora da academia. Ela gosta de imaginar uma adaptação contemporânea de O lago dos cisnesem que o duelo entre Siegfried e Rothbart tivesse um desenvolvimento violento. Inas é uma mulher que transborda energia, com uma predileção pelos personagens de caráter, como a Medeia de Martha Graham, figura da mitologia grega que mata seus próprios filhos. Ela a representou no palco de 1969 a 1996, quando a idade acabou por prevalecer sobre suas articulações.

Aleya ocupa um gabinete vizinho ao de Inas. Ela parou de ensinar, pois acha que os estudantes não têm mais as qualidades necessárias para se tornarem bailarinos profissionais. Em seu tempo, centenas de candidatos competiam por um punhado de lugares. Este ano, apenas dez novos alunos entraram na academia, que tem somente 135 inscritos. Não serão muitos a conseguir um lugar na companhia ao fim de seus nove anos de estudo.

Na Ópera do Cairo, dança é coisa de homens, principalmente. A trupe tem a maior dificuldade do mundo para recrutar bailarinas. Será a prática religiosa, o sonho de começar uma família, a crise econômica ou o esforço para manter uma cinturinha de vespa que cala a vocação? É cada vez menor o número de egípcias que se comprometem com o áspero caminho que leva do corpo de balé ao lugar de rainha dos cisnes.

No último ato, o bom príncipe destrói o feiticeiro malvado. Mas nesse dia é o príncipe Kamel que perde a batalha, e o feiticeiro Rothbart que carrega seu caixão. Após dois anos de manifestações marcadas pela violência sangrenta, a morte não é mais considerada um assunto privado no Egito. É em público, e ruidosamente, que o país se despede de seus heróis. A Ópera guardou luto por sua estrela durante três dias. A imprensa noticiou mais a morte de Kamel que seu último Lago dos cisnes. Uma bandeira egípcia envolveu seu caixão. Para Hany, cujo talento foi descoberto primeiro por Kamel, levar o mentor ao local de seu último descanso era a menor das homenagens a lhe render. Na enxurrada de políticos, celebridades e anônimos, uma mulher destoava, com seus cabelos loiros: Erminia. Ela permaneceu ao lado do marido nos tempos sombrios; agora, quer preservar seu legado e seu nome. Como diz Ekaterina, o balé não se reduz a belos tutus.


Mona Abouissa é jornalista e diretora de documentários.

Ilustração: Pryscila Vieira


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