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120413 girassois cegos 2Estado espanhol - PGL - [José Paz Rodrigues] Durante o mês de abril, e especialmente arredor da data do dia 14, celebramos a comemoração da proclamação da 2ª República no nosso país. Nesta mesma data do ano 1931, o povo galego e o do Estado Espanhol recebeu com uma imensa alegria a queda da monarquia e o nascimento do regime republicano.


Com a República, acolhida com tanto entusiasmo pela maioria dos cidadãos, dava-se início a uma das mais importantes e formosas etapas históricas a favor da educação, das liberdades, da cultura e dos direitos cívicos e sociais. Para o governo da mesma, o ensino do povo era um tema prioritário, e, por isto, foram criadas numerosas novas escolas em todo o território, infinidade de bibliotecas públicas e populares e o lindo projeto das “Missões Pedagógicas”, que dirigiu o grande pedagogo Cossío, quem o tinha ideado décadas antes e pôde agora levá-lo à prática. Ao mesmo tempo, porque, em palavras dos institucionistas do movimento pedagógico da ILE, “o Mestre é a alma da escola”, foi desenhado um excelente plano de formação inicial dos professores, ainda hoje não superado, conhecido como “Plano Profissional do 1931”, graças ao qual tivemos durante décadas os mestres mais extraordinários da nossa história escolar e educativa. Os mestres e mestras com mais valores éticos, melhor formados cultural e didaticamente, e os de maior vocação pedagógica.

Em artigos anteriores da nossa série de “As Aulas no Cinema”, por meio de interessantes filmes, já analisámos os modelos da escola e o mestre da nossa República, assim como o projeto de escola ambulante e cultural desenvolvido em muitas zonas rurais do país, que supunham as “Missões”. Infelizmente, o período republicano durou apenas seis anos, por erros de uns e outros e, especialmente, porque os partidos políticos naquela altura não tiveram a paciência precisa para manter o sistema e as forças reacionárias e fascistas, dirigidas pelo ditador Franco e seus esbirros, levantaram-se em armas em julho de 1936 contra o governo legítimo republicano. Provocando um guerra fratricida que durou três anos, com uma repressão brutal e pavorosa, como no caso da Galiza, e o assassinato de um grande número de mestres.

Desta guerra, que Castelão muito acertadamente qualificou de “incivil”, ainda temos hoje sequelas profundas no nosso país. A esta guerra seguiu um período ainda mais funesto, ao triunfar o fascismo e instaurar uma ditadura que durou 40 anos, pois o povo inerme foi continuamente agredido e violentado durante vários anos. Com o filme que hoje analiso no presente artigo, e o seguinte tão lindo de “O espírito da colmeia” de Vítor Erice, apresento as consequências socioeducativas deste triste período, onde o medo, a fame e a repressão eram o pão de cada dia. E o povo tinha que suportar toda a sorte de injustiças e repressões, sem liberdades, sem direitos cívicos e totalmente inerme para poder defender-se. Um etapa histórica esta que gostaríamos que nunca mais se repetisse. Para mostrar o que vimos de assertar escolhi um filme muito adequado que aliás foi rodado em grande parte na cidade de Ourense, nas ruas históricas que rodeiam a catedral, e no Liceu Recreio.

Ficha técnica do filme:

Título original: Los girasoles ciegos (Os girassóis cegos).

Diretor: José Luis Cuerda (Espanha, 2008, 95 min., a cores).

Roteiro: Rafael Azcona e J. L. Cuerda, baseado no romance de Alberto Méndez.

Fotografia: Hans Burmann. Música: Lucio Godoy.

Produtora: Sogecine / Produções A Modinho e Labarouta / E.O.P.C.

Prémio: Goya ao melhor roteiro adaptado no ano 2008. Foi escolhido para a candidatura ao Óscar ao melhor filme de fala não inglesa.

Intérpretes: Maribel Verdú (Elena López Reinares), Javier Câmara (Ricardo Mazo Torralba), Raúl Arévalo (Salvador), Roger Príncep (Lorenzo Mazo López), Martín Rivas (Eulálio Pecinha, “Lalo”), Irene Escolar (Elena Mazo López) e José Angel Egido (o Reitor do Seminário).

Argumento: Ourense (Galiza), anos 40. Cada vez que Helena fecha a porta da sua casa, deixa lá os seus segredos. Ao mesmo tempo que contorna os rigores do após-guerra, levanta junto ao seu filho Lourenço uma fachada de aparência para ocultar a verdade sobre a sua família: Helenita, sua filha adolescente, escapou grávida com o seu noivo Lalo, um jovem que leva meses nas listas da polícia; e Ricardo, seu esposo, vive escondido no buraco praticado no quarto do casal. Como se fosse pouco, o aparecimento de Salvador, um diácono com dúvidas sobre seu iminente sacerdócio, há complicar mais as cousas. Este argumento está adaptado do famoso e reconhecido romance de Alberto Méndez, Prémio Nacional de Narrativa e Prémio da Crítica em 2005.

A educação do após-guerra baseada no medo, a servidão e a humilhação:

Todos os factos que se contam neste filme estão qualificados e, em grande parte, determinados pela inumana repressão franquista que se seguiu à contenda bélica. A repressão, uma segunda guerra muito mais suja, mais vil e mais impune, já que o inimigo estava sem armas, foi, além de uma maquinaria terrível em mãos do Estado, veículo muito útil para qualquer baixeza que aninhava nos vencedores: ambições sem conto, exercício sádico do poder e de todos os poderes, vesânia e mesmo apetências sexuais. Como se fosse pouco isto, a hierarquia eclesiástica, dos bispos ao Papa, converteram o levantamento militar numa “Cruzada” e manteve sob pálio o ditador sem rubor algum, impondo à sua vez uma educação de crianças e jovens, baseada no terror, a servidão e a humilhação.

Ricardo, o professor de Liceu protagonista, como se fosse um António Machado, representa todos aqueles que sofreram o exílio interior ou exterior, a morte pelas suas ideias de igualdade, solidariedade ou simples dignidade. Mora escondido, desaparecido, num buraco praticado na parede da sua casa, em que se apoia o roupeiro do quarto do casal. Seu deambular pelo lar ou as horas de trabalho que se passa sentado à máquina de escrever, para fazer traduções de textos em alemão, uma paradoxal ajuda a Hitler e os nazis, com o objetivo de acadar a manutenção de sua família, obriga-o a ter fechadas as suas janelas, embora seja muito o calor do estio. A física escuridade que invade a casa envolve metaforicamente a vida e a convivência dos membros da família. Quando a sua filha parte, com a sua desgraça posterior, enegrece-se o ânimo de um pai que a venera. A depressão de Ricardo afunda-se cada vez mais. O seu apetite sexual desaparece pouco a pouco nesse triste espaço, e as suas gratificações passam às mãos do álcool. Elena, a sua forte e formosa mulher, coloca às suas costas a manutenção do núcleo familiar destroçado. Quando aparece Salvador, o diácono acossador atrativo e complacente, na vida de Elena tudo se põe de patas para o ar. O seu filho Lourenço, com os seus sete anos, há ser o instrumento necessário, a coartada e testemunha das viagens de ida e volta que o diácono faz ao corpo, dificilmente defendível, e à alma, em inquietação, da esposa. O Reitor do seminário, onde o diácono Salvador tem que terminar o seu curso, metade confessor, metade confidente do jovem malandro, anima-o a sobreviver entre as suas sentimentais preocupações com quantas armas dialéticas e morais que a religião católica proporciona.

A confissão, como monumento reparador e absolutório em mãos de um todo-poderoso sacerdote-confessor, que condena ou perdoa a vida ou a morte eterna ao penitente, é um instrumento inigualável para o governo e a submissão das almas. Esta cena e sequência é um dos momentos mais dramáticos e significativos do filme. Com ela abre-se o filme, em que este diácono (ordenamento prévio ao da ordem sacerdotal), comenta diante do Reitor que, depois da guerra tem numerosas dúvidas sobre a sua Fé. No conflito que enfrentou as duas Espanhas, ele foi enviado pelo seu superior para combater ao lado do bando chamado “nacional” e lamenta-se de todos os horrores que teve que olhar, por não falar também das suas próprias ações. Ele, um homem da igreja, educado durante a sua juventude nos mais excelsos valores de amor e perdão cara todos os seres humanos, de repente vê-se combatendo por essa mesma igreja num conflito que representa todo o contrário que ele tinha aprendido. Todo o seu mundo de crenças e valores veio abaixo e perante tal facto encontra-se muito confuso. Por isto, para que possa superar os seus remorsos, o seu superior decide mantê-lo ocupado dando aulas a pequenos estudantes, achando que assim pode ver reconfortado o seu ânimo. Porque, apesar de que tenha crise na sua fé, como lhe comenta o superior, “o sol (Deus), continua a iluminá-lo, como se fosse um girassol cego”.

Mas isto não muda a realidade e, depois de participar na guerra é outra pessoa, a que, embora mantendo o discurso de “um homem de Deus” e os hábitos, está indubitavelmente marcado pelas mais obscuras ações terrenais. O seu próprio antigo camarada, agora convertido em chefe da polícia, lho comente quando os dous se reencontram, não o reconhece com sotaina e cabeção, lembrando-lhe com quantas mulheres se tinha deitado durante o seu serviço militar. Daí que o ator que representa este diácono atormentado, com a sua estupenda interpretação, apresenta a ambiguidade da personagem que nos leva a ver às vezes o que prima mais na mesma: o seu fanatismo, a crença religiosa, a confusão, a obsessão ou o mais absoluto dos cinismos. É, portanto compreensível que, na situação em que se encontra, quando conhece Elena, a mãe de Lourenço, pense que é uma mulher viúva e a sua mente e o seu corpo se sintam humanamente atraídos pelo encanto e a beleza da mesma. Mas a atração, embora fundamentalmente física, também tem uma componente que aos seus olhos lhe faz resultar aceitável: talvez Elena e Lourenço, seu filho, sejam uma família desvalida necessitada de um pai como ele, a família de que ele agora também necessita, dado que terminou por perder a sua vocação religiosa. A atração, no começo dá impulso a gestos amáveis, mas termina por converter-se em obsessiva e fatal, e, com as sequelas da guerra, o que se lhe oferece pelas boas termina por tomá-lo à força, dando rédea solta aos seus piores instintos. A sua aposta pela vida “civil”, renunciando ao seu ordenamento sacerdotal, consuma-se no momento em que tira a sua sotaina enfiando a farda militar (uma espécie de vida civil, mas com os direitos que dá a farda), símbolo de aquilo em que se converteu durante a guerra, e é com ela mesma, com que acomete a depravada cena final, ao ver-se frustrado, num ato desesperado de conseguir a sua salvação de mãos da própria Elena.

Muitas são as referências à igreja católica que aparecem no filme, que naquela altura apoiou os golpistas e fascistas contra o legítimo governo da República. Brindando ademais o sustento espiritual que necessitava o regime franquista surgido da fratricida contenda bélica. O mesmo diácono Salvador fora enviado pela igreja para combater ao lado dos franquistas sublevados contra os denominados “rojos”. Desta maneira, no filme, fica claro por quem se decantou e apostou a ordem religiosa e, uma vez terminada a guerra, nesse ritual diurno antes de dar início às aulas da escola que aparece no filme, em que o mestre é o diácono Salvador e um dos seus alunos, Lourenço, os escolares cantam no pátio da escola o “Cara el Sol”, numa espécie de reza matutina, semeando o novo espírito nacional nas mentes em formação dos estudantes. Desta forma fica muito bem refletida a legitimação moral que a igreja dá ao franquismo e à ditadura. Sendo a veladora da moral e a educação da sociedade espanhola durante a ditadura, e em contra do anterior modelo pedagógico-didático republicano.

Neste interessante filme vemos refletida a Espanha cujos intelectuais foram fuzilados, represaliados, como muitos mestres de escola, tal e como acontecia com a personagem do mestre de aquele filme do mesmo diretor “A língua das borboletas”, ou, no melhor dos casos, se viram obrigados a fugir do país para salvar a sua vida no exílio. Num contexto em que toda a contestação ficou literalmente silenciada e afogada sob um regime fascista e ditatorial, que teve “uma longa noite de pedra” de uns 40 anos. Com um modelo de escola como aparece no filme, ao menos até os anos setenta, quando é promulgada uma nova lei educativa, sendo ministro Villar Palasí. O modelo de escola que aparece neste filme, cujas estratégias principais, muito antipedagógicas, são o basear-se no medo, a humilhação, os castigos corporais e psíquicos, o autoritarismo, a ausência de crítica, a repressão, a falta de liberdade, a sem razão e, o que é mais grave, a doutrinação dos escolares nas ideias religiosas e políticas de tipo fanático e fundamentalista. Uma escola em total contraposição com a republicana, democrática, laica, coeducadora, com estratégias didáticas inovadoras e com um total respeito pelas figuras do aluno e o professor. Uma escola esta, com mestres de verdadeira categoria, tanto ética como pedagógico-didática, identificados com a República. Que foram retirados, represaliados e fuzilados em um número superior a uns dezasseis mil, nada mais e nada menos.

Temas para refletir, analisar e realizar:

Depois de ver o filme, organizar um foro para analisar os recursos audiovisuais e fílmicos que o diretor utiliza no mesmo. Também a psicologia das diferentes personagens que aparecem, refletindo na conduta mostrada pelos mesmos.

Elaborar um mural com textos, desenhos, fotos, etc. em que apareçam as caraterísticas básicas dos modelos de escola e de mestre da escola franquista autoritária e da escola republicana laica e democrática.

Procurar informação na Internet e em bibliotecas para elaborar duas monografias: uma sobre o Plano Profissional de 1931 de formação dos mestres e mestras. Outra sobre as Missões Pedagógicas republicanas dirigidas por Cossío, Santullano e António Machado, entre outros.


José Paz Rodrigues é académico da AGLP, didata e pedagogo tagoreano.


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