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120313 filme a separacaoIrão - Carta Maior - [Flávio Ricardo Vassoler] ‘A Separação’ (2012), filme iraniano dirigido por Asghar Farhadi, tem início com uma tomada que tende a unir o juízo do magistrado à perspectiva do espectador. A câmera não desvela o juiz, nós vemos o que ele vê – o espectador é chamado à baila; o Irã, suas instituições e contradições sociais são descortinados diante do espectador ocidental. (Adiante veremos que o Ocidente também não passará incólume pelos questionamentos que a obra suscita.)


Em face do juiz e dos espectadores judiciosos, Lavasani, o marido, e Simin, a potencial ex-esposa, discutem as razões para o divórcio iminente. 

O juiz: “Ele é viciado, agressivo, não lhe dá dinheiro?”

Simin: “Não, é um homem muito bom e decente”. 

Se Lavasani cumpre o papel que lhe cabe na divisão sexual do trabalho, isto é, se a ausência de vício o predispõe ao trabalho, se a mansidão produz e reproduz a família, célula da sociedade, e se o marido dá dinheiro à mulher que, de acordo com o contrato social, tende a ficar restrita à esfera privada em meio à qual a circulação monetária só ocorre de maneira escassa e contingente, o juiz não compreende por que a sociedade deve aceitar o pedido (frívolo) de divórcio. 

Simin, professora de inglês, quer sair do Irã e levar a filha Termeh consigo. “Prefiro que ela não cresça nessas circunstâncias”. 

O juiz: “Então as crianças não têm futuro neste país? E que circunstâncias são essas?” 

Nesse momento, a discussão entre marido e mulher é silenciada. Os olhares furtivos fazem as vezes das palavras que se calam em face do punho iminente de Mahmoud Ahmadinejad, o presidente retrógrado que a figura do magistrado deve representar. 

Lavasani não quer deixar o país, “me dê ao menos uma razão para sairmos, Simin”, ao que a esposa responde com vivaz presença de espírito: “Me dê ao menos uma razão para ficarmos...” Mas o marido, além de pai, também é filho. O sogro de Simin, cada vez mais senil, precisa receber os cuidados do filho. Assim, ‘A Separação’ se estrutura a partir de um profundo dilema moral – e político-cultural: para Lavasani, sair do Irã significa abandonar o pai para assumir um futuro incerto em um novo país que não ora segundo o Corão; para Simin, sair do Irã significa desnudar os cabelos ruivos e relegar a burca que também deve esconder os 11 anos de Termeh. O fato de Lavasani ser “um homem muito bom e decente”, como testemunha a (ex-)esposa, só faz alimentar a narrativa que consegue congregar e potencializar em seu transcurso uma miríade de contradições que ressignificam os valores e práticas da sociedade iraniana. 

Termeh não poderá sair do Irã sem o consentimento do pai. Ademais, “o consentimento para um divórcio precisa ser mútuo. Não se pode pedir o divórcio por coisas triviais. Considero o seu problema um assunto menor” – sentencia o juiz. Os espectadores ocidentais, cujo índice de divórcios já se confunde com os matrimônios que logo serão desfeitos, bem entrevê o “assunto menor” relacionado ao gênero daquela que almeja ‘A Separação’. 

Mas é preciso cuidar do pai, cuja senilidade já caminha pelo labirinto de Alzheimer. Como Simin voltou para a casa da mãe, Lavasani contrata Razieh como faxineira e enfermeira. Razieh não tem com quem deixar a filhinha, então Somayeh a acompanha em sua rotina diária de muito trabalho e parca remuneração. (Apesar de Simin atestar para os devidos fins que Lavasani é “um homem muito bom e decente”, o arrocho salarial dos subempregados não entra no rol dos atributos morais da classe média, já que a disparidade social se confunde ora com os mandamentos da divindade, ora com o princípio de realidade; nesse sentido, que ocidental poderia atirar a primeira pedra contra o Irã?) Há, entretanto, alguns conflitos morais que fazem com que Razieh interprete sua nova ocupação como pecaminosa. Em primeiro lugar, “uma mulher casada não pode trabalhar na casa de um homem solteiro e/ou divorciado”.Nesse caso, o estômago de Somayeh convence Razieh de que transgredir é preciso. Mas quando o pai de Lavasani se levanta com as calças urinadas, Razieh já não sabe o que fazer. Um novo dilema se configura: por um lado, ela havia sido contratada como babá, e o vovô agora precisava de todo cuidado e atenção; por outro, o pecado e a consequente fúria de Alá rondavam e perseguiam a mulher casada que sequer se aproximasse das partes pudentas de um outro homem. Que fazer? Ligar para a Central de Atendimento ao Pecador: um serviço público e gratuito aproxima a lei religiosa geral e abstrata das ocorrências contumazes do cotidiano. Entrevemos, assim, a profunda contiguidade entre as esferas pública e privada. As autoridades teocráticas fazem com que os cidadãos/fiéis internalizem os princípios religiosos, de modo que suas vidas sejam estruturadas segundo o temor e o tremor que vigiam e punem as transgressões. O indivíduo não tende a ser responsável por si mesmo. A consciência dá lugar ao medo da punição eterna. Mas também é preciso correlacionar a devoção de Razieh à sua posição social tanto em termos de sua classe quanto em relação ao seu gênero. De que instrumentos lançaria mão uma mulher pouco instruída que só marginalmente pode fazer parte da esfera pública? 

Ao fim e ao cabo, Razieh é autorizada a limpar o senhor senil, cuja doença só faz infantilizá-lo. Somayeh é bondosa, “eu não vou contar nada para o papai, mamãe”, mas é preciso conversar com o patrão para que tais dilemas religiosos não voltem a ocorrer. Quando Lavasani volta para casa após o trabalho – só o que sabemos é que o chefe de família exerce sua profissão em um local com enormes arquivos, quiçá uma repartição pública –, a tutora de Termeh, a senhora Qahraei, e a enfermeira/faxineira o esperam. Ocorre, então, uma conversa cuja ambiguidade levará ao paroxismo a tensão vindoura do filme. Qahraei pergunta sobre a gravidez de Razieh – o xador, tecido que recobre o corpo da fiel, dificulta a percepção da barriga gestante – e lhe indica um ginecologista de sua confiança. Lavasani não está na sala, mas pode ouvir a conversa pelas frestas da curiosidade. 

“De qualquer forma, Sr. Lavasani, não é certo trabalhar para o senhor nessas condições. Mas meu marido poderia cuidar do seu pai. Ele está desempregado, seria muito importante para nós. Só não diga que eu estive aqui, que já trabalhei para o senhor. Vou falar que vi o anúncio no jornal, então digo para ele entrar em contato com o senhor”. Assim falou Razieh, mas Samadi, seu marido, não foi trabalhar no dia seguinte. “Os credores do meu marido o puseram na cadeia, mas logo irei até eles para implorar pela soltura. Por ora, preciso do emprego novamente, Sr. Lavasani”.

A rotina continuaria a rezar segundo os princípios da tradição e das profundas distinções sociais, se um acontecimento fortuito não ocasionasse uma nova e mais profund’A Separação’. Certo dia, Somayeh leva o lixo para fora do apartamento de Lavasani para ajudar a mãe com a lida que, futuramente, poderá vir a desempenhar. O saco se rasga sobre a escada, e a menina se lambuza toda ao tentar conter o vazamento. A vizinha judiciosa, Sra. Kalani, faz as vezes da patroa ausente, já que Simin não está mais em casa: “Razieh, lave os degraus assim que puder e tenha cuidado ao recolher o lixo”. Durante o lapso de tempo em que Razieh e Somayeh estão ocupadas com as pegadas do lixo, o Sr. Alzheimer consegue driblar momentaneamente o cativeiro de sua cama ladeada por um balão de oxigênio para ir até a banca de jornal e fazer o que sempre fizera antes que a enfermidade o transformasse em um mero corpo. Razieh se desespera ao ouvir de Somayeh que o Sr. Alzheimer já não está em sua cela. É preciso buscá-lo, mas a gestação de 19 semanas a faz arfar – e tombar. A enfermeira consegue alcançar o paciente entre os carros, mas o preço que paga pela captura do Sr. Alzheimer logo transformará Lavasani em futuro réu. Para evitar que o velho volte a fugir, Razieh o amarrará junto ao estrado da cama. Assim, é possível ir ao ginecologista durante o horário de serviço sem se preocupar, já que o patrão só volta do trabalho no fim da tarde. Eis que em mais uma das coincidências – ou seriam co-incidências? – que a arte via de regra traz à tona, Lavasani e Termeh voltam para casa mais cedo e encontram o vovô estirado no chão, semimorto, sem que a enfermeira possa dizer o que teria acontecido. Pouco depois, quando Razieh volta ao serviço, o conflito está formado: Lavasani a censura por ter amarrado o pai à cama e, além do mais, “por que você entrou no quarto em que eu deixo o dinheiro?” É bem verdade que o patrão se preocupa em passar reprimendas na empregada tomando todo o cuidado para que Somayeh não presencie a discussão. Mas à faxineira não foi fornecido sequer o benefício da dúvida. Além de ser privado da riqueza social, o pobre torna-se culpado pela própria pobreza, contradição que o leva, segundo os juízos da classe média, a cobiçar aquilo que seu trabalho não pode adquirir. De forma coerente com os princípios morais de seu credo, Razieh não nega que tenha agido mal com o pai de Lavasani, mas se mostra completamente indignada com a acusação de que seria uma ladra. Seu desespero chega ao ponto de voltar ao apartamento do ex-patrão para recuperar a honra ofendida. Diante do pai que não mais esboça reação e da filha que só faz chorar pelo avô moribundo, Lavasani não sabe como lidar com a ex-empregada que grita a não mais poder para que ele retire as acusações que, segundo ela, a transformavam injustamente em uma pecadora aos olhos de Alá. O frisson faz com que Lavasani perca as estribeiras e empurre Razieh porta afora. 

“Será que Simin quer fazer as pazes?” – eis o que talvez passe pela cabeça de Lavasani quando a ex-sogra lhe telefona dizendo que Simin quer encontrá-lo para conversar. Mas um armistício não é exatamente o que a ex-esposa tem a propor. A cunhada de Razieh, o contato de Simin que intermediou a contratação da enfermeira por Lavasani, “acabou de ligar dizendo que Razieh perdeu o bebê. Eu desliguei o telefone assim que ela começou com palavrões e ameaças”. De uma hora para a outra, o acaso cego transforma o honesto pai de família em potencial homicida. Mas não, é preciso ir ao hospital para prestar assistência – eis o que Lavasani e Simin têm a dizer a Samadi, o marido enfurecido que tenta espancar o suposto homicida que, ainda por cima, contratara sua esposa como enfermeira sem o seu prévio consentimento. Está constituído o imbróglio que trará um novo juiz para mediar a mais nov’A Separação’ que agora almeja não apenas o divórcio, mas a condenação. 

Lavasani não será condenado à forca, porque não houve dolo, isto é, intenção de matar. “Mas a corte poderá sentenciá-lo a três anos de prisão se ficar caracterizado que o senhor tinha consciência de que a vítima estava grávida” – protocola o juiz. Lavasani só faz negar, mas o direito, ainda que assentado sobre bases teocráticas, precisa de provas materiais para proferir suas decisões. O Ocidente corrobora o Irã ao estruturar o princípio segundo o qual a dúvida não pode ser imediatamente sondada senão por vestígios que a comprovem de modo exterior, isto é, material. Nesse sentido, é preciso comprovar que Lavasani de fato ignorava a gestação de Razieh, o que transformaria o empurrão na enésima agressão contra a mulher que o juiz poderia classificar como “assunto menor”. Qahraei, a tutora de Termeh, é convocada a depor, e Lavasani fica sabendo que só sairá do juizado mediante o pagamento de uma fiança caríssima. 

A partir de então, a trama correlaciona todos os conflitos em função do dilema supostamente homicida. Ao pagar a fiança com parte do dinheiro que estava destinado para a sua saída do Irã, Simin volta a pressionar o ex-marido para que autorize Termeh a deixar o país com a mãe. Se Razieh e Lavasani chegarem a um acordo por meio de uma polpuda indenização, Samadi ficará livre dos credores e a acusação de homicídio será retirada. Para tanto, é preciso que Lavasani admita sua culpa, coisa que o pai de Termeh não quer fazer, a menos que os fatos comprovem que seu empurrão efetivamente levou ao choque que vitimou o feto. Para Samadi, no entanto, não se trata apenas de permutar a vida do filho por três cheques que perfaçam o valor de suas dívidas e restituam sua reputação comercial. É preciso haver justiça. “Trabalhei dez anos para um sapateiro, até que um dia fui mandado embora sem receber meus direitos. Procurei a justiça, mas nada aconteceu. Mas, dessa vez, eu vou até o fim, aquilo não vai se repetir”. Assim como o filme não critica o regime abertamente, fica latente a sensação de que a justiça classista medirá com pesos distintos as partes que pertencem a diferentes posições sociais. Samadi não fica surpreso, então, quando a senhora Qahraei afirma que Lavasani desconhecia a gravidez de Razieh, pois “ele não estava na sala quando tivemos essa conversa”. Ora, se a surpresa não o tomou, a fúria fez com que o pai do feto morto começasse a proferir impropérios contra a testemunha e, em seguida, contra o próprio juiz. “Você pensa que eu tenho medo da cadeia?” – ousa perguntar Samadi. “Você é que deveria ter medo da justiça divina ao chegar a sentenças injustas!” Dai a César o que é de César, e a Deus o que é de Deus: diante da fúria impalpável e implacável de Alá contra a qual o juiz não pode se indispor, Samadi acaba sentenciado a três dias de prisão para que seu ânimo se aplaque e volte a se prostrar diante do poder terreno. “O problema é que eu tenho a cabeça quente e não sei falar como ele!” – Samadi engatilha o dedo em riste contra Lavasani. Razieh começa a chorar copiosamente e implora para que a sentença seja relaxada, “meu marido já foi preso uma vez, meritíssimo, ele está desempregado faz tempo, entrou em depressão, toma todos esses remédios, por favor, ele não falou por mal”. A nova humilhação de Razieh consegue a misericórdia judicial. “Alá o abençoe!” 

Termeh sente muito medo pelo que pode acontecer ao pai, mas ainda assim o interpela em busca da verdade. “Você de fato não sabia que Razieh estava grávida?” Samadi, que reitera aos quatro cantos que não tem mais nada a perder, é mais incisivo: o pai do filho morto vai até a escola em que Qahraei trabalha para questioná-la diante de todos se ela mantinha o que dissera no tribunal. “Você jura que Lavasani não sabia que minha mulher estava grávida?” Samadi não aceita as respostas da tutora de Termeh, o segurança tenta tirá-lo dali, o desespero se instaura, até que uma promessa inquestionável faz com que todos se calem. Samadi eleva o Corão e pede que Qahraei jure sobre o livro máximo do Islã que está dizendo a verdade. O silêncio posterior à oração mostra aos espectadores ocidentais que o temor a Alá constitui um espectro que estrutura as relações sociais, de modo que sua invocação tende a suprimir as dissensões. A justiça futura e transcendental enquadra a injustiça cotidiana e se eleva sobre as desigualdades e distinções na mesma medida em que as mantêm. Alá iguala seus fiéis diante de Sua onipotência, mas ao invés de nos depararmos com indivíduos que assumem efetivamente a responsabilidade de seus atos porque se veem como sujeitos sociais que vivem em interdependência, estamos diante do princípio que transforma o temor em consciência e limite. Um deus vingativo requer súditos ao invés de sujeitos. De qualquer forma, conseguiríamos encontrar no Ocidente um princípio em face do qual os cidadãos superassem a competitividade e a contraposição cotidianas em prol da fraternidade? 

No último quartel do século XIX, o escritor russo Fiódor Dostoiévski (1821-1881) e sua personagem Ivan Karamázov, anti-herói do romance ‘Os Irmãos Karamázov’ (1879-80), conceberam o aforismo que apreendeu o vácuo ético em um mundo que, a reboque de Marx, Nietzsche e Darwin, sepultara a instância divina. “Se Deus não existe, tudo é permitido”. ‘A Separação’ estrutura diversas críticas à teocracia iraniana, mas ao mesmo tempo parece reverberar uma máxima para o espectador ocidental. “Se Alá existe, nem tudo é permitido”. Os movimentos utópicos poderiam responder que a aposta em Alá constitui um anacronismo que deve ser superado pela reconstrução do Éden perdido aqui na terra – assim no céu como na terra. Mas a queda da União das Repúblicas Socialistas Soviéticas em grande medida despojou os revolucionários de um norte que orientasse e tornasse coeso o ímpeto de contestação. Daí a euforia dos apologistas que sentenciaram o fim da História e transformaram a perversidade das relações sociais do capitalismo tardio em nossa segunda natureza. Nesse sentido, o que poderíamos contrapor à lógica punitiva de Alá como princípio de coesão social? Os valores democráticos turvados e deformados continuamente pelas relações de mercado? A maximização das satisfações pessoais que, no limite, arremessa os cidadãos em uma contínua e cotidiana autofagia social para a busca dos recursos escassos? A provocação iraniana do diretor Asghar Farhadi contrapõe uma antítese à tese da democracia ocidental para que pensemos sobre uma possível síntese que possa movimentar a história e suas contradições ainda uma vez. 

Qahraei revoga seu primeiro testemunho e afirma que Lavasani poderia ter conhecimento sobre a gravidez de Razieh. Para o pai de Termeh, só importa o juízo que a filha possa dele fazer. Afinal, “pai, como você soube que a empregada fora ao ginecologista aquele dia? Você mentiu para mim, não é? Você escutou a conversa que Qahraei teve com Razieh, não é mesmo? Você sabia que ela estava grávida, não sabia?” A resposta de Lavasani sintetiza o princípio que transforma o ímpeto religioso em profunda consciência moral: “Eu estava na cozinha e ouvi a conversa delas. Mas sabe o que poderia acontecer comigo? Eu poderia passar até três anos na prisão. Eu pensei no que aconteceria com você. Eu sabia que ela estava grávida, mas não naquele momento. Eu tinha esquecido. Não estava prestando atenção. A lei não leva isso em conta. Eu sabia ou não sabia. Olhe para mim: se você quiser, eu vou contar para eles”.

Para Lavasani, já não se trata apenas do medo do castigo em face do crime. Trata-se da educação moral da filha, que vê no pai um exemplo a ser seguido. É bem verdade que relegar a decisão à filha de 11 anos não parece algo efetivamente justo. Mas Termeh fora educada segundo princípios de retidão e equanimidade. Ao longo do filme, a menina jamais buscara o privilégio para o pai contra a busca da verdade factual. Se a lei não consegue ser dinâmica a ponto de acompanhar o complexo e contraditório movimento da realidade, Termeh chega à conclusão de que o pai não deve ser indiciado, mesmo porque o benefício da dúvida o alcança: e se algo além do empurrão fosse a verdadeira causa da morte do feto? 

Simin tenta costurar um acordo com Razieh e Samadi – “afinal, é preciso sair do Irã” –, mas Razieh passa a ser cada vez mais atormentada por temores religiosos que a consomem. Em um encontro com Simin na escola da professora de inglês, Razieh admite, como em uma confissão religiosa, que a culpa foi toda sua. Ela fora atropelada no dia em que tentara resgatar o Sr. Alzheimer de sua odisseia até a banca de jornal. À noite, passou a sentir fortes dores e se deu conta de que o bebê já não se movia. (No ímpeto irresistível de buscar os fatos e conectá-los em uma narrativa coerente para que o culpado possa ser julgado e potencialmente condenado, o direito por vezes apenas resvala certas nuances que escamoteiam a esguia verdade real dos fatos e colidem com a lógica do poder que precisa de efetivas sentenças.) O que aconteceria com Razieh se o explosivo Samadi soubesse que o bebê fora perdido por culpa dela? A lei demonstraria clemência se discernisse que Razieh fora prudente ao amarrar o Sr. Alzheimer para conseguir remover o feto morto de seu ventre sem que as garras do poder misógino ficassem sabendo? Tais nuances nos fazem compreender o dilema objetivo de Razieh: sendo uma mulher pobre, a injustiça em relação ao Sr. Alzheimer aponta para uma escolha que se volta para a sobrevivência tanto como esposa/mãe quanto como enfermeira/faxineira. Assim, quando o acordo financeiro está para ser feito em troca da retirada da queixa contra Lavasani – os credores ao redor de Samadi mal podem esperar para amealhar os cheques –, o pai de Termeh, munido de sua dignidade, conclama Razieh a um último juramento:

− Se de fato eu preciso assumir a culpa, jure sobre o Corão que foi o meu empurrão que provocou a morte de seu filho. 

Mais uma vez, Alá coíbe o egoísmo e a competição socialmente geridos pela luta de classes. Razieh teme que haverá punição divina contra sua filha se aceitar um dinheiro de proveniência injusta e não ousa mentir sobre o livro sagrado. Os credores ficam de mãos vazias, Samadi volta a ser acossado pelas dívidas e Termeh aprende que há contradições de interesses que elevam a moralidade ao invés de restringi-la à letra da lei abstrata e estática. A preocupação de Lavasani em não deixar o pai e a filha desamparados superava o amor que sentia pela esposa – tratava-se de um dever internalizado pela consciência, e tanto pior para o amor conjugal e para a análise material dos fatos se tal dinâmica profundamente humana não configurar um atenuante fundamental para o estabelecimento de novas relações sociais. 

A tomada derradeira do filme ata o princípio ao fim: Lavasani, Termeh e Simin vão à audiência que decidirá o futuro da filha. Agora, cabe a Termeh decidir se ficará com o pai, no Irã, ou se partirá com a mãe para além do Islã. A câmera volta a assumir o plano do juiz, então vemos as personagens frontalmente como se os espectadores devêssemos interpelar a pré-adolescente junto com o magistrado. “Então, Termeh, você já se decidiu?” As lágrimas convencem o juiz de que é melhor que os pais saiam da sala para que a decisão da filha seja proferida. E assim a câmera leva os pais a um corredor que os aparta. A imagem em questão vela e desvela uma miríade de sentidos. Simin, a mãe e professora ocidentalista, posta-se à esquerda, de pé, sempre querendo se mover e progredir; Lavasani, digno e tradicional pai de família, senta-se à direita. Qual será a escolha de Termeh? O filme prolonga a resolução irresoluta: como os caracteres finais começam a descer sobre os pais à espera, é preciso que respondamos pela jovem ou que reverberemos ainda uma vez a contradição. Entre a tese do Ocidente autofágico e capitalista e a antítese do Irã de Alá – e de Ahmadinejad –, ainda não houve uma efetiva síntese utópica que reconfigurasse as relações sociais, de modo que o ímpeto de liberdade de Simin voltasse a se casar com a dignidade de Lavasani para que Termeh fosse a efetiva filha de nossos tempos. 


*Flávio Ricardo Vassoler é mestre e doutorando em Teoria Literária e Literatura Comparada pela FFLCH-USP e escritor. Seu primeiro livro,O Evangelho segundo Talião (Editora nVersos), será publicado em abril. Periodicamente, atualiza o Subsolo das Memórias, http://www.subsolodasmemorias.blogspot.com/, página em que posta fragmentos de seus textos literários e fotonarrativas de suas viagens pelo mundo. 


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