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marxismo-racismoDiário Liberdade - [Jones Manoel] Uma das principais armas dos detratores do movimento comunista é afirmar que as experiências socialistas do século XX significaram um reino de terror e opressão para as minorias. Essa mentira, de tão repetida, ganhou ares de "verdade histórica". Essa retórica não parte apenas de pensadores reacionários e liberais: Carlos Moore é um famoso estudioso do racismo e das relações étnico-raciais e dedica grande parte de sua obra à "provar" que Marx e Engels - e todo movimento comunista -, foram/são racistas. Não é o lugar nesse texto fazer uma análise mais profunda sobre a obra de Moore, contudo acho necessário tecer alguns comentários sobre sua palestra no seminário "Pan-africanismo e Marxismo" acontecido na UERJ [1].


Foto: Fidel Castro em encontro com Malcolm X.

Moore parte de dois argumentos centrais para dizer que o marxismo/movimento comunista é racista: A) Marx e Engels foram racistas e apoiaram o colonialismo e a escravidão e isso é "provado" através de inúmeras cartas que ele analisou; B) A Revolução Cubana e seus dirigentes foram racistas (com destaque para Fidel e Che). Cabe acrescentar que Moore também argumenta durante toda sua fala que o marxismo não é capaz de responder adequadamente ao racismo e que diz que o racismo é fruto apenas das desigualdades sociais (ele não cita qual marxista diz isso).

Antes de tudo, Moore parte de um pressuposto metodológico errado: cartas e textos jornalísticos, por mais significativos que sejam, não podem tomar o lugar das principais obras de Marx e Engels. Por exemplo: Marx levou vinte e cinco anos de estudo e dedicação para escrever "O Capital". Nele, Marx disserta sobre o colonialismo e o racismo (sobretudo quando fala da acumulação primitiva do capital). Dar o mesmo status da obra de um autor (que dedicou vinte e cinco anos para produzi-la) à um texto jornalístico de duas páginas é, no mínimo, absurdo.

Aliado a isso, é verdade que Marx tem algumas cartas com conteúdo racista; contudo, um pesquisador sério faria a pergunta central: esse suposto racismo está presente no corpo da teoria criada pelo autor? A resposta para essa pergunta é não. Marx e Engels viveram na Europa Ocidental do século XIX. Estava vigente na época o evolucionismo cientificista e o positivismo. Esse evolucionismo pensava os seres humanos em termos de raças inferiores e superiores, deduzia essa suposta desigualdade de raças como algo genético, natural; que existiam raças mais inteligentes e aptas a sobrevivência e outras não.

Marx e Engels, além de nunca terem caído nesse evolucionismo cientificista, travaram duros combates contra ele. O materialismo histórico entende que as relações humanas são históricas e devem ser entendidas em sua historicidade, refutando qualquer explicação metafísica, biologizante ou naturalista das relações humanas. As relações de produção constituem o fundamento ontológico de qualquer sociabilidade humana - e é compreendendo esse fundamento ontológico em sua dinâmica inter-relacional com todas as esferas sociais que compreendemos as relações sociais de uma época.

Domenico Losurdo, um grande estudioso do colonialismo e imperialismo, afirma que existe na obra de Marx e Engels certa ambigüidade quanto à questão do colonialismo. Para Losurdo, Marx e Engels sempre tiveram dificuldades de superar um elemento fundamental da filosofia da história burguesa: a idéia de exportar a civilização. Embora em um texto fundamental de Marx, como o capítulo do Capital sobre "Acumulação primitiva" ele tenha feito uma denúncia implacável e contundente contra o colonialismo e a escravidão, em alguns outros textos (como os jornalísticos sobre os Estados Unidos) aparece a idéia de que a exportação do capitalismo aparece como um avanço civilizatório. Contudo, essa ambigüidade deve ser analisada com cuidado e não se limitar a pegar trechos isolados para defender uma posição ou outra - e tirar uma posição unilateral.

Além disso, é um fato claro que o marxismo não se resume a Marx e Engels: Domenico Losurdo é contundente ao afirmar que esses resquícios da filosofia burguesa da historia foram totalmente superadas em Lenin [2]:

Em relação a este mundo, Lênin representa uma ruptura não só no plano político, mas também epistemológico: a democracia não pode ser definida independentemente dos excluídos, "o despotismo" exercido sobre "bárbaros" obrigados à "obediência absoluta" própria dos escravos e as infâmias da expansão e do domínio colonial lança uma luz inquietante sobre os Estados Liberais, e não só que respeita à sua política interna (Losurdo, 2006, p. 18).

Em outra passagem Losurdo reforça o avanço representado pelo leninismo:

O grande revolucionário russo leva radicalmente a sério a tese cara a Marx e Engels, de que um povo que oprime outro não pode ser livre. Num certo sentido ainda leva mais sério que os autores que formularam em primeiro lugar (Losurdo, 2006, p. 20).

Pode-se, com tudo isso, concluir que Marx e Engels guardam certa ambigüidade quanto ao colonialismo; contudo, nas suas principais obras (Manifesto do Partido Comunista, O Capital, Contribuição à Crítica da Economia Política, 18 Brumário de Luís Bonaparte, A Origem da Família, da Propriedade Privada e do Estado e o Anti-Duhring) temos críticas contundentes e certeiras ao colonialismo. Essa ambigüidade residual é superada por Lenin e vários outros marxistas (como Gramsci, Che Guevara, Amílcar Cabral, Mao, etc.). Em relação à escravidão, não existe qualquer apoio por parte de Marx e Engels e como já foi dito: o materialismo histórico é uma teoria essencialmente anti-racista, pois combate qualquer forma de naturalismo e cientificismo racialista. Portanto, o primeiro argumento de Moore é uma falácia completa.

Revolução cubana e racismo

Carlos Moore teve vários problemas com o Governo Cubano e se exilou do país. Ele afirma que sofreu perseguições por combater o racismo na ilha e que os dirigentes da revolução eram todos racistas. Bem, não posso entrar de forma mais profunda na questão do combate ao racismo em Cuba socialista, devido ao formato do texto.

Mas cabe destacar elementos metodológicos da forma de pensar do Moore:

• Moore usa o que Domenico Losurdo chama de "culto negativo dos heróis". Todos os problemas e decisões do socialismo cubano são debitados da vontade subjetiva dos seus líderes. O quadro histórico geral em que se processa a construção do socialismo, as condições objetivas e as relações de Poder envolvidas (enfrentamento ao imperialismo, etc.) somem como em um passe de mágica. Por exemplo: Moore afirma que a não renovação do primeiro grupo dirigente da revolução (uma meia verdade) é resultado do racismo, contudo, o fato de Cuba enfrentar o imperialismo estadunidense (não é só o bloqueio econômico, mas também atentados terroristas, rádios ilegais de propaganda contrarrevolucionária, financiamento de grupos de desestabilização, tentativa de assassinato de líderes, sabotagem, etc.) há mais de 50 anos e que esse enfrentamento provocou certa regressão da democracia socialista some do horizonte. Quando Moore afirma que religiões de matriz africana sofreram certa perseguição em Cuba (o que é verdade, mas não por parte do Estado Operário), ele debita isso apenas à personalidade de Fidel Castro. Os mais de três séculos de catolicismo hegemônico e todo o preconceito antes de Revolução que existia somem do mapa e tudo é culpa de Fidel – e do socialismo.

• As experiências socialistas foram crivadas de contradições entre elementos emancipatórios e não-emancipatórios. Os anticomunistas costumam esconder essa dialética e colocar uma lente de aumento nos elementos não-emancipatórios, tirando-o do quadro histórico; e não raro fazem desses elementos uma deriva necessária da ideologia comunista ou do sadismo de um líder louco. É isso que o Moore faz ao afirmar ações racistas por parte do Estado cubano (algumas verdadeiras), mas excluir as várias ações de combate ao racismo e emancipação dos negros vigente em Cuba - e conclama: a Revolução foi/é racista.

Contudo, cabe destacar uma coisa: além de todos os problemas na lógica da argumentação, temos uma falácia já na problemática básica. Mesmo se a Revolução Cubana fosse totalmente racista, isso não autoriza ninguém a deduzir que o marxismo é racista ou que o marxismo não pode ser instrumento na luta contra o racismo. Na mesma época da Revolução Cubana tínhamos várias lutas na África e na Ásia pela libertação nacional, inspiradas no marxismo e acopladas ao movimento comunista; e, nos Estados Unidos, o Partido dos Panteras Negras (de orientação marxista) e outros grupos radicais de combate ao racismo começavam a ganhar destaque na luta por sua libertação [3]. Será que essas milhões de pessoas que usaram o marxismo como arma de emancipação estavam errados e o senhor Moore é que está certo?

Aliás, embora não seja possível, nesse texto, traçar uma análise ampla da participação do movimento comunista no combate ao racismo e ao colonialismo (principal promotor histórico do racismo), faz-se necessário tecer alguns comentários sobre a questão. Nos Estados Unidos, principal símbolo do racismo depois da Alemanha Nazista e África do Sul, o papel dos comunistas foi:

A URSS de Stalin influencia poderosamente a luta dos afro-americanos (e dos povos coloniais) contra o despotismo racial. No Sul dos EUA se assiste a um fenômeno novo e preocupante do ponto de vista da casta dominante: é a crescente 'imprudência' dos jovens negros. Estes, graças aos comunistas, começam, de fato, a receber o que o poder teimosamente lhes negava, a saber, uma cultura que vai muito além da instrução elementar tradicionalmente transmitida aos que estão destinados a fornecer trabalho semiescravo a serviço da raça dos senhores. Agora, porém, nas escolas organizadas pelo partido comunista no norte dos Estados Unidos ou nas escolas de Moscou, na URSS de Stalin, os negros se empenham em estudar economia, política, história mundial; interrogam essas disciplinas para compreender também as razões da dura sorte reservada a eles num país que se comporta como campeão da liberdade. Aqueles que frequentam tais escolas passam por uma mudança profunda: a "imprudência' censurada a eles pelo regime de white supremacy é na realidade a autoestima deles, até aquele momento impedida e espizinhada (Losurdo, 2010, p. 280-281)

Além disso, cabe destacar a forma como se davam as relações étnico-raciais na URSS:

Uma negra, delegada no Congresso Internacional das mulheres contra a guerra e o fascismo, que se realiza em Paris em 1934, fica extraordinariamente impressionada com as relações de igualdade e fraternidade, apesar das diferenças de línguas e de raça, que se instauram entre os participantes dessa iniciativa promovida pelos comunistas: 'Era o paraíso na terra'. Aqueles que chegam a Moscou - observa um historiador estadunidense contemporâneo - 'experimentam um sentido de liberdade inaudito no sul'. Um negro se apaixona por uma branca soviética e se casam, mesmo se depois, ao voltar à Pátria, não pode levá-la consigo, sabendo o destino que o sul aguarda aos que se mancham com a culpa da miscegenation e do abastardamento racional (Losurdo, 2010, p. 280-281)

A URSS, como todos deveriam saber, foi o primeiro país do mundo a criminalizar o racismo, adotar o sufrágio universal (independente de etnia, renda, gênero, etc.). Também desenvolveu uma ampla política de integração das minorias nacionais, vítimas de racismo secular por parte do Estado czarista (com apoio de todas as potências liberais). Essa política de promoção da dignidade das minorias nacionais provocou um forte impulso em todos os povos do mundo que viveram em situação colonial de exploração. Sobre essa política:

A União Soviética foi o primeiro império mundial fundado sobre a affirmative action. O novo governo revolucionário da Rússia foi o primeiro entre os velhos Estados europeus multiétnicos a enfrentar a onda crescente do nacionalismo a responder promovendo sistematicamente a consciência nacional das minorias étnicas e estabelecendo para elas muitas das formas institucionais características do Estado-nação. A estratégia bolchevique foi assumir a liderança daquele processo de descolonização que se apresentava como inevitável e levá-lo a cabo de modo tal que preservasse a integridade territorial do velho império russo. Para tal fim o Estado soviético criou não só uma dúzia de repúblicas de amplas dimensões, mas também dezenas de milhares de territórios nacionais espalhados por toda a extensão da União Soviética. Novas elites nacionais eram educadas e promovidas a posição de lideranças no governo, nas escolas, nas empresas industrias desses territórios recém-formados. Em muitos casos isso tornou necessário a criação de uma língua escrita lá onde antes não existia. O Estado soviético financiava a produção em massa nas línguas não russas de livros, jornais, diários, filmes, óperas, museus, orquestras de música popular e outros produtos culturais. Nada comparável existiria antes (Martin apud Losurdo, 2010, p. 171)

Mas não foi só o primeiro Estado socialista do mundo que desenvolveu essa ampla política de combate ao racismo e ao colonialismo [4]. A Internacional Comunista (ou Terceira Internacional) também foi fundamental nesse combate. Com a palavra, um grande revolucionário do MPLA que lutou pela libertação de Angola:

Difundiam-se, com certa regularidade, notícias da penetração da propaganda bolchevista nas colónias portuguesas, a exemplo da "mensagem aos trabalhadores brancos e negros" assinada por Lênin e G. Thcitcherine e cuja cópia foi encontrada pelo chefe da circunscrição da Mossurize (então território da Manica e Sofala), em 1919, entre as mãos de um indígena de Johanesburgo. Circulam igualmente informações da passagem, em outubro de 1927, por Lourenço Marques, de um suspeito comunista, "o cidadão da Livónia russa de Bakin" e no mesmo mês foi repercutido um telegrama confidencial do Ministério português da Colónias comunicando a intenção de dois "comunistas" Dmitri Rodaien (ou Rodaiev?) e Senes Chapiro, acompanhados do português José Almendroa, se dirigiam à Guiné, Angola e eventualmente a Moçambique "em reunião de propaganda comunista especialmente encarregados de ativar com elementos locais o desenvolvimento da incidentes graves intervencionais entre as nossas colónias e as colónias inglesas" (Andrade, 1999, p.179).

Como podemos ver, enquanto Moore diz que o marxismo sempre foi racista, para os racistas de verdade o marxismo era uma grande ameaça a ser combatido. Cabe destacar que não estamos negando os erros combatidos no século XX no enfrentamento ao racismo. Eles aconteceram. Porém, no geral, o movimento comunista teve uma atuação fundamental e essencialmente positiva no combate à opressão racial. Poderíamos falar mais, comparar a fala do grande líder da Revolução Vietnamita Ho Chi Minh [5] com a do Moore, mas os exemplos acima já são suficientes. Cabe, apenas, antes de terminar, citar o grande revolucionário de Gana Kwame Kkrumah, que dizia:

Tenho certeza de que a luta contra o imperialismo, o neocolonialismo e a opressão racial, justamente com a tarefa de construir o socialismo, sejam os instrumentos para enfrentar as forças de exploração, tanto interna quanto externa. Pan-africanismo e socialismo são organicamente complementares: um não pode se realizar sem o outro (Villen, 2013, p. 38)

Bibliografia citada:

Domenico Losurdo. Liberalismo. Entre a civilização e a barbárie. Anita Garibalde, 2006.

---------- Stalin: uma história crítica de uma lenda negra. Editora Revan, 2010.

Patricia Villen. Amílcar Cabral: e a crítica ao colonialismo. Expressão Popular, 2013.

Mário Pinto Andrade. Origens do nacionalismo africano. Publicações Dom Quixote Lisboa, 1990.

Notas:

[1] Vídeo com a Palestra do Carlos Moore: http://www.youtube.com/watch?v=MKaCIHHLJ6s.

[2] Ensaio fundamental de Lênin contra o colonialismo: http://www.marxists.org/portugues/lenin/1914/auto/cap01.htm.

[3] Filme sobre os Panteras Negras: http://www.youtube.com/watch?v=sKuyDdoo3NI.

[4] Iconografias soviéticas das campanhas mundiais de combate ao racismo: http://www.licknyc.com/soviet-propaganda-poster/.

[5] Texto fundamental de Ho Chi Minh sobre a importância do leninismo para os povos coloniais: http://marxists.catbull.com/portugues/ho_chi_minh/1960/04/leninismo.htm.

Jones Manoel é graduando em História pela Universidade Federal do Pernambuco (nordeste brasileiro) e militante da UJC/PCB.


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