1 1 1 1 1 1 1 1 1 1 (1 Votos)

cullodenEscócia - Keltos - [Erick Carvalho] Em Outubro de 2012 em St. Andrews House, sede do governo escocês, o premiê britânico David Cameron e o escocês, Alex Salmond, assinaram um acordo que previa a elaboração de um grande referendo popular na Escócia para o ano de 2014. Mas, que classe de país é a Escócia?


O referendo de independência marcado para o 18 de setembro próximo tem como proposta algo que num primeiro momento é bem simples: A Escócia deve ou não se tornar independente do Reino Unido e, consequentemente, da Inglaterra? A resposta, no entanto, não é assim tão fácil de obter.

A complexidade de tal referendo não se encontra na ideia em si, mas no que ela implica em diferentes níveis participativos e representativos da sociedade civil escocesa. Por trás de um referendo de tal porte, a atenção dos jornais ingleses e, por que não dizer, internacionais se manteve no debate econômico enquanto internamente se buscava algum outro entendimento.

De um lado se debatia o impacto financeiro de uma profunda troca do sistema monetário escocês, bem como implicações sobre usos de reservas de petróleo e do manejo de armas nucleares inglesas presentes em solo escocês. De outro lado, no entanto, outro debate bem mais profundo se apresentava. Uma batalha pela identidade escocesa, um retorno a distorcida memória dos campos de Culloden.

Afinal, os modelos políticos célticos aqui inseridos em uma dinâmica circular de poder político racional dentro da sociedade escocesa esbarram e tropeçam em seu próprio nacionalismo e, pelo menos por trezentos anos, fazem de qualquer ação afirmativa da soberania da Escócia uma disputa por uma memória conflitante das suas próprias conquistas históricas, assombrando não apenas seus inúmeros castelos, mas também toda uma nação.

Basicamente, a construção de uma memória política jacobita[1]mitificada desde a derrota na Batalha de Culloden[2] no século XVIII e a memória céltica escocesa, formada por suas bases etnonostálgicas deram a tônica das complicações que a disputa por uma independência pode trazer. Desta forma, o grande entrave a plena soberania do povo escocês em muito se deve a indefinição destes elementos na construção do que é ser escocês e isso se reflete nas diferentes tradições inventadas por toda a Escócia nos últimos duzentos anos.

Afinal, se existe uma nação conhecida por suas tradições inventadas mundialmente, essa nação é a Escócia. Das gaitas de fole aos kilts, muito se entende do quão tradicional esse país pode ser. No entanto, o que raramente se percebe é que não existe de fato uma cultura homogênea por toda a Escócia e mesmo geograficamente esses diferentes modelos de vida podem ser sentidos em uma rápida comparação entre o modo de vida das famosas Highlands (terras altas, ao norte e no interior) com as das Lowlands (terras planas, ao sul e mais centrais), por exemplo.

As implicações políticas destas disputas são diversas. Entre estas variações encabeçadas por essas diferentes visões de uma identidade escocesa, nós encontramos o aumento contínuo da complexidade da própria lógica do sistema político escocês inserido em uma esfera pública minimamente organizada, mas que nunca soube lidar com as diferentes vertentes do projeto reflexivo do eu nacional, seja ele jacobita ou céltico.Para se chegar nessas implicações políticas necessárias para o entendimento do referendo marcado para 2014, antes se devem entender quais memórias escocesas encontram-se em disputa nos últimos quase trezentos anos e que problemas essas diferentes memórias coletivas em disputa serviram para o engessamento de um projeto maior de autonomia e soberania escocesa até a segunda década do século XXI.

A Batalha pela Escócia: Entre o céltico e o Jacobita

O Sentimento de pertença escocês sempre esteve em disputa interna e externa. Externamente pelas diferenças e experiências que consolidaram o fator inglês e britânico enquanto o "outro" em sua formação. Internamente por um complexo e problemático ato memorativo que divide a Escócia não apenas geograficamente, mas politicamente.

A Escócia possui elementos ambíguos em dois níveis. Na sua formação nacional limitada nós temos a identidade britânica sempre vista como uma ameaça apesar de integrada por meio de sanções políticas da estrutura do Reino Unido ao agir normativo sobre toda e qualquer ação política escocesa.

Os elementos britânicos são reconhecidamente o outro e dominam a Escócia que se constrói tradicionalmente resistente por seus elementos folclóricos dos mais variados.

Aparentemente não se entende de onde vem tamanha dominação inglesa sobre o ímpeto resistente escocês, mas é justamente por meio deste ímpeto e representatividade que a identidade britânica encabeçada pela Inglaterra age dramaturgicamente e normativamente sobre a Escócia.

A pergunta que qualquer um se faz nesse contexto é: o que faz da Escócia alvo fácil da dominação britânica se ela é tão resistente e distinta em sua construção nacional? A resposta reside na própria construção nacional, para sermos sinceros.

Afinal, internamente a ambivalência escocesa é notória. Tanto culturalmente quanto geograficamente o país é dividido em dois. De um lado nós temos as terras altas (Highlands) e do outro as terras baixas (Lowlands) que historicamente se percebem distintamente e refletem isso na valorização de seu passado e nos embates representativos de políticas públicas.

Nas LowLands uma memória conflitante é trabalhada. Primeiro porque é nessa região onde encontramos a maior concentração populacional e de renda em todo o país. Em segundo ponto porque é na lowland que se misturam sentimentos de pertença ancestrais, fatos históricos consolidados pela narrativa oficial e, sobretudo, uma ligação direta com os ingleses com relação a subserviência e certa parcela de herança germânica.

Essa suposta germanicidade das lowlands, a construção religiosa protestante e por vez loyalista de alguns de seus setores detentores dos meios de produção taxou qualquer outra referência a herança cultural das Highlands nada mais que um "sonho de um país pequeno", mesmo por narradores que aparentemente defendiam certa autonomia da Escócia, como o jornalista Andrew Marr, por exemplo.

Aplicava-se aqui uma vontade de isolar parte deste legado único que possuía as Highlands, uma herança céltica em grande parte. Essa postura das lowlands ganha contornos de guerra religiosa ao remeter-se de maneira contrária a memória jacobita escocesa e, sobretudo, a um catolicismo que buscava quebrar a unicidade do sentimento britânico por meio de uma independência escocesa.

A construção germânica da Escócia em muito é fruto de um alinhamento das terras baixas com a visão germânica e teutônica da identidade inglesa junto da "predisposição dos povos germânicos para liberdade (em oposição a um catolicismo tirânico)", como nos lembra Murray Pittock.

Essa tendência a uma pressuposta germanicidade das lowlands, pautado sobre um 'teutonismo' inglês, unia-se com os sentimentos nacionais escoceses e ingleses em uma germanicidade ambivalente.

Esta ambivalência entre Escócia germânica e Escócia céltica (marginal) foi construída pela mescla de elementos nobres ligados a uma germanicidade gótica e britânica dos escoceses que pelo ideal de liberdade deveria controlar o ímpeto céltico existente na sua formação.

Claro que estes elementos são construções do século XIX e início do século XX. Seu ponto de articulação inclui inúmeras teorias racistas ligadas a elementos não germânicos desta formação nacional escocesa e era corroborada por elementos culturais dos mais diversos como os textos de Sir Walter Scott, por exemplo.

Nestes textos e inúmeros outros em um conjunto que vai de publicações, romances, e periódicos a estudos científicos tendenciosos nós encontramos nitidamente a ideia de um celticismo caracterizado pelo lado emocional dos escoceses e o teutonismo como a correção intelectual do mesmo.

Neste sentido, ao menos historicamente a vivência escocesa é integrada a um sentimento de inglesidade, ao atrelar sua independência a uma ligação com a Inglaterra e certo distanciamento das ligações com a cultura celta das Highlands e os levantes Jacobitas visto como intrusos nas terras baixas germânicas da Escócia. Ignora-se historicamente que as terras baixas também tenham se levantado contra a Inglaterra, inclusive.

Inicialmente essa cultura jacobita escocesa é tida como desagregadora e iconoclasta. A cultura céltica das Highlands mais ainda. Até mesmo porque são as Highlands as terras tidas como atrasadas, selvagens, desregradas e com um violento potencial passional de seus habitantes, visto que estes são descendentes dos celtas e são detentores de uma tradição gaélica escocesa.

O Grande trunfo cultural britânico, neste sentido, foi o uso das tradições inventadas da Escócia como uma pitoresca faceta do domínio britânico e integrar isso a sua estrutura de poder político sobre o país.

Nessa visão, a Escócia foi então dividida geograficamente entre celta e teutônica, entre responsabilidade e selvageria romântica, onde esta ultima era associada ao celticismo emocional e deveria ser suprimido em nome da unidade britânica.

E é justamente a dominação dos elementos culturais célticos escoceses que permitiu ao Reino Unido administrar essa Escócia dividida sem que nunca esta conseguisse se unir mais incisivamente sobre seus próprios afazeres. Todas as tradições resistentes e, sobretudo as ligadas as Highlands, são subvertidas e usadas pelo ideal dominador britânico sobre a ilha. O tradicional Kilt escocês é uma prova disso. Afinal, não é por menos que até o hoje o uso do tartan é entendido dentro do exército britânico como um símbolo de heroísmo céltico, típico de grupos que servem a atividades arriscadas sem pensar muito nas consequências.

As tradições célticas das terras altas inventadas no século XVIII em esforço de se diferenciar culturalmente da já consolidada tradição céltica irlandesa da qual possuía uma relação muito estreita, foi pouco a pouco sendo transformada em elemento diferenciado da identidade escocesa e rapidamente controlado pelo domínio britânico para que este não se tornasse deveras independente.

Elementos escoceses como o tartan, a gaita de fole ou a farsa épica escrita por James Macpherson[3] por um breve momento deram ao escocês a distinção etnonostaligca que buscaram frente a seus vizinhos ingleses e irlandeses. No entanto, estes mesmos elementos que o distinguiam foram usados para sua domesticação pelo domínio britânico e relegaram ao estigma de atraso tudo aquilo que era céltico ou jacobita, tudo aquilo que era incisivamente escocês e não inglês.

 

[1] Grupo que apoiava a restauração do trono católico na Escócia. Seu nome vem de Jaime VII da Escócia e foram historicamente derrotados em 1715 e 1746. Mesmo após a derrota o movimento jacobita é idealizado de maneira romântica, sobretudo, pelas tradições dos clãs das Highlands escocesas.

[2] Conhecida por ser a última batalha terrestre a acontecer no solo do Reino Unido, a Batalha de Culloden ocorreu em Abril de 1746 e marca a derrota das forças jacobitas católicas e apoiadas pelas terras altas (Highlands) da Escócia. A derrota escocesa marca o domínio total inglês sobre o território escocês sob a bandeira do Reino Unido.

[3] James Macpherson (1736-96) foi o "tradutor" dos chamados "poemas ossianicos" entre os anos 1760 e 1763, onde teria se baseado na antiga tradição oral celta da Escócia para narrar de maneira épica um herói mítico chamado Ossian, equivalente ao herói celta irlandês Oisin. No entanto, apesar da farsa da produção textual, seus poemas tiveram grande impacto na aceitação e divulgação das tradições célticas escocesas no mundo, sendo chamado de 'Homero céltico' à época. Sabe-se, por exemplo, que figuras como Napoleão, William Blake, Thomas Jefferson, Henry David Thoreau e Goethe (que inclusive o traduziu para o alemão) eram admiradores da obra de Macpherson.


Diário Liberdade é um projeto sem fins lucrativos, mas cuja atividade gera uns gastos fixos importantes em hosting, domínios, manutençom e programaçom. Com a tua ajuda, poderemos manter o projeto livre e fazê-lo crescer em conteúdos e funcionalidades.

Microdoaçom de 3 euro:

Doaçom de valor livre:

Última hora

Quem somos | Info legal | Publicidade | Copyleft © 2010 Diário Liberdade.

Contacto: info [arroba] diarioliberdade.org | Telf: (+34) 717714759

Desenhado por Eledian Technology

Aviso

Bem-vind@ ao Diário Liberdade!

Para poder votar os comentários, é necessário ter registro próprio no Diário Liberdade ou logar-se.

Clique em uma das opções abaixo.