Prólogo
Um jovem navega no seu iPhone. Mexe no seu ecrã touchscreen com a mesma desenvoltura com que fala:
- O Estado é ineficiente. É um obstáculo ao desenvolvimento. Não inova. E não incentiva a inovação. É um péssimo empreendedor. Não estou certo? O Estado não é um paquiderme letárgico e incompetente?
Indaga para o sistema operacional do seu iPhone (a sua única companhia em muito tempo). O sistema operacional fêmea reconhece a sua voz prontamente. Após uma pesquisa (velocíssima) na sua base de dados, a voz feminina responde parafraseando Caetano Veloso:
- Como você é burro. Que coisa absurda. Isso aí que você disse é tudo burrice. Burrice.
http://www.youtube.com/watch?v=OB5zw4UVjUo
A cena anterior, se isso não ficou claro, é ficcional. Mas qualquer semelhança com a realidade NÃO é mera coincidência. Declarações do tipo são frequentes. Mas não se sustentam no mundo real. É apenas um sinal de burrice menos evidente. Ou, no caso de alguns, má-fé.
As tecnologias que tornam o iPhone o que ele é só foram possíveis graças ao financiamento público a investigações. No caso, pagas pelo governo dos Estados Unidos.
Tela sensível ao toque (touchscreen), sistema operacional ativado por comando de voz e o GPS (Sistema de Posicionamento Global; que fornece ao aparelho a sua posição, por exemplo, em relação ao seu companheiro). Tudo isso só foi possível graças ao apoio do Estado à investigação científica.
A Apple, a “criadora” do iPhone, aliás, só existe por causa do financiamento inicial do governo dos Estados Unidos. O dinheiro que possibilitou os primeiros passos da empresa veio de um programa de investimento a pequenas empresas (o “Small Business Investment Company”).
O Google, que o nosso personagem burro usava enquanto conversava com a máquina, existe somente porque o governo dos EUA financiou a empreitada. A investigação que resultou na tecnologia que permite que a busca do site funcione foi paga pela Fundação Nacional da Ciência (NSF, na sigla em inglês).
Esses e outros exemplos estão no livro “O Estado Empreendedor”, da economista Mariana Mazzucato. O livro foi lançado no ano passado e destroça a ideia de que a iniciativa privada seria o grande responsável por investigações que moldam o mundo atual e futuro e o Estado um mero parasita dos agentes privados.
Em entrevista concedida ao programa Milênio (do canal Globo News) no ano de 2013, Mazzucato lembra que, nos EUA, três a cada quatro medicamentos com novas entidades moleculares foram criados graças ao recurso de dinheiro público nas investigações (por meio dos Institutos Nacionais de Saúde; NIH, na sigla em inglês).
http://www.conjur.com.br/2013-nov-01/ideias-milenio-mariana-mazzucato-economista-italo-americana
Remédios com novas entidades moleculares são os mais inovadores e revolucionários (ou seja: aqueles que tratam das doenças mais complexas). E o custo para o desenvolvimento desse tipo de fármaco é muito alto.
O curioso, diz a economista na entrevista concedida ao Milênio, é que o lucro resultante dessas inovações fica, na maioria dos casos, somente nas mãos das empresas privadas.
Poderíamos resumir dessa forma: o poder público financia investigações (dividindo ou, muitas vezes, pagando integralmente o custo desses estudos) e o principal beneficiário é o setor privado.
Nenhuma novidade: socializa-se o risco da pesquisa (que pode, ao final de muitos anos de trabalho, não gerar nenhum benefício) e privatiza-se o lucro (quando a investigação é bem sucedida, é claro).
Na mesma entrevista, Mariana Mazzucato faz algumas sugestões para que o Estado recupere, em parte, o dinheiro investido em investigações que tenham sucesso. A economista cita o caso da Finlândia.
A Sitra, um fundo público de inovação, amparou a Nokia nas suas pesquisas na área das telecomunicações. Depois, ficou com parte do lucro da empresa para investir em diferentes estudos. Outra ideia sugerida pela economista é que o governo seja o dono das patentes dessas pesquisas e defina a maneira como se dará o seu uso.
No Brasil, a situação é parecida. A maioria das empresas que faz pesquisa de verdade, com raríssimas exceções, é (Petrobras) ou eram estatais (Embraer); ou conseguem financiamento para os seus estudos através de dinheiro público.
Um caso recente é o da Polaris. Empresa de São José dos Campos, no interior de São Paulo, que desenvolveu uma microturbina aeronáutica graças aos recursos do Finep (um fundo de pesquisa ligado ao governo federal).
http://exame.abril.com.br/tecnologia/noticias/brasileiros-criam-microturbina-para-misseis
De acordo com Luis Klein, um dos diretores da Polaris, apenas cinco empresas fabricam turbinas aeronáuticas em todo o mundo. O modelo em menor escala desenvolvido pela empresa brasileira é ainda mais raro: somente uma empresa, a francesa Turbomeca, hoje dominaria essa tecnologia.
No link a seguir, pra quem tiver interesse, entrevista concedida por Klein ao repórter Marcelo Cabral. Ela foi publicada em dezembro de 2013 no site da revista Época Negócios.
A iniciativa privada inova e pesquisa? Claro que sim. Sobretudo formas de manter a sua hegemonia.