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200414 chinaChina - O Diário - [Tony Andreani e Rémy Herrera] Uma importante reflexão sobre a complexa realidade económica, social e política da República Popular da China. Realidade que, se abordada com seriedade (ou seja, fundamentalmente segundo os critérios do marxismo), terá de excluir tanto preconceitos, estereótipos e esquematismos como os conselhos dos que gostariam de a ver dominada pelos oligopólios internacionais.


Resumo:

Este artigo propõe um exame crítico do livro A Via Chinesa de Michel Aglietta e Guo Bai. Depois de ter apresentado a interpretação do «capitalismo sui generis chinês» dada pelos autores, e a opinião que formámos da sua leitura, voltaremos a alguns dos temas abordados neste livro: a análise dos desequilíbrios da economia chinesa, as questões do abono de factores e de seus preços, as regras dos mercados obrigatório e de acções, as especificidades das empresas públicas, a concepção de serviços públicos, a planificação estratégica, o problema do poder e o «socialismo à chinesa»

Introdução

O livro de Michel Aglietta e Guo Bai: A Via Chinesa: capitalismo e império, publicado em 2012, desenvolve de modo muito argumentado, teses originais sobre a China — pelo consenso geral segundo o qual o sistema chinês seria uma combinação aberrante entre a ditadura «comunista» de um partido único e os derivados de um capitalismo desenfreado. Para estes autores haveria na China «um capitalismo sui generis, regido por um poder burocrático que, para salvaguardar os seus interesses e a sua legitimidade, teria sob controlo os interesses privados capitalistas e procuraria os meios de manter um consenso social. De acordo com eles seria muito mais apto do que o capitalismo ocidental não apenas para aumentar a sua «riqueza real», o que não se confunde com o crescimento do produto interno bruto — pois o desenvolvimento deve ser permanente, preservar os recursos naturais e preocupar-se com as gerações futuras — mas também melhorar o bem-estar social, o que depende de escolhas políticas. A este respeito, o sistema político chinês mostrar-se-ia superior às democracias liberais pela sua capacidade em planificar o futuro, a sua ética (de inspiração confucionista), a sua vontade de impulsionar as formas de democracia participativa compensando o seu autoritarismo. Seguindo a orientação geral do livro, sentimos que os pontos positivos se sobrelevam aos aspectos negativos. Assim, desde que sejam ultrapassados, por uma regulamentação, os desequilíbrios actuais, o livro fornece uma série de preconizações nesse sentido. Afinal, como iremos ver, é quase uma espécie de compromisso social-democrata que se propõe aos dirigentes chineses — embora este não funcione na maioria dos países ocidentais—, mas adaptando-o à época da mundialização e ao desafio ambiental. São estas as teses, num rápido resumo, que vos propomos submeter a um exame crítico.
 
Um capitalismo sui generis?»
 
A grelha de análise, exposta no início da obra, é a da teoria da regulação, de que Michel Aglietta é um dos chefes de fila e, talvez, o contribuinte mais prestigiado. Vejamos o essencial. Na medida em que os indivíduos são separados pela troca monetária e que o trabalho é separado de um capital único detentor dos meios de produção, podemos falar de regimes capitalistas. Esses últimos só diferiam com efeito pelas instituições (regras, «crenças» …) que regulam esta dupla separação — ligadas assim ao mercado e à propriedade privada. Esses capitalismos implicam também esses mercados particulares «de promessas futuras» que são o mercado do crédito e os mercados financeiros, indispensáveis a um bom subsídio dos capitais produtivos, e cujo objectivo é o de fazer dinheiro com dinheiro. Finalmente as relações entre os Estados são arbitradas pela finança, pois é ela que, a nível mundial, comanda a distribuição das várias categorias de capitais segundo modelos de regulação. Na base dessas premissas, o sistema chinês actual só pode ser concebido como uma forma particular de capitalismo, que se oporá ao «período socialista» da era maoísta  (e à do «socialismo real» dos países ex-comunistas). A notar aqui que, implicitamente, os autores não consideram as análises de outros teóricos regulacionistas que viam também nos sistemas desse período uma forma especial do capitalismo, onde o sistema era antes uma economia administrativa e de comando de uma economia estatal de mercado — teríamos mais tendência a falar da nossa parte, a partir de outras referências teóricas, de «capitalismo sem capitalistas». O problema é em nossa opinião que, para todos estes autores, o socialismo parece não ser mais (nem de mais) que isso. Vejamos, que nessa interpretação, não resta muito mais de marxismo — em que Michel Aglietta se inspirou até aos finais de 1970. O capitalismo é mais complexo para a análise marxista. Implica uma separação mais forte entre a propriedade dos meios de produção e o trabalho. Para Marx, os detentores do capital são tendencialmente colectores, e esses não exercem mais nenhum trabalho na produção. Isso realiza-se plenamente no capitalismo financeirisado contemporâneo: a gerência é aí delegada aos gestores, e o lucro da empresa toma a forma do puro valor accionário. Se é assim, parece-nos que numerosas pequenas empresas chinesas relevam mais de produção familiar ou artesanal que do modo de produção capitalista. Ou seja, a lógica do capitalismo é da maximização da taxa de lucro distribuível aos proprietários (forma particular da mais-valia segundo Marx). Ora nem é essa a observada nas empresas públicas chinesas, como testemunha a existência ou a falha dos dividendos lançados ao Estado, que se parecem mais com uma taxa sobre o capital. Além disso, a separação capital/trabalho pode ser, e é frequentemente, muito relativa no contexto chinês. Veremos como ela é limitada no caso das empresas públicas — o que impede de as considerar simplesmente como uma forma de capitalismo de Estado — e que ela o é ainda mais na economia «colectiva», onde os trabalhadores participam na propriedade do capital, ou têm a propriedade plena como nas cooperativas (por acções ou não) ou as comunas populares mantidas. Claro, nos últimos casos, ficam mais ou menos «separadas» da gestão, mas todo esse campo da economia não estatal está esquecido na obra, e poderia ser colocado na categoria de um «capitalismo sui generis”.

As análises de Michel Aglietta e Guo Bai pelo contrário afastam as dos principais responsáveis chineses, na maior parte das suas declarações públicas. Para lá do forte conteúdo ideológico e dos estereótipos que caracterizam muitos dos discursos oficiais — sejam chineses ou ocidentais — e misturam as terminologias, os dirigentes chineses evidentemente não negam que existe hoje na sua economia um importante sector capitalista privado, autóctone ou estrangeiro. Mas fazem um composto de uma «economia socialista de mercado», mista, onde «a predominância é dada ao sector público» e onde se deve «reforçar o poder global do Estado socialista». De acordo com muitos líderes chineses, o seu país estaria numa fase primária do socialismo». «etapa incontornável» para desenvolver as forças produtivas (e «que levaria uma centena de anos para alcançar o seu termo.») O fim histórico é a do socialismo desenvolvido —mas, sem os contornos definidos. Para os nossos autores, embora não o digam directamente estas declarações são apenas fachada, a montagem de uma forma especial de capitalismo, e não merecem ser levadas a sério. Para eles, o socialismo estaria morto e enterrado com o «período socialista» encerrado. Será assim também na China o fim da história?

Do nosso lado fazemos uma leitura diferente do «socialismo à chinesa» que seria, no geral, um socialismo de mercado, ou de uma grelha de análise diferente, que seria em geral, um socialismo de mercado, ou com mercado. Esse socialismo, em poucas palavras, assentaria nos sete pilares seguintes, os quais são muito estranhos ao capitalismo: 1) a persistência de uma planificação forte, que toma formas diversas e mobiliza instrumentos distintos segundo os sectores que lhe dizem respeito; 2) uma forma de democracia política que torna possíveis as escolhas colectivas que estão na base desta planificação; 3) serviços públicos que condicionam a cidadania política, social e económica e que como tais, estão fora de mercado ou de difícil mercado; 4) formas de propriedade diversificadas e adequadas à socialização de forças produtivas, como as empresas públicas, durante um período de transição longo, na condição de diferir da firma capitalista sob vários aspectos, principalmente o da participação dos trabalhadores na gestão, ou outras formas que vão da pequena propriedade privada individual aos vários tipos de propriedade socializada, numa economia em que a propriedade da terra e dos seus recursos naturais fica no domínio público — a saber: a propriedade capitalista é mantida durante a transição, mesmo encorajada, para dinamizar a actividade e incitar as outras formas de propriedade a comprovar a eficácia; 5) a orientação geral consiste em aumentar os lucros do trabalho em relação a outras fontes de lucro, e a promover a justiça social numa perspectiva igualitária; 6) a preservação da natureza, considerada como indissociável — e não antagónica — do progresso social, é um dos objectivos centrais do desenvolvimento, a fim de maximizar a riqueza efectiva; e 7) as relações económicas entre Estados assentam num princípio lucro-lucro e as relações políticas na procura da paz e de relações equilibradas entre as nações e os povos. Veremos assim, confrontando o «socialismo à chinesa» nesta grelha de leitura, que, apesar de muitas críticas, não está assim tão afastado — embora possamos aí distinguir duas linhas que se opõem: uma que é uma via social-democrata renovada do tipo da proposta por Michel Aglietta e Guo Bai, e outra, próxima da via socialista. Voltemos agora à análise dos nossos autores.
 
«Mau abono de factores» ou torção voluntarista dos seus preços?
 
Michel Aglietta e Guo Bai partem de uma constante dificilmente contestada: há desequilíbrios profundos na economia chinesa. A parte consagrada ao investimento no rendimento nacional, em vez de diminuir à medida que se realiza a acumulação necessária à descolagem da economia, continua a aumentar, à custa do consumo, mesmo se o nível de vida melhorou.

Assim, o investimento nos serviços (nas casas ou nas empresas) progride menos do que na indústria. O imobiliário tem tendência a aumentar, exigindo restrições de crédito. A parte de remunerações das casas no rendimento nacional não para de baixar. A taxa de poupança torna-se excessiva, devido essencialmente a uma insuficiência da cobertura social que leva as casas a aumentar a poupança por precaução. Além disso, os recursos naturais não são suficientemente taxados para evitar as derrapagens e os ataques ao ambiente, e permitir uma transição energética. O sistema económico chinês seria demasiado dependente das exportações, não suficientemente centrado no mercado interno. Daí resulta um desequilíbrio da balança de pagamentos, que se traduz por uma acumulação crescente de reservas de troca, colocadas no exterior (com os riscos daí inerentes). Os autores pensam que o governo está consciente desses desequilíbrios e que tenta remediá-los, mas sem grande êxito; e eles propõem as suas soluções — a que voltaremos depois. Veremos que, se é claro que um dos traços essenciais da expansão da economia chinesa é o dinamismo das suas exportações de mercadorias desde os decénios de 1990 e sobretudo 2000 (mal inflectida pela crise global de 2008-2009) seria de concluir que as exportações constituem o único motor de crescimento do país. A estratégia de desenvolvimento aplicada pelos dirigentes chineses apoia-se num modelo autocentrado e coerente. O impulso da procura interna, estimulado pelo consumo e mantida pelas verbas do capital do Estado, guia os planos de investimentos para o optimismo, e o aumento dos salários reais industriais é acompanhado por fortes lucros de produtividade do trabalho, sem deterioração da competitividade do país.

Os autores consideram que a maior parte dos desequilíbrios já referidos vêm de «uma grave distorção dos preços de factores», e que seria necessário desenvolver os mercados libertando-os dos constrangimentos administrativos para permitir um «melhor abono desses recursos». Em primeiro lugar, o preço do capital em dinheiro mantém-se artificialmente baixo para uma «repressão» das taxas de crédito — resultando de uma administração destes últimos, mesmo se esta tiver sido flexibilizada. A poupança doméstica é fracamente remunerada, o que permite aos estabelecimentos bancários, ao mesmo tempo que fazem lucros elevados, emprestar às empresas a tão bom preço que elas possam continuar a investir. Esse preço baixo do dinheiro favorece assim os investimentos em grande escala, ou seja às empresas públicas de alto nível, em detrimento das pequenas e médias empresas que se encontram maioritariamente no sector privado. Sempre segundo os autores, seria necessário liberalizar as taxas de juro para desencorajar investimentos demasiado intensivos em capital susceptíveis de travar o progresso tecnológico e a capacidade de criação de valor acrescentado. Correlativamente, esta liberalização das taxas de crédito permitiria uma melhor colocação na concorrência de bancos. Tratando-se do mercado de trabalho, conviria segundo eles não o entravar pela dualidade artificial resultante de diferenças introduzidas entre trabalhadores das cidades, que dispõem de contratos muito protectores (principalmente nas empresas públicas), e trabalhadores migrantes, muito frequentemente privados de direitos e submetidos à boa vontade dos seus patrões, o que atrasaria a progressão do conjunto dos salários. Quanto aos preços da terra — que continua propriedade do Estado nas cidades e propriedade colectiva em zona rural —, Michel Aglietta e Guo Bai consideram que seria necessário também fazer o mercado, de modo que os camponeses, em vez de se verem mal indemnizados pelos governos locais para a cessão de sua parcela, possam negociá-la a «preço justo», ou seja ao preço de uma terra não agrícola, mas construível. Isso evitaria que um imobiliário industrial demasiado barato estimule o sobre investimento forçado e receitas fiscais suplementares.

A concepção da distorção dos preços factoriais tal como é aqui avançada pelos autores assenta ainda muito (demasiado) na teoria económica normal da combinação dos «factores de produção» (capital, trabalho, terra…) e do seu abono óptimo» pelos mercados. Sejamos justos: não é o caso, pois os nossos autores sabem bem que o mercado de trabalho, por exemplo, não é um mercado como os outros, e que depende também das relações de forças-empregadores-empregados, de regras negociadas e de leis… É de resto a razão por que defendem melhoramentos da sua regulação (passando pelos sindicatos activos, inspecção do trabalho, leis melhor aplicadas…), mas desejam simultaneamente que esse mercado seja mais aberto e menos segmentado. Notam que certos tipos de «capital intangível» (sem dúvida o que chamam capital «institucional» e «social») não tenha um mercado propriamente dito, e que para outras categorias ainda, os mercados funcionam mal, o que os leva a defender a ideia que, na mistura entre liberalização e regulação, é esta última que deve ser muito mais forte. Esta regulação deveria mesmo tomar a forma de uma «planificação estratégica», agindo sobre a formação dos preços — e voltaremos a isso. Mas o paradigma a que se referem Michel Aglietta e Guo Bai, como muitos autores neo-institucionalistas da órbita aproximada da ortodoxia neoclássica, torna-se ainda e sempre o paradigma comercial.

Nós mantemos, quanto a nós, que o que faz uma das especificidades e forças da economia chinesa é a torção voluntária dos preços de factores. O governo chinês teve razão em não deixar o mercado fixar «livremente» o preço do dinheiro, de modo a ficar senhor da oferta de crédito, tão difícil de controlar, e tão vital para a economia. Esta oferta pode ser muito fraca, quando os bancos não emprestam o suficiente ou porque eles antecipam uma diminuição de actividade e riscos excessivos, ou muito forte, quando vivamente solicitados, se banham num optimismo enganador (recordemos o excesso de créditos que levou a economia norte-americana à catástrofe). Embora saibamos que a política monetária do banco central produz efeitos que permanecem incertos sobre o comportamento dos estabelecimentos bancários e financeiros. Segundo Michel Aglietta e Guo Bai é que uma multidão de actores privados estaria mais apta a avaliar os riscos que as autoridades estatais. Pensamos pelo contrário que estes têm uma visão mais ampla (macroscópica) dos riscos, e principalmente que são as únicas a poder guiar a economia no seu conjunto, em função de um plano. Claro, que há taxas de juros administrados que não permitem ajustes leves e rápidos entre a oferta de poupança doméstica e as necessidades de financiamento da economia. Conviria em nossa opinião preferir um regime de juros «semi-administrados», com plataformas para a remuneração de poupança e tectos para oferta de créditos — fazendo evoluir este regime, vendo-se essas taxas modificadas em função das necessidades de realização do plano. Assim, o instrumento de reservas obrigatórias parecia um meio eficaz para fazer variar a oferta de crédito dos bancos — e não é por acaso que tem sido tão utilizado pelo Banco Popular da China. No debate actualmente em curso sobre a liberalização de taxas de juro, inclinamo-nos para a permanência de um certo dirigismo. Dito isto, reconhecemos que o nível de remuneração da poupança é hoje muito baixo na China, o que corresponde a uma subvenção implícita estimulando o super-investimento, principalmente o que é intensivo em capital.

Tratando-se de salários, temos a certeza que para trabalhadores migrantes, «a indigência dos salários e a ausência de protecção social reduziram a parte dos salários no rendimento nacional, impediram o rendimento doméstico de subir como seria possível e comprimiram as despesas de consumo» (p. 291), mas também que as leis do trabalho, se elas foram reforçadas, ainda estão mal aplicadas, e que o fraco custo do capital deu aos empregadores um poder excessivo sobre os salários. Os autores pedem uma regulação mais forte e eficaz, passando em particular sobre a instauração de convenções colectivas e uma melhor protecção social, ou seja para a criação de dispositivos de níveis comparáveis aos do Estado social das economias ocidentais — embora hoje em vias de desmantelamento. O governo chinês parece estar certo nesse sentido, mas na nossa opinião, isso não chega: neste mercado assim regulado, as desigualdades sociais tornam-se muito fortes; e só o imposto poderá tentar aplainá-los. Segundo os nossos autores duas alavancas poderiam ampliar a cartada em relação a esse compromisso social-democrata, o poder burocrático poderia dispor desses meios: a participação dos trabalhadores na gestão (poderiam pronunciar-se sobre a política salarial da empresa) e o exemplo que poderiam mostrar no assunto certas empresas públicas (num papel de «locomotiva social», e na China existem formas originais de poder operário nessas empresas). Pois aí, o governo tem o poder de instaurar novas regras na hierarquia dos salários e nas negociações salariais. E podemos já constatar que hoje as leis do trabalho são em geral melhor respeitadas nessas empresas que no sector privado. Essa regulação forte poderá pesar nas condições salariais em aplicação nas outras empresas, porque ela terá possibilidades de criar uma mudança de mão-de-obra para o sector público — como já vimos agora algumas comunas populares conseguir atrair trabalhadores migrantes por numerosas vantagens sociais que lhes obtêm, mesmo com salários inferiores. Eis um argumento que milita poderosamente a favor de um reforço do sector público — um reforço que, evidentemente, os nossos autores não desejam.
 
Desenvolver os mercados de obrigações e de acções… ou controlá-los?
 
Lamentando que o sistema financeiro chinês continue essencialmente apoiado no crédito, Michel Aglietta e Guo Bai defendem o mercado de obrigações, a que atribuem virtudes que o mercado de crédito não possuiria: melhor avaliação de riscos pela «comunidade de investidores» do que dos bancos; perspectiva a longo prazo, já que estes últimos preferiam os títulos a curto prazo; capacidade de contrapor as restrições de crédito quando os estabelecimentos estão em dificuldades: bases, que permitam ao banco central passar de um controle directo do crédito a uma política de juros directores; ou condição que representaria o mercado para suprimir a termo o controle de capitais, ligar o sistema interno aos mercados globais e tornar mais flexível o mercado de trocas a fim de se dotar de uma moeda totalmente conversível e internacionalizada. O que parece ser apenas uma reforma particular, destinada a alargar os financiamentos de actores públicos e de empresas, poria em causa o conjunto do sistema financeiro chinês de modo a alinhar sobre padrões ocidentais e de o mundializar. Diversas medidas preconizadas inscrevem-se nessa lógica, como uma larga abertura do mercado obrigatório aos oligopólios estrangeiros — recordemos aqui, por agora, esta está limitada por quotas acessíveis aos investidores «qualificados». Só podemos ficar admirados perante esta fé nas virtudes da finança, já que os seus defeitos são provados — e os autores os conhecem. Na realidade, nenhum dos argumentos avançados é de convencer. Os actores do mercado obrigatório não são mais competentes que os bancos. Fiam-se frequentemente nas avaliações de agências de notação tão indirectas que muitos dos investidores institucionais decidiram só depender de si próprios — como os estabelecimentos bancários que fazem o crédito. São, na sua «comunidade» mais próximos dos emissores de obrigações que os bancos? Claro que não, se forem bem geridos. São (trata-se de fundos de pensão, por exemplo) mais preocupados a longo prazo? Vemos alguns bancos conceder créditos a longo prazo em condições satisfatórias. Se o sistema bancário conhece derivas, é principalmente porque se adulterou através de um modelo de «banco universal». Está longe de ser evidente que a regulação de financiamentos pela única via oblíqua de juros directores é mais eficaz que a que utiliza meios directos, tal como o juro de reservas obrigatórias. O argumento mais convincente a favor do mercado obrigatório é que permite atingir um maior número de investimentos que os bancos. Mas isto diz respeito principalmente aos Estados ou colectividades locais e empresas de grande porte. É portanto lógico que o governo pense em desenvolver esse mercado, quase ainda inteiramente restrito a obrigações públicas. Coloca-se porém a questão da regulação do mercado secundário, quando sabemos os riscos de erros de apreciação e o custo associado à proliferação de produtos derivados sobre taxas de juro. Os autores aprovam as precauções tomadas, a título experimental, pelas autoridades, quotas de emissão à notação de títulos pela Comunidade de Reforma. Será suficiente? Quanto à abertura aos investimentos estrangeiros, tem o interesse de favorecer a utilização de outras moedas para além do dólar, mas pensamos que liberalizar o mercado de dinheiro abandoná-lo-ia à irracionalidade da especulação.

Tratando-se do mercado de acções, Michel Aglietta e Guo Bai não propõem explicitamente desenvolvê-lo; e queremos acreditar que estarão atentos aos problemas deste «mercado de promessas» de lucros. Mas a recomendação que formulam de alargamento da esfera provada implica logicamente um tal impulso do mercado de acções. Achamos pelo contrário que este último pode e deve ser limitado. Tem a sua necessidade para o sector privado, mas, achamos, que as empresas públicas deveriam ter cada vez menos necessidade, à medida que conseguissem reforçar as suas capacidades de autofinanciamento e que o Estado disponha de um fundo alimentado por elas em crescendo para permitir realizar aumentos de capital. Pensamos igualmente que o mercado de revenda deve estar muito bem enquadrado, e a sua expansão travada por disposições legais ou fiscais. Coloca-se de novo a questão delicada do grau de abertura do mercado de acções aos investimentos internacionais. Notemos que esta abertura é hoje muito fraca, restrita aos investidores «qualificados» e submetida a um sistema de quotas. Tem actualmente de alargar-se para dar força às bolsas chinesas, mas os poderes públicos chineses desconfiam manifestamente de movimentos especulativos. Têm razão. E têm proibido até agora que empresas estrangeiras emitam acções em yuans sobre o mercado interno. Soltar esses entraves, e avançar assim para uma conversão plena do yuan — e as suas supostas vantagens —, tornar-se-ia em nossa opinião na submissão às grandes manobras dos mais poderosos oligopólios financeiros internacionais, especificamente os Estados Unidos.

Não acreditamos na ideia de alguma «eficiência» dos mercados financeiros, que mergulha as suas raízes no corpo dominante (neoclássico) em ciências económicas e garante que desempenham um papel de informações, de avaliação e de abono «óptimo». É em nome desses argumentos que foi conduzida a desregularização dos sistemas de financiamento que levou ao capitalismo financeiro actualmente dominado pelos oligopólios financeiros. Para além de ser contestável na teoria, essa tese é rejeitada pela história dos últimos decénios que mostra que estes mercados são incapazes de fornecer preços coerentes — e menos ainda «justos» — para os activos financeiros de todo o género, incluindo essencialmente as acções. É aqui necessário lembrar os seus erros e o impacto da explosão das suas «bulas» sobre as economias do sistema mundial? Que eficiência constatar aquando da desvalorização de acções de uma firma que realiza lucros? Que racionalidade observar quando a mesma empresa despede massivamente enquanto continua a distribuir dividendos exorbitantes aos seus accionistas? Não partilhamos esta confiança expressa nas virtudes de mercados financeiros que conhecem entusiasmos miméticos, caem na profecia auto-realizadora, ignoram as forças de aviso, dão lugar a práticas especulativas afastando da sua principal função instrumentos financeiros de cobertura, e engendrando finalmente autenticas catástrofes económicas. Entendemos que o crédito e o autofinanciamento possam não bastar, mas pensamos que o recurso ao mercado de acções — como o apelo aos investidores estrangeiros — deveria também ficar o mais possível limitado — e principalmente não deveria levar a um alinhamento sobre a prática do valor de acções, calculado como o que deve exceder o premio de risco reclamado pelos títulos financeiros. Pois parece-nos que a poupança chinesa é bastante abundante para ser convocada, através de investidores institucionais nacionais a que se podem impor limites de rentabilidade, e que não seriam forçosamente os mesmos exigidos pelo Estado accionário.
 
«Normalizar» as empresas públicas ou preservar as suas especificidades?

 
Michel Aglietta e Guo Bai acham anormal que as empresas publicas sejam privilegiadas em relação às firmas privadas, já que durante muito tempo não colocaram dividendos no Estado, e que, mesmo agora, só pouco colocam. Como beneficiam também de vantagens em empréstimos a juro baixo, não entram no jogo de uma concorrência leal com o sector privado. Mais ainda, são quase incitadas a realizar investimentos excessivamente intensos em capital, o que segundo elas, iria em detrimento do consumo doméstico. Assim os autores propõem juntá-los à norma comum, a fim de lançaram dividendos importantes ao orçamento de Estado, que poderia assim utilizá-las para melhorar a protecção social. Assim, ignoram completamente o que na China é uma das especificidades das empresas públicas, justamente não enriquecer os seus proprietários. Que descontem impostos pagamentos fixos para utilização do capital público, nada mais normal; mas se fossem submetidos a um regime de rentabilidade financeira, já não apresentariam qualquer interesse em relação ao estatuto de firmas privadas. Pensamos pelo contrário que a justificação destas empresas públicas é triplo: «elas podem distribuir aos seus assalariados; o governo tem toda a liberdade para aí definir o modo de gestão (por exemplo, a hierarquia salarial); e pode mais facilmente colocar ao serviço dos seus projectos, sem no entanto lhes retirar toda a autonomia nem os submeter a planos demasiado imperativos. Parecia portanto normal que afecte indirectamente as ferramentas à disposição do organismo de gestão de participações de Estado, os dividendos que lhe reclamam a um fundo especial de suporte do crescimento de empresas públicas. Insere-se assim melhor numa via socialista que numa visão social-democrata, onde o sector público vem apenas em apoio do sector privado, ou serve simplesmente de peneira para limpar as perdas antes de um retorno à propriedade privada.

Uma explicação da força das empresas públicas chinesas é que este sector não é gerido como as firmas privadas ocidentais, cotadas na Bolsa e orientadas para a única maximização do valor de acções com distribuição de dividendos, valorização de acções e retorno sobre investimento elevado, porque elas pressionam cadeias de subtratamento (locais ou deslocalizadas). Se as empresas públicas chinesas se comportassem de modo tão rapace, fá-lo-iam em detrimento do tecido doméstico local, o que manifestamente não é o caso. Estaríamos a lidar com uma forma selvagem de «capitalismo de Estado» (como muitas vezes se pretende no Ocidente), e não se vê em que seria superior ao capitalismo privado. Mas, justamente, parece que, se as empresas públicas são (se tornam) rentáveis, a bússola que as guia não é o enriquecimento dos accionistas, mas antes o investimento produtivo e o serviço prestado aos seus clientes. No fundo, pouco importa que elas realizem menos lucros que as suas concorrentes ocidentais, se estes lucros servem em parte para estimular a economia no seu conjunto. Estas empresas públicas lançam impostos, mas só distribuem poucos dividendos ao seu accionista principal, o Estado (cerca de 10%) para as caixas do Tesouro. Eis a razão pela qual, em nossa opinião, a entrega de dividendos ao Estado inspirou práticas capitalistas, e não é uma boa fórmula. Seria melhor que o Estado instaure uma taxa para o capital, uma espécie de aluguer para a colocação dos seus bens. As empresas que funcionassem de modo rentável poderiam conservar uma maior parte dos seus benefícios para fins de investimento e de I&D — sabendo que o imposto sobre as sociedades é já um adiantamento proporcional aos seus lucros. É verdade que hoje os especialistas da banca mundial e outras organizações internacionais preconizam também aumentar dividendos lançados; e a Comissão de regulação da Bolsa parece mesmo por vezes abundar nesse sentido. Isso parece-nos ser uma má política pois as empresas públicas chinesas ver-se-iam então privadas dos seus maiores trunfos e mesmo quando controladas pelo Estado, teriam tendência, como são levadas a fazer as grandes firmas capitalistas ocidentais, a distribuir cada vez mais para conseguir favores de accionistas privados — mais frequentemente dependentes de estratégias de portefólio dos oligopólios financeiros mundialmente dominantes.

As empresas públicas chinesas não devem, na nossa opinião, ser geridas como o são as empresas privadas. O socialismo de mercado «à chinesa» assenta na manutenção de um sector público poderoso, que desempenha um papel estratégico na economia. Tudo leva a pensar que está aí um dos «segredos» do êxito da economia chinesa em termos de crescimento, não desagradando aos liberais que pregam a propriedade privada e a maximização do lucro individual. Isso está sem dúvida ligado ao tamanho das empresas públicas, verdadeiros mastodontes, nos sectores da energia, materiais de base, produtos semiacabados, de construção ou de transporte marítimo — as economias de escala reduzem fortemente o custo a todo os níveis (compra, produção, venda). São estas empresas que fornecem a uma miríade de pequenas e médias unidades de produção insumos a bom preço permitindo-lhes, entre outros factores, condições de fabricação que fazem o seu sucesso no mercado mundial. Uma «superioridade» das empresas públicas chinesas é a participação (limitada, mas real) do pessoal na gestão das unidades, via seus representantes no Conselho de Inspecção e no Congressos dos operários. O impulso de uma lógica accionista só poderia ir ao encontro de uma tal participação; participação que só poderia em nossa opinião reforçar. O grupo de accionistas assalariados, utilizado em certas empresas ocidentais, fica sempre largamente minoritário, não tem qualquer peso na gestão e coloca os trabalhadores numa contradição com os seus interesses de accionistas e de salários. Outra «superioridade» das empresas públicas chinesas, é que elas podem facilmente responder aos objectivos da planificação. Claro que não se trata de lhes impor taxas, para fins políticos, que poriam em causa a sua autonomia e pesariam nos seus resultados. O plano poderia igualmente orientar a actividade das empresas privadas por meios indirectos (fiscalidade, subvenções…). Mas, controlando a nomeação e a gestão de dirigentes, os poderes públicos — o Estado em sentido lato, governo central e governos locais, de que dependem muitas empresas — tem os meios de assegurar-se que actuem como deve ser, mesmo nos sectores de compra e venda. A especificidade das empresas públicas é anda mais forte quando fornecem bens sociais no quadro dos serviços públicos. Aceitamos que beneficiem de algumas vantagens inerentes em caso de crédito, mas apenas no sentido em que falseiam a concorrência que podem manter com as firmas privadas e unicamente no caso em que produzam «produtos normais.»
 
Abrir os serviços públicos ou tomar a sério o seu conceito alargado?

 
Na China, os serviços sociais (educação, saúde, reformas, abonos diversos) estão na totalidade ou na sua imensa maioria nas mãos do Estado — i.e. do governo central ou, mais frequentemente, governos locais. Michel Agllietta e Guo Bai lamentam-no, devido à sua ineficácia e rigidez (p. 180). Não propõem privatizá-los, mas terminar com esse monopólio: «O Estado deve assim cessar de impedir os actores privados de entrar no mercado da protecção social e reorientar as funções governamentais. Estas passarão da mediação da gestão quotidiana dos fornecedores sociais à regulação (…) dos mercados que devem compreender agentes públicos e privados» (p.381). Segundo eles, seria por consequência necessário pender para um sistema misto, com concorrência de tipo mercador. Pensamos que uma tal evolução não é desejável. Os serviços públicos não fornecem bens como os outros, mas bens sociais por oposição aos mercantilizados pelo sector privado; o que significa bens necessários ao exercício da cidadania, que dêem aos indivíduos a capacidade de ser sujeitos políticos (educados, informados), sociais (de boa saúde, dispondo de meios colectivos de transporte…) e económicos (com formação, meios de acesso ao emprego…). Isso nada tem a ver com a definição económica normal de «bens públicos» utilizada pelos nossos autores, «não rivais e não exclusivos» (p. 225), cujas características técnicas tornariam os bens dificilmente mercantilizáveis. A definição à qual recorrem apoia-se na realidade sobre a dos teóricos neoclássicos dominantes. A nossa interpretação é outra.
É em nossa opinião porque os serviços públicos são bens sociais que não podem ser comercializados (como no caso da segurança, da justiça, ou mesmo da educação), ou inteiramente mercantilizados (como para estes bens de «civilização» que são a electricidade, o telefone ou a água, cuja utilização é comum, mas fica à discrição do indivíduo). Como tais relevam-se da responsabilidade do Estado. Tomemos o exemplo da educação. Deve ser fornecida gratuitamente, no essencial, a todos os cidadãos de modo igual (como em França, um dos fundamentos da República). Podemos admitir que — por razões de liberdade pessoal, confessional ou outras — exista uma educação privada, mas esta deve dispensar o ensino obrigatório, com profissionais válidos e pagos pelo Estado; e para todo o resto terá de ser paga. Pensemos no caso da saúde. Podem existir clínicas privadas, onde a maior parte dos cuidados são reembolsados pela segurança social, e onde as outras prestações serão pagas. Mas, em todos os casos, não é admissível, se queremos que os indivíduos sejam também cidadãos, que tais bens sociais sejam submetidos a um regime concorrencial — concorrência que será de resto falseada (porque sabemos, por exemplo, que as clínicas privadas tendem a posicionar-se nos segmentos mais rentáveis e deixam aos hospitais públicos as tarefas ingratas mais indispensáveis). Vemos aqui a diferença que separa as orientações social-democratas (ou antes «social-liberal») e socialista.

Mas o perímetro dos serviços públicos não fica por aí. A concepção chinesa aumenta-o, e bem em nossa opinião, ao que podemos chamar «bens estratégicos», confia-a a entidades públicas e mantêm-nas de todas as maneiras: acesso privilegiado ao crédito, intervenções de «bancos políticos». O sector privado não está excluído, e poderá ver-se como complemento ou servir de estimulante, mas os poderes públicos chineses não hesitam em favorecer e sector público no exercício da concorrência — permitindo de resto uma verdadeira concorrência entre as próprias empresas públicas. O poder destes serviços públicos «estratégicos» é hoje uma das maiores forças da economia chinesa. Ouve-se dizer frequentemente que o sucesso das exportações chinesas será essencialmente devido ao custo muito baixo da mão-de-obra. É um grande erro: os custos de mão-de-obra não representam mais que uma fraca proporção dos preços de venda (da ordem de 5 a 10 % em média); o que não chegaria — mesmo se os salários chineses tivessem tendência a crescer mais depressa que os das economias concorrentes do Sul — a compensar os custos de transporte para os países importadores. O sucesso da China na exportação é devido numa certa medida aos preços muito mais baixos dos insumos (energia, materiais de base…), e esse nível de cargas menos pesadas para os produtores decorre precisamente de que estes são fornecidos pelas empresas públicas a preços fixos (por exemplo, os carburantes) ou fortemente controlados pelo Estado. Sem dúvida é necessário levar em conta o facto de que os salários chineses nessas empresas são muito mais baixos do que no Ocidente, mas sem deixar de dizer que são muito mais elevados que os famosos «salários de miséria» das fábricas-prisões em que se produzem inumeráveis mercadorias exportáveis.

O que está em jogo nesta concepção de serviços públicos estratégicos, é a soberania nacional. Eis um termo sistematicamente caluniado pelos partidários da mundialização, que, hipocritamente, não se importam porém de colocar os Estados nacionais ao serviço dos seus interesses. Eis uma China constantemente acusada de nacionalismo, embora a sua ambição seja de preservar a sua civilização e as aquisições da sua revolução. Vamos mais longe. Consideramos que as nações, quando não têm intenções imperialistas, constituem uma riqueza da humanidade, uma espécie de sociodiversidade a salvar da uniformização de modos de vida, consumo e de cultura. Pela nossa parte, não vemos qualquer vaidade nas declarações repetidas do «socialismo à chinesa»? ou a «civilização espiritual chinesa» mas o cuidado de não se fundir no magma ambiente dos valores e modos ocidentais. O que não exclui a vontade de partilhar valores universais, tal como possam ser expressos na Declaração Universal dos Direitos do Homem das Nações Unidas. Não temos no Ocidente exemplos de degradação manifesta de serviços públicos consecutivamente após a sua privatização mesmo parcial? Não sabemos que algumas firmas do sector privado descobrem meios de contornar as suas missões de serviço público, onde fazem tudo para falsear a concorrência nos mercados para vantagem sua (por «optimização fiscal», publicidade inútil ou enganadora…)? Desejamos que as autoridades chinesas saibam resistir às sereias do liberalismo nessa matéria. Será o género do «socialismo à chinesa». Para além das quedas positivas associadas à implantação de mecanismos de mercado, principalmente em termos de aceleração do crescimento económico — que legitima a estratégia actualmente adoptada — pensamos que a escolha da via capitalista pelo governo chinês será o meio mais seguro de garantir o fracasso da sua estratégia de desenvolvimento.
 
Um poder «burocrático favorável» ou engajado na via socialista?
 
Um traço importante no sistema político e económico chinês é uma planificação poderosa que, se mudou nos seus objectivos e seus instrumentos no decurso dos últimos decénios, continua a ser aplicada. Basta ler os discursos do Primeiro-ministro e do ministro do Plano todos os anos perante a Assembleia nacional popular para ficarmos convencidos: podemos ver aí em que medida objectivos precisos e enumerados se inscreveram no plano quinquenal e se realizaram — e é frequentemente o caso — ou conhecer aqueles a atingir no ano vindouro. Michel Aghlietta e Guo Bai ficaram também manifestamente impressionados por essa planificação, que se projecta para o futuro num mundo embora marcado por uma incerteza crescente, e o livro deles é cheio de referências a uma «planificação estratégica». Mas eles percebem para lá das políticas públicas susceptíveis de guiar os agentes, principalmente em assuntos sociais, urbanização e ambientais. Mas os autores não defendem a ideia do «Estado estratega» à moda do Ocidente — expressão significando que o Estado se afasta mais da economia para a «regularizar». Os políticos públicos que lhes são necessários devem ser mais interventores, agindo sobre os preços de factores no sentido desejado, especialmente para «reequilibrar a riqueza para o capital intangível e o capital natural» (p. 237).

Assim, a planificação «estratégica» que mobiliza os autores aparece essencialmente como uma simples ferramenta governamental, à imagem de que se queria a «planificação incitativa» à francesa dos Trinta Gloriosos. Nós pensamos, quanto a nós, que a planificação tem outro significado. Deve ser o local onde se elabora e se decidem as escolhas colectivas, e deve ser o âmago da democracia. As escolhas colectivas são uma coisa diferente das «preferências colectivas a revelar»: são a expressão de uma vontade geral. A planificação é assim o espaço em que uma nação escolhe um destino colectivo, e o meio para um povo se tornar senhor desse devir comum. E isso, em todos os domínios da existência, por exemplo: um modo de vida mais ou menos individualista ou colectivo, um modo de consumir, maneiras de habitar e ocupar o espaço… Acontece que na China hoje é o Partido comunista que efectua essas escolhas para os cidadãos, em nome do povo — e isso originara mais discussões sobre esse regime político, que não nos tocam directamente, excepto para dizer que o princípio da consulta é cada vez mais colocado como uma necessidade fundamental. É essencialmente esse sentido forte da planificação que se revela nos discursos oficiais como nas práticas governamentais. E esta planificação forte, em meios modernizados e adaptados às exigências do tempo presente, é justamente um dos principais traços distintos de uma via socialista. Nada a ver com o «bom governo» de inspiração neoliberal, que é a inversão exacta do que se pode esperar de um «bom governo» que consiste apenas em fixar regras que operam em proveito de forças dominantes dos mercados, retirando ao Estado todo o poder. Ao invés, os instrumentos técnicos de uma tal planificação «estratégica» são diversos. Para Michel Aglietta e Guo Bai o mais importante é a fiscalidade. Sem dúvida uma ferramenta importante, mas longe de ser a única à disposição do Estado chinês. Lamentamos que não tenham feito menção a «juros» bonificados largamente utilizados na China. Também não se faz alusão à regulamentação de certos preços, nem ao papel desempenhado pelas autoridades públicas. Ora são também estas essencialmente que formam a eficácia da planificação chinesa.

Para esses autores, o poder político na China inscreve-se na velha tradição imperial. O poder imperial era diferente de uma monarquia absoluta, porque não havia direito divino e assentava numa espécie de «contrato social» com o povo (o soberano devia fornecer aos seus administrados certos serviços em troca da sua lealdade), oferecendo possibilidades de ascensão social através de um sistema de selecção — sem o qual perderia a sua legitimidade e podia ser destruído. Além disso, esse poder devia conformar-se a regras éticas (justiça, honestidade, respeito por valores familiares) e comportar-se segundo um código moral essencialmente inspirado no confucionismo. O mesmo acontece, segundo os autores com o Partido comunista. O seu poder será hierárquico (com o «centralismo democrático») mas não ditatorial (pois nele se pratica a colegialidade). Desequilibrando o aparelho de Estado, esse Partido não pode ser aceite pelo povo senão cuidar do bem-estar social e aumentar a riqueza real»; o que implicará que as categorias de capital sejam todas correctamente levadas em conta, incluindo o capital humano» ou o «capital natural». (caracterizado pela raridade de recursos, daí a exigência de um desenvolvimento «durável»). O bem-estar social suporia principalmente a procura da coesão social, a qual requer uma redução significativa das desigualdades, assim como uma participação maior da sociedade civil e a garantia de direitos sociais; condições que só são realizáveis se o poder estiver amadurecido por considerações éticas. É o resumo do que os autores encaram como objectivo da política e, a este respeito afirmam que o poder chinês estaria mais bem armado que algumas democracias liberais que, após intensas batalhas, fazem dominar uma maioria (curta) sobre uma minoria, como o triunfo de interesses privados em nome do interesse geral, só visa satisfazer indivíduos vivos sem se preocuparem com as gerações futuras, etc. Seria assim, porque só tem como força de legitimidade a realização desse objectivo de um desenvolvimento sustentável e do bem-estar social, e que pode ter uma visão a longo prazo, onde as democracias ocidentais se confrontam a curto prazo com insucessos eleitorais.

Esta analise, próxima, pelos conceitos que utiliza, dos trabalhos da Comissão Stiglitz ou das ideias de Amartya Sen, é sem dúvida bastante inovadora, mas podemos dizer que ela procura orientar a «via chinesa» no sentido do que chamamos um «compromisso social-democrata renovado», que desejaria submeter os detentores do capital físico, mas também mais publico que privado, a um Estado que quer a valorização de outras formas de capital (humano, social, institucional, natural…), frequentemente negligenciados pelo «capitalismo ordinário». Encontraríamos também, segundo os autores, o modo como antes o império chinês dirigia os interesses privados. Ora, embora possa encontrar pontos de apoio na política chinesa actual, esta análise não nos convence. Temos a impressão de que a interpretação do poder político chinês sugerido pelos autores tende a projectar na realidade presente desse país algo como uma ficção do estado social-democrata. Ficção, pois ela reencontra a visão (que era também a de Keynes) de uma responsabilidade excessiva dada ao Estado — o Estado de uma das variantes do capitalismo. Essa mesma fé que levava Keynes a acreditar na possibilidade de ver intervenções públicas exógenas na lógica capitalista da maximização do lucro faria desaparecer os «aspectos chocantes do capitalismo» (desemprego em massa e desigualdades de rendimento). Essa análise subestima, na nossa opinião, o actual poder dos oligopólios financeiros mundialmente dominantes e gera ilusões políticas quanto à suposta capacidade de um Estado «reformista» de orientação «simplesmente social-democrata». Nós estamos longe de rejeitar a liberalização financeira globalizada expressa pelo governo chinês e, com ela, e numerosos países do Sul — não sem contradição, é certo. Como manter uma politica alternativa, simultaneamente social e democrática, quando ficamos num tal quadro «reformista»? Não nos condenaremos a impotência perante o capital financeiro mundializado?

Tratar a procura do «óptimo» como um bom subsídio de diversas categorias de capital leva a considerar que são todas do mesmo modo necessárias à produção de riqueza, recursos «tangíveis», «humanas» (para utilizar a linguagem da gestão) ou naturais. Trataríamos aqui de um emprego teórico e não metafórico do termo de capital. Enquanto que na tradição marxista, as duas únicas fontes de riqueza (em valores de uso) são o trabalho e a terra — sendo só o trabalho criador de valor. Ora o caso é que o Partido comunista chinês reclama sempre explicitamente essa tradição. É certo que os seus dirigentes chegam a utilizar o termo «factores de produção» (trabalho, capital, técnica…) mas podemos considerar que esses elementos são para eles, como para Marx, factores da força produtiva do trabalho. E o princípio fundamental da repartição do produto fica sendo a distribuição segundo o trabalho; os rendimentos tirados dos outros «factores» tão justificáveis quanto possível, vindo em dedução do valor produzido pelo trabalho. O que dizemos aqui pode parecer absurdo quando observamos a escala das remunerações na China e o número dos seus milionários; mas parece-nos que é essa a linha geral. É certo, mas com alguns problemas, que a sua aplicação foi «suspensa» de modo a acelerar o desenvolvimento, após anos de crescimento desacelerado pelo igualitarismo (dai a palavra de ordem «enriquecer antes dos outros»), para ter sido novamente retomada com a promoção de temas da justiça social e de igualdade. É por isso que a maioria dos altos dirigentes chineses se continua obstinadamente a considerar socialista.

Tratando-se de ética, os responsáveis do Partido comunista dão ênfase à «moral socialista» retirando daí as características: «rectidão», honra, «trabalho consciencioso», «solidariedade» — um apelo aos princípios abstractos que são a liberdade, igualdade, imparcialidade, a procura do bem… Podemos discutir estas virtudes morais: declaradas socialistas e não confucionistas. Mas ao mesmo tempo, elas soam bem com alguns dos traços da moral tradicional chinesa, e o Partido entende também «fazer brilhar as virtudes tradicionais». É nesse sentido que podemos falar da «moral chinesa». Tudo isto pode levar ao cepticismo, aos sarcasmos, quando se conhece o estado dos comportamentos na China actual: dinheiro, arrivismo, gosto do luxo, consumismo, corrupção (mesmo nos altos postos do Partido). Mas não devemos encarar este discurso moral com ligeireza; é o do Estado chinês, constantemente oposto a esta degradação de costumes (e exige-se aos membros do Partido ainda outras qualidades morais, e uma atitude exemplar…). Tudo isto para dizer, que se há uma certa continuidade com a tradição, de resto reivindicada, a «via chinesa» reclama-se explicitamente da modernidade dos ideais do socialismo, e não dos ouropéis de uma social-democracia retocada para moda, consistindo numa justiça social restrita a uma redistribuição limitada dos rendimentos, numa igualdade no sentido (rawlsiano) da desigualdade justa se é acompanhada de um melhoramento da sorte dos mais fracos, e numa democracia representativa de fachada negando nos factos a participação do povo.

Concordamos que estamos hoje longe do ideal igualitário geralmente associado ao socialismo — com as modulações que deveremos aqui aplicar ao princípio «a cada um segundo o seu trabalho». A China permanece seguramente um país em que as desigualdades sociais são extremamente fortes, e em que o sistema de protecção social é não só fraco (excepto para os funcionários e empregados de empresas públicas), mas ainda muito pouco redistribuidor — bem menos que um sistema social-democrata à escandinava de antigamente, como os autores justamente sublinham. Estes últimos propõem fortalecer os pilares do estado, fazendo financiar os riscos universais (não só ligados ao trabalho) e o risco de saúde por um imposto social antecipado sobre todos os rendimentos. Aí estamos de acordo, mas para ir ainda mais longe, até às pensões de reforma aos subsídios de desemprego — pelo menos para uma ampla cobertura de base. Mas, o fundo do problema continua a ser as desigualdades de rendimentos primários: é porque são consideráveis que devemos redistribuir de modo geral pelo imposto (e, em matéria de fiscalidade, os autores propõem uma série de medidas bastante judiciosas). Mas não esqueçamos de acrescentar que é apenas no sector publico que o Estado — governo central e governos locais — dispõe dos meios mais diversificados e mais eficazes para reduzir radicalmente essas desigualdades… Em resumo, Michel Aglietta e Guo Bai sugerem às autoridades chinesas adoptar o que eles pensam ser «o melhor» do regime social-democrata em matéria de redistribuição, e isso representa sem dúvida um avanço em relação à situação actual. Mas pensamos, que a via socialista deverá no futuro, avançar ainda mais.
 
Reflexões finais
 
Embora a nossa grelha de leitura seja diferente da de Michel Aglietta e Guo Bai — cujo trabalho saudamos — interpretamos a realidade chinesa de outro modo. Parece-nos que a via socialista não foi abandonada. O sector público ganha agora de novo terreno ao sector privado (as empresas públicas estão a comprar muitas firmas privadas). A ideia que a politica chinesa, e a economia se explicam pela vontade de um Partido comunista hierarquizado e disciplinado se manter no poder, e para isso, satisfazer prioritariamente os interesses de uma burocracia do Estado que domina e sobre o qual se apoia, não nos parece já corresponder à realidade. Primeiro, é muito normal que um partido que se reivindica uma revolução procure conservar o poder para atingir os objectivos que pensa ser do interesse do povo. Segundo, é preciso ver de perto os esforços de auto-reforma que esse partido empreendeu, que não receia expor os seus defeitos, as insuficiências da sua democracia interna, e as reformas do sistema político que dirige passo a passo. Podemos assim ter uma outra leitura do regime político chinês. Dito isto, achamos que há uma luta oculta — já não aberta, como na época maoista — no seio do Partido, as universidades e centros de pesquisa, centros intelectuais e até, de modo discreto, media locais, ente duas linhas políticas, ou seja uma visão social-democrata (que alguns chamariam «liberal») e uma orientação socialista. Esta última é atribuída por um lado à «nova esquerda», que se coloca numa certa continuidade da herança maoista. A via socialista está longe de vencer a outra — e acrescentemos que, se ela devesse dominar, conheceria igualmente as suas lutas de tendências. Num sentido, podemos animar-nos: nada é pior que o pensamento único.

Referências

Aglietta, Michel e Guo Bai  (2012), A Via Chinesa — Capitalismo e império, Odile Jacob, Paris.

Andreani, Tony  (2001), O Socialismo é o futuro, Syllepse, Paris;

(2011) Dez Ensaios sobre o socialismo do Século XXI. Le Temps des Cerises, Paris;

Andreani, Tony e Remy Herrera  (2013), «Sistema financeiro e socialismo «à chinesa»  La Pensée, no 373, pp. 65-76, Paris (publicado em chinês Em Marxismo e Realidade, Beijing) — (2010b);

Um outro Capitalismo não é possível, Syllepse, Paris. (2010c), Os Avanços revolucionários na América Latina — Transições socialistas no Século XXI? Parangon, Lyon.

Tony Andreani é professor emérito de Ciências Políticas da Universidade de Paris e Saint Denis

Rémy Herrera é pesquisador no CNRS, UMR 8174 Centro de Economia da Sorbonne.


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