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200214 PAG 28-29JapaoJapão - Le Monde Diplomatique - [Katsumata Makoto]  Quando anunciou a Abenomics, imprimindo dinheiro para estimular a economia vacilante, o primeiro-ministro foi saudado por todos. Finalmente um governo ousava desafiar a ortodoxia da austeridade. Mas a questão do destino dos recursos, negligenciada, ressurgiu. Os gastos militares vão crescer 5%. Tal como a economia...


Desde a vitória esmagadora do Partido Liberal Democrata (PLD) nas eleições para o Senado de julho de 2013, o primeiro-ministro japonês Abe Shinzo conta com maioria absoluta nas duas câmaras. Se por um lado o país enfrentou anos de deflação – a partir da crise de 1997 – e depois a catástrofe do terremoto seguida pelo acidente histórico da central nuclear de Fukushima, em março de 2011, por outro, o governo Abe enfatizou, tão logo chegou ao poder, em 28 de dezembro de 2012, sua decisão de recuperar a economia. É o que a mídia chamou de “Abenomics”, numa alusão às “Reaganomics” que caracterizaram o primeiro período do neoliberalismo norte-americano sob a presidência de Ronald Reagan, nos anos 1980.

O governo pretendia escapar à deflação com três tipos de medida: aumentar a liquidez, isto é, cunhar mais moeda com o objetivo de alcançar uma taxa inflacionária de 2% em dois anos (nada do medo irracional diante do mínimo sinal de aumento da inflação), retomar os investimentos públicos e aplicar uma estratégia de crescimento baseada nas exportações, privatizações e desregulamentação do mercado de trabalho. Um ano depois, onde estamos?

Romper com a ortodoxia não basta

A transferência nada ortodoxa de liquidez imposta ao Banco do Japão a partir de janeiro de 2013 incrementou de início a economia da Bolsa – tanto mais depressa quanto as cotações haviam começado a subir nos dois meses que precederam as eleições para o Senado. Em resposta à demanda contínua dos grandes exportadores, o ien se desvalorizou, principalmente com relação ao dólar e ao euro. As vendas ao exterior aumentaram (16% de outubro de 2012 a outubro de 2013), porém muito menos que o esperado (em volume, 4% apenas), em razão sobretudo do fraco crescimento econômico dos países clientes e das significativas deslocalizações (transferência de companhias para o exterior) operadas no curso das últimas décadas. Somente os lucros dos exportadores cresceram.

Em contrapartida, a desvalorização da moeda japonesa elevou em muito os preços das importações. Nunca, segundo os dados do Ministério das Finanças,1 o déficit comercial foi tão alto desde 1979: R$ 22 bilhões (932 bilhões de iens), contra um superávit superior a R$ 4,5 bilhões em 2007.

Tabu orçamentário nos anos anteriores, o Estado se endividou – 224% do PIB em 2013 – e o incentivo às obras públicas foi bem-recebido pelas empresas locais, cujas atividades estavam em ritmo lento. A ideia do aumento das despesas públicas – quando, por toda parte, e principalmente na Europa, o bom senso aconselha a reduzi-las – tem tudo para seduzir os partidários do voluntarismo político e os economistas hostis à austeridade, como Joseph Stiglitz: “A Abenomics representa o bom caminho para recuperar a economia japonesa. A Europa e os Estados Unidos deveriam inspirar-se nesse exemplo”.2 Contudo, a volta parcial ao keynesianismo não produziu o efeito desejado. A taxa de crescimento anual do PIB, que atingiu 4,3% de janeiro a março de 2013, caiu para 1,9% no terceiro trimestre (julho a outubro). A taxa de investimento produtivo das empresas, que aceleraram as deslocalizações nos últimos anos, continua fraca.3 O balanço é tão pouco convincente que Abe anunciou, no começo de outubro, um novo pacote de financiamentos no total de 40 bilhões de euros.

Todavia, não basta, para pôr de novo a máquina em funcionamento, romper com a ortodoxia vigente e inundar as empresas de dinheiro. No plano social, o balanço da Abenomics é claramente negativo. O número de famílias dependentes de ajuda social bateu um recorde histórico: 1,6 milhão de lares em agosto de 2013.4

Por trás de uma taxa de desemprego que está entre as mais baixas dos países da Organização para a Cooperação e o Desenvolvimento Econômico (OCDE), cerca de 4%, esconde-se uma degradação do emprego silenciosa, mas profunda, resultado do reforço da precarização e da intensificação do trabalho. Agora, 35% dos empregos são transitórios (trabalho temporário, interinidade etc.) e o valor real dos salários vem regredindo: −1,3% de outubro de 2012 a outubro de 2013, segundo o Ministério da Saúde, Trabalho e Segurança Social. Vale dizer que a taxa de sindicalização também caiu (18%, contra 24% no início dos anos 1990).

De modo geral, são as associações, e não os sindicatos, que se encarregam das reivindicações dos trabalhadores temporários. Desde 2012, elas publicam a lista negra das empresas que impõem condições de trabalho desumanas a seus assalariados. Concedido anualmente, o prêmio da “companhia negra” (burakku kigyu) foi entregue em 2013 a um grande grupo nacional de restaurantes, o Watami, cujo fundador e ex-presidente, Watanabe Miki, acaba de ser eleito senador na bancada da maioria. Sua famosa ordem aos empregados − “Trabalhem 365 dias por ano, 24 horas por dia, até a morte” − enriqueceu a relação de provérbios do neoliberalismo japonês, entre os quais o mais antigo é: “Conte com suas próprias forças” (Jijo Doryoku).

Abe se revela aplicador zeloso da estratégia mundial de diminuição do “custo do trabalho”. Diante dos resultados cada vez mais incertos da Abenomics, ele diz que seu desejo é “fazer do Japão o país mais acolhedor para as empresas” do mundo.5 Em termos concretos, isso se traduz pela redução do imposto sobre pessoa jurídica e pelo aumento da taxa sobre o valor agregado, que incide sobre o consumo e passará de 5% a 8% a partir de 1o de abril, para aliviar o déficit do seguro social. Abe, no entanto, poderia muito bem elevar a taxa de cotização das empresas, a mais baixa dos países da OCDE.6

Ao mesmo tempo, o governo lança uma ofensiva comercial, muito midiatizada no Japão, para exportar centrais nucleares, produtos alimentícios de luxo e equipamentos militares de alta tecnologia. A venda destes últimos ao estrangeiro era até agora estritamente limitada por três princípios mais ou menos respeitados desde 1967: não vender armas a países em guerra, não vender armas a países prestes a entrar em guerra e não promover a exportação de equipamentos militares.

Querer vender centrais nucleares pode parecer incongruente. Embora o primeiro-ministro tenha declarado em 7 de setembro de 2013 ao Comitê Olímpico Internacional que a usina de Fukushima estava sob controle e que tudo seria regulado antes dos Jogos de Tóquio, em 2020, o processo de eliminação da água contaminada ainda não foi dominado, o que suscita a cólera dos habitantes, dos camponeses, dos horticultores e dos pescadores da região.

Quanto às exportações agrícolas, a política agressiva preceituada pelo governo é vista como uma tática para desviar a atenção dos adversários do acordo de parceria transpacífica (Trans-Pacific Partnership, TPP), em curso de negociação. Muitos temem que esse texto seja o golpe fatal para a agricultura familiar e as normas de segurança alimentar, mais rígidas no Japão que nos Estados Unidos.7

O caminho tomado por essa nova política econômica é inquietante sobretudo porque, na história do Japão, a resposta ao mal-estar social sempre consistiu numa restrição de liberdades. Por ocasião da crise econômica dos anos 1920-1930, diante das reivindicações democráticas cada vez mais vigorosas de camponeses e trabalhadores urbanos, a solução adotada acabou sendo a da militarização e da repressão, instigadora de um nacionalismo expansionista.

Militarização acelerada

O pós-guerra inaugurou uma era de crescimento forte e igualitário, o que chegou a satisfazer a grande maioria da população. O mito da classe média ascendente ruiu de vez com as duas “décadas perdidas” (nome que se deu ao período iniciado pela crise de 1997), enquanto a esfera social reivindicadora se reduziu progressivamente. Em tempos de crise, o nacionalismo e as políticas de identidade funcionam como instrumentos eficazes para contornar as exigências sociais: ricos e pobres trabalham ombro a ombro pela pátria, unidos todos contra os países vizinhos.

O recrudescimento dos incidentes territoriais com a China por causa das ilhotas Senkaku (Diaoyu, em chinês), no Mar da China Oriental, e com a Coreia do Sul – outra discórdia territorial bastante midiatizada – por causa da ilhota de Takeshima (Dockdo, em coreano) fornece ao governo Abe a sonhada oportunidade de mobilização nacionalista. Não por acaso, o projeto publicado em 2012 pelo PLD sobre a revisão da Constituição, geralmente chamada “Constituição da Paz”, suprime a referência ao “princípio universal da humanidade” no preâmbulo, integrando fórmulas como: “O Estado se baseia na pátria e na família, no respeito à harmonia”. O constitucionalista Yuichi Higuchi afirma temer pelo futuro da democracia japonesa: “O princípio de um Estado que tem seus fundamentos no direito de sangue [o que não é o caso atual, cumpre admitir] corre o risco de se tornar xenófobo”.

Para Abe, por meio dessa revisão visa-se “sair do regime do pós-guerra” e questionar a ordem internacional oriunda das conferências de Ialta e Potsdam, que puniram as potências fascistas. Contudo, o primeiro-ministro não pretende se afastar dos Estados Unidos em nome da soberania nacional: ao contrário, insiste no reforço da aliança militar e justifica a presença de importantes bases norte-americanas, como a das ilhas de Okinawa.

Por muito tempo, o repúdio a essa subordinação militar, política e econômica aos Estados Unidos foi monopólio do Partido Comunista Japonês (PCJ), que falava do país como uma “colônia dos norte-americanos”. Agora, a crítica vem sobretudo dos liberais e de antigos funcionários que jamais militaram nas fileiras do PCJ. Coautor de uma obra recente intitulada Interminável “ocupação”,8 Magosaki Ukeru, ex-diplomata e ex-professor da Escola da Defesa Nacional, preconiza uma autonomia relativa com respeito aos Estados Unidos e uma revisão do tratado militar, bem como a criação de uma comunidade do Leste Asiático. Esse posicionamento de uma parte dos liberais contrasta com a linha política do governo Abe no que tange tanto ao acordo de defesa como ao TPP, ao qual o partido no poder se opôs sob os governos anteriores. Eles acham que esse acordo de livre-comércio só favorece as empresas norte-americanas, as quais poderiam submeter o governo japonês, em caso de litígio, a julgamento e condenação segundo as normas jurídicas dos Estados Unidos (Investor-State Dispute Settlement). E isso seria uma renúncia, nada simbólica, à soberania nacional.

Mas é com relação à política de defesa que os críticos da dependência se inquietam mais. Longe de trazer mais autonomia, a ambiciosa revisão da Carta definida por Abe permitiria a participação em operações de defesa coletiva com o Exército norte-americano, o que é atualmente proibido pela “Constituição da Paz”.

Esse anseio por mudanças constitucionais e aumento das exportações de material bélico lança uma luz muito particular sobre a Abenomics, a qual, como escreveu o Süddeutsche Zeitung(22 jul. 2013), é apenas um meio que Abe entreviu para içar o Japão ao nível de grande potência militar.

Assim, Japão e China rivalizam no nacionalismo, com uma militarização crescente dos dois lados. Isso vem acompanhado, da parte da direita japonesa, por provocações no âmbito da história moderna do Leste Asiático: políticos japoneses visitam o controvertido santuário de Yasukuni, onde repousam as almas dos soldados mortos pelo imperador, inclusive as dos grandes criminosos de guerra;9 eles negam a prostituição forçada de mulheres asiáticas que o Exército imperial organizou durante a Segunda Guerra Mundial.

A fim de evitar que a tensão regional culmine em conflito armado, é preciso rever a fundo a Abenomics. A prioridade deveria ser aliviar o mal-estar social e favorecer um aumento significativo dos salários, bem como melhorar a legislação dos direitos dos trabalhadores para corrigir as profundas desigualdades. Abe deveria, também, interromper definitivamente o programa de energia nuclear: o fracasso gritante desse programa é constatado todos os dias pelo escape ininterrupto de água radioativa em Fukushima – contaminação que pode provocar um conflito de graves proporções com os países da orla do Pacífico.

Mas sobretudo, em lugar de impingir a crença numa retomada do crescimento produtivo com apoio nas grandes empresas, que acumulam todos os privilégios, mais valeria levar em conta a mudança estrutural da sociedade, como salienta Kosuke Motani. Esse economista destaca a diminuição contínua da população economicamente ativa, que deverá cair para 44,2 milhões de pessoas em 2035 (era de 81,2 milhões em 1995), e a fraca propensão ao consumo da classe próspera.10 O mesmo diz, à sua maneira, outro economista, Toshiaki Tachibanaki, especialista em análise de disparidades sociais. A Abenomics, que tenta criar riqueza a qualquer custo, enraíza as desigualdades numa lógica sistêmica pela qual “os ganhadores ficam com tudo”. Ora, nem isso, a seu ver, pode funcionar, dado o envelhecimento da população e a evolução dos valores dos japoneses, que tendem cada vez mais a buscar a “felicidade” em vez do consumo.11 

Notas:

1 NHK News Web, 20 nov. 2013.

2 Entrevista ao Asahi Shimbun, Tóquio, 15 jun. 2013 (em japonês).

3 “Japan growth slows on weakness overseas” [O crescimento do Japão diminui com a fraqueza externa], The Wall Street Journal Online, 13 nov. 2013. Disponível em: .

4 “Novo recorde do número de lares que recebem ajuda social”, Nippon Keizai Shimbun, 13 nov. 2013 (em japonês).

5 Discurso na Assembleia Nacional, 28 jan. 2013.

6 Itoh Shuhei, “A grande virada da previdência social”, Sekai, Tóquio, nov. 2013 (em japonês).

7 Ver Lori M. Wallach, “Um tratado para estabelecer o governo das multinacionais”, Le Monde Diplomatique Brasil, nov. 2013.

8 Magosaki Ukeru e Akira Kimura, Interminável “ocupação”, Huritsu Bunkasya, Kyoto, 2013 (em japonês).

9 Ver Tetsuya Takahashi, “Le sanctuaire Yasukuni ou la mémoire sélective du Japon” [O santuário Yasukuni ou a memória seletiva do Japão], Le Monde Diplomatique, mar. 2007.

10 Tokyo Shimbun, 17 nov. 2013.

11 Toshiaki Tachibanaki, “Devemos ignorar a sociedade desigual?”, Sekai, ago. 2013 (em japonês).

Katsumata Makoto é Economista, professor da Universidade de Meiji Gakuin (Tóquio) e presidente do Centro de Estudos Internacionais para a Paz.

Ilustração: Maurício Planel Rossielo


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