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210114 nelson mandela78África do Sul - Le Monde Diplomatique - [Achille Mbembe] Seu nome, entoado nos cinco continentes, é sinônimo de resistência, libertação, universalidade. Lutador obstinado e esperto, Nelson Mandela não existe mais. Porém, a mera ideia de que as pessoas se lamentassem ao pé de sua estátua o exasperava: é necessário ir em frente, dizia, e continuar na tarefa da emancipação.


Agora que Nelson Mandela se foi, temos o direito de declarar o fim do século XX, do qual ele terá sido uma das figuras mais emblemáticas. Exceção feita a Fidel Castro, ele era talvez o último de uma linhagem de grandes homens condenada à extinção, numa época que tem pressa em acabar de uma vez por todas com os mitos.

Se é preciso conceder a Mandela a recusa da santidade que ele não cessava de rejeitar, devemos reconhecer também que ele estava longe de ser um homem comum. Oapartheidprovocou o surgimento de uma classe de mulheres e de homens sem medo que, ao preço de sacrifícios incríveis, precipitaram sua abolição. Se, de todos, Mandela tornou-se o nome, foi porque a cada encruzilhada em sua vida ele se mostrou capaz de adotar, às vezes sob a pressão das circunstâncias e muitas vezes voluntariamente, caminhos inesperados.

Sua vida vai ser resumida em poucas palavras: um homem sempre à procura, sentinela da partida e cujos retornos, tão inesperados quanto milagrosos, apenas terão contribuído ainda mais para sua mitificação.

Na base do mito não se encontram apenas o desejo do sagrado e a sede do secreto. Ele floresce pela primeira vez na proximidade da morte, essa primeira forma de partida e afastamento. Bem cedo, Mandela teve uma experiência assim, quando seu pai, Mphakanyiswa Gadla Mandela, morreu quase diante de seus olhos. Essa primeira partida precipitou outra. Acompanhado de sua mãe, o jovem Mandela deixou Qunu, o lugar de sua infância e dos primórdios de sua adolescência. Ele voltaria a se estabelecer ali depois de seus longos anos de prisão, após ter construído no local uma casa, réplica com todos os detalhes da última prisão onde ficou encarcerado pouco antes de sua libertação.

Recusando-se a se conformar com os costumes, Mandela partiria uma segunda vez no final da adolescência. Príncipe fugitivo, virou as costas para uma carreira junto ao chefe dos Thembus, seu clã de origem. Seguiu para Johannesburgo, cidade voltada à mineração, em pleno crescimento, e lugar das contradições sociais, culturais e políticas geradas por essa montagem barroca de capitalismo e racismo que assumiria em 1948 a forma e o nome de apartheid. Chamado a se tornar um líder na ordem vigente, Mandela se converteria ao nacionalismo como outros a uma religião, e a cidade das minas de ouro se tornaria o palco principal do encontro com seu destino.

Começou então uma via crucis longa e dolorosa, feita de privações, prisões constantes, perseguições intempestivas, vários comparecimentos diante dos tribunais, estadas regulares nos presídios com seu rosário de torturas e seus rituais de humilhação, períodos mais ou menos prolongados de vida clandestina, inversão dos mundos diurno e noturno, disfarces mais ou menos espontâneos, uma vida familiar dispersa, moradias abandonadas – o homem em luta, rastreado, o fugitivo constantemente de partida, guiado apenas pela convicção de um dia futuro, o dia do retorno.

De fato, Mandela assumiu riscos enormes. Com a própria vida, que ele viveu intensamente, como se tudo fosse recomeçar a cada vez e como se cada vez fosse a última. Mas também com a de muitos outros, a começar por sua família, que, consequência inevitável, pagou um preço inestimável pelos compromissos e convicções dele. Ela o vinculava por isso a uma dívida insondável que ele sempre soube não estar em condições de compensar, o que só fez agravar seus sentimentos de culpa.

Mandela evitou por pouco a pena de morte. Foi em 1964. Estava preparado para ser condenado. “Se tínhamos de desaparecer, melhor fazê-lo em meio a uma nuvem de glória. Ficávamos satisfeitos de saber que a morte representaria nossa última oferta ao nosso povo e à nossa organização.”1 Essa visão eucarística, no entanto, estava isenta de qualquer desejo de martírio. E, ao contrário de todos os outros, de Ruben Um Nyobè a Patrice Lumumba, passando por Amílcar Cabral, Martin Luther King até Mohandas Karamchand Gandhi, ele escaparia à foice.

Resto de humanidade

Foi na prisão de Robben Island que ele teve realmente a experiência desse desejo de vida, no limite do trabalho forçado, da morte e do banimento. A prisão se tornaria o local de uma prova extrema, a do confinamento e do retorno do homem à sua mais simples expressão. Nesse lugar de privação máxima, Mandela aprendeu a viver na cela na qual passaria mais de vinte anos como se fosse um sobrevivente forçado a se casar com um caixão.2

Durante longas e terríveis horas de solidão, levado à beira da loucura, ele redescobriria o essencial, aquele que jaz no silêncio e no detalhe. Tudo lhe falaria do novo: uma formiga que corre não se sabe onde; a semente enterrada que morre e depois se recupera, criando a ilusão de um jardim; um pedaço de algo, não importa o quê; o silêncio dos dias mornos que se juntam sem parecer que se passam; o tempo que se alonga interminavelmente; a lentidão dos dias e o frio das noites; a palavra que se torna rara; o mundo para além dos muros do qual não se ouvem mais os murmúrios; o abismo que foi Robben Island e os traços do penitenciário em seu rosto agora esculpido pela dor, em seus olhos murchos pela luz do sol que refrata sob o quartzo, a poeira nesse rosto transformado em espectro fantasmagórico e em seus pulmões, nos dedos dos pés, e acima de tudo esse sorriso alegre e brilhante, essa postura altaneira, firme, em pé, o punho cerrado, pronto para abraçar de novo o mundo e fazer soprar a tempestade.

Despojado de quase tudo, ele lutou com unhas e dentes para não abdicar de forma alguma do resto de humanidade que seus captores queriam a qualquer preço arrancar dele e brandir como o troféu final. Reduzido a viver com quase nada, ele aprendeu a economizar tudo, mas também a cultivar um profundo desapego em relação às coisas da vida profana, aí incluídos os prazeres da sexualidade. Até o ponto de, confinado entre duas paredes e meia, não ser, apesar de tudo, escravo de ninguém.

Homem de carne e osso, Mandela viveu, portanto, próximo ao desastre. Ele penetrou na noite da vida, o mais próximo das trevas, à procura de uma ideia, de saber como viver livre da raça e da dominação do mesmo nome. Suas escolhas o conduziram à beira do abismo. Ele fascinou o mundo, porque voltou vivo do país das sombras.

Como os movimentos operários do século XIX ou ainda as lutas das mulheres, nossa modernidade foi trabalhada pelo sonho de abolição trazido pelos escravos. É esse sonho que foi prolongado, no início do século XX, pelas lutas em favor da descolonização. A práxis política de Mandela se inscreve nessa história específica das grandes lutas africanas pela emancipação humana. Tais lutas se revestiram, desde as origens, de uma dimensão planetária. Seu significado nunca foi apenas local. Sempre foi universal. Mesmo quando mobilizaram atores locais, em um país ou em um território nacional bem circunscrito, elas estavam no ponto de partida de solidariedades forjadas numa escala global e transnacional.

Foram lutas que, a cada vez, permitiram a extensão ou mesmo a universalização de direitos que até então tinham permanecido como o apanágio de uma raça. Foi o triunfo do movimento abolicionista ao longo do século XIX que pôs fim à contradição representada pelas modernas democracias escravagistas. Encontramos a mesma universalidade no movimento anticolonialista. O que ele visava senão tornar possível a manifestação de um poder próprio de gênese – o poder de se manter de pé por si mesmo, de se autodeterminar?

Ao tornar-se um símbolo da luta global contra o apartheid, Mandela ampliou esses significados. Aqui, o objetivo é estabelecer uma comunidade além da raça. Enquanto o racismo está de volta sob formas mais ou menos inesperadas, o projeto de igualdade universal está mais do que nunca diante de nós.

Resta dizer uma coisa sobre a África do Sul que Mandela deixa atrás de si.

A passagem de uma sociedade de controle para uma de consumo representa, sem dúvida, uma das transformações mais decisivas desde sua libertação e do fim do apartheid. Sob o regime de segregação, o controle consistia em rastrear e restringir a mobilidade dos negros. Ele se baseava na regulação dos espaços nos quais eles estavam confinados, com o objetivo de extrair deles o máximo de trabalho possível. Os contatos entre os indivíduos eram proibidos ou regulados por leis rigorosas, especialmente quando essas pessoas pertenciam a categorias raciais diferentes. O controle passava, portanto, pela modulação da brutalidade ao longo de linhas raciais.

Sob o apartheid, tal brutalidade tinha três funções.

Por um lado, visava enfraquecer a capacidade dos negros de garantir sua reprodução social. Eles nunca foram capazes de levantar os meios indispensáveis para uma vida digna, quer se tratasse de acesso a alimentação, moradia, educação e saúde etc. Essa brutalidade tinha por outro lado uma dimensão somática. Visava imobilizar os corpos, paralisá-los, quebrá-los se necessário. Por fim, atacava o sistema nervoso e tendia a secar as capacidades de suas vítimas de criar seu próprio mundo de símbolos. Suas energias eram, na maior parte do tempo, desviadas para as tarefas de sobrevivência. Esse era, com efeito, o trabalho que se esperava que o racismo realizasse.

Essas formas de violência e brutalidade foram objeto de uma interiorização mais profunda do que nós gostaríamos de admitir. Elas são, desde 1994, reproduzidas num modo molecular no âmbito da existência comum e pública. Manifestam-se em todos os níveis das interações sociais cotidianas, quer se trate das esferas íntimas da vida, das estruturas do desejo e da sexualidade ou até do irreprimível desejo de consumir todos os tipos de mercadorias.

Esse desejo desenfreado de consumo é tomado como essência e substância da democracia e da cidadania. A passagem de uma sociedade de controle para uma de consumo ocorre em um contexto marcado por várias formas de privação para a maioria dos negros. Opulência e privação extremas coexistem, e o fosso que separa esses dois estados tende cada vez mais a ser negociado pela violência e pelas diversas formas de acumulação.

A democracia pós-Mandela é composta principalmente de negros sem trabalho e de outros sem possibilidade de ser empregados, que não exercem um direito de propriedade sobre quase nada. A longa história do país é ela própria marcada pelo antagonismo entre dois princípios, o governo do povo pelo povo e a lei dos proprietários.

Até pouco tempo atrás, estes últimos eram quase exclusivamente brancos, e era isso que conferia às lutas uma conotação racial. As coisas não são mais exatamente assim hoje em dia. A classe média negra emergente, no entanto, não está em posição de desfrutar em total segurança os direitos de propriedade há pouco adquiridos. Ela não está segura de que a casa comprada a crédito não venha a ser retomada amanhã, pela força ou em virtude de circunstâncias econômicas adversas. Esse sentimento de precariedade é uma das marcas da psicologia de classe.

A África do Sul entra em um novo período de sua história, durante o qual os procedimentos de acumulação não acontecem mais por meio da expropriação direta. Eles passam agora pela captura e pela apropriação privada dos recursos públicos, pela modulação da brutalidade e por uma relativa instrumentalização da desordem. A constituição de uma nova classe dominante multirracial se dá, portanto, por meio de uma síntese híbrida dos modelos russo, chinês e africano pós-colonial.

Plenitude na humanidade

De resto, tanto da vida como da prática de Mandela, duas lições merecem ser lembradas. A primeira é que só existe um mundo, pelo menos de momento. O que, portanto, é comum para nós é o sentimento ou o desejo de sermos seres humanos de pleno direito. Esse desejo de plenitude na humanidade é algo que todos compartilhamos.

A segunda lição é que, para construir esse mundo que nos é comum, será preciso restituir àqueles que sofreram um processo de abstração e de coisificação na história a parte da humanidade que lhes foi roubada. Haverá pouca consciência de um mundo comum enquanto aqueles que foram imersos em uma situação de extrema pobreza não tiverem escapado das condições que os confinam na noite da infravida. No pensamento de Mandela, reconciliação e reparação estão no cerne da própria possibilidade de construção de uma consciência comum do mundo, isto é, a realização de uma justiça universal. Com base em sua experiência carcerária, ele chega à conclusão de que há uma parte de humanidade intrínseca da qual cada pessoa humana é depositária. Essa parte irredutível pertence a cada um de nós. Ela faz que, objetivamente, sejamos ao mesmo tempo distintos uns dos outros e semelhantes. A ética da reconciliação e da reparação, portanto, implica o reconhecimento daquilo que se poderia chamar de a parte do outro, que não é a minha e da qual eu, no entanto, sou o fiador, quer eu queira ou não. Essa parte do outro, eu não poderia agarrá-la sem consequências para a ideia de si mesmo, da justiça, da lei, ou até mesmo de toda a humanidade, ou ainda para o projeto do universal, se tal é de fato a destinação final.

Nessas condições, é inútil erigir fronteiras, construir paredes e lugares fechados, dividir, classificar, hierarquizar, tentar separar da humanidade aqueles que tivermos rebaixado, que desprezamos, que não se parecem conosco ou com os quais acreditamos que nunca vamos conseguir nos entender. Existe apenas um mundo, e somos todos herdeiros dele, ainda que as maneiras de habitá-lo não sejam as mesmas – daí justamente a real pluralidade das culturas e dos modos de viver. Dizer não significa de modo algum ofuscar a brutalidade e o cinismo que ainda caracterizam o encontro dos povos e das nações. Trata-se apenas de relembrar um dado imediato, inexorável, cuja origem se situa, provavelmente, no início dos tempos modernos: o processo irreversível de emaranhamento e entrelaçamento de culturas, povos e nações.

Muitas vezes, o desejo de diferença emerge precisamente ali onde se vive de forma mais intensa uma experiência de exclusão. A proclamação da diferença é então a linguagem inversa do desejo de reconhecimento e inclusão. Para aqueles que já experimentaram o domínio colonial ou para aqueles cuja parte de humanidade foi roubada em algum momento da história, a recuperação dessa parte de humanidade passa com frequência pela proclamação da diferença. Mas, como se vê em uma parte da crítica africana moderna, esse é apenas um momento de um projeto maior: o projeto de um mundo futuro, um mundo à nossa frente, cujo destino é universal; um mundo livre do fardo da raça, do ressentimento e do desejo de vingança que qualquer situação de racismo chama. 

Notas:

1 Nelson Mandela, Conversations avec moi-même [Conversas comigo mesmo], Seuil, Paris, 2011.

2 Cf. Nelson Mandela, Un long chemin vers la liberté [Um longo caminho para a liberdade], The Paperback, Paris, 1996.

Achille Mbembe é professor de história e ciências políticas na Universidade de Witwatersand em Johannesburg, autor de Le sujet de race. Contribution à la critique de la raison nègre, editora Fayard (Paris).

Ilustração: Tulipa Ruiz.

 


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